ENTREVISTAS
A A | Depois da abolição, Estado sofisticou mecanismos de exclusão, diz historiadoraSegundo Wlamyra de Albuquerque, o projeto de abolição vitorioso relegou parte da população a uma espécie de subcidadania. Abolicionistas negros propunham mudanças mais profundasEm 1887, pouco antes de a escravidão ser abolida no Brasil (no dia 13 de maio de 1888), o governo da Bahia se lançou numa discussão sobre qual deveria ser o perfil e a atuação da polícia. Decidiu-se que cabia à força policial zelar pela boa conduta da população: sambas foram proibidos depois das 22h, a capoeira foi considerada crime. Na época, a população negra livre —ou liberta — em Salvador já superava, numericamente, a de escravizados. E a abolição era um evento antecipado pelas elites. O episódio é lembrado pela historiadora Wlamyra Albuquerque para demonstrar como, às vésperas do 13 de maio, as elites brasileiras se organizaram para cercear a atuação de homens e mulheres negras: “Entendia-se que eles não estavam mais sob o controle de um senhor, mas deveriam passar para o controle do Estado”, afirma. Professora da Universidade Federal da Bahia, Wlamyra se dedica a um campo de estudos relativamente novo para a historiografia brasileira: o do período da imediata pós-abolição, de 1888 até a década de 1930. Segundo ela, a lei assinada no 13 de maio representava um dentre muitos projetos de emancipação: “O movimento abolicionista não era homogêneo”, afirma. Deixa de lado propostas de lideranças negras que lutaram pela liberdade, e que de defendiam mecanismos para a criação de uma sociedade mais justa — para pessoas negras ou não — como a distribuição de terras públicas a pequenos proprietários. “Esses abolicionistas negros tinham um projeto para o Brasil”, diz a professora. Segundo Wlamyra, venceu um projeto de país que criava mecanismos de exclusão, relegando a população negra a uma condição de subcidadania, sem nunca deixar essas intenções explícitas: “A república brasileira se faz cheia de noções de desigualdade racial dadas pelo escravismo.” Brasil de Direitos: A população negra, na época da abolição, era heterogênea. A maior parte dela, segunda as estatísticas da época, era nascida livre ou liberta. O que o 13 de maio representou para essas pessoas?Wlamyra de Albuquerque: É mesmo verdade que, a partir da década de 1870, houve uma expressiva diminuição no número de pessoas escravizadas no Brasil. O número caiu mesmo naquelas províncias que concentravam população cativa significativa. Mas isso só acontece nos anos já próximos da abolição, a partir de 1882. É um período muito curto, sobretudo se comparado aos mais de 300 anos de escravismo no Brasil. Na maioria dos casos , a pessoa conquistava a liberdade comprando sua alforria. Essa negociação, com o senhor, era costumeiramente tensa. A compra da alforria tinha por objetivo garantir alguma autonomia à pessoa. É preciso cuidado ao falar em liberdade nesses casos. Porque, além do senhor, esse indivíduo que comprava a alforria tinha ainda de lidar com o Estado brasileiro, que não estava interessado em lhe garantir liberdade plena. Perante o Estado, esses homens libertos eram vistos como suicidadãos. Juridicamente, eles não podiam ser chamados de “livres”. Eram “libertos”. E isso não é mero jogo de palavras. Essa condição o impede de ter diversos direitos políticos. E essa condição perdura até a abolição. Havia restrições explicitas, descritas em lei, à atuação dos libertos?Essa foi a grande sacada do Estado brasileiro, antes e depois da abolição. É o argumento que desenvolvo em um dos meus livros, O Jogo da Dissimulação. Ao contrário do que aconteceu nos EUA, ou em Cuba —países onde a escravidão chegou ao fim quase na mesma época em que o Brasil — o Estado brasileiro nunca explicitou, em leis, as restrições impostas à população negra. Os mecanismos de exclusão são mais sofisticados. Vou exemplificar. Em 1881, o número de pessoas negras nascida livres ou libertas já era maior que o número de escravizados no Brasil. A escravidão estava em crise. Foi quando se empreendeu uma grande reforma no código eleitoral. Ao longo de todo o Império, libertos não poderiam ser eleitos, mas poderiam ser votantes. A eleição acontecia em duas instancias, com uma indireta. Em 1881, o projeto era de que a eleição passasse a ser direta. Mas foram estabelecidas algumas exigências: para ser eleitor, o sujeito devia ser alfabetizado. Isso tirou uma boa parte da população liberta do processo eleitoral — uma população que já havia participado das disputas em outros momentos. Não há uma explicitação, na lei, de que há um limite aos libertos. Mas criam-se restrições a sua cidadania. Essas restrições veladas perduram depois do 13 de maio?Como o Estado interefere nas nossas vidas cotidianas? Quando falamos do Estado, falamos da polícia, das políticas educacionais , de saúde, habitação, do acesso a espaços de poder. Saindo da monarquiea e entrando na república, o Estado brasileiro vai sofisticando essas fomas de exclusão por meio desses braços do Estado. Isso começa ainda antes da abolição. Em 1887, às véspera da abolição, surge um debate sobre a restruturação da polícia na Bahia. O objetivo é repensar o perfil e a atuação da força policial. E a discussão ocorreu num momento em que o número de pessoas negras livres ou libertas já era maior que o número de escravizados. Compreende-se, na época, que controle dessa população já não estava nas mãos de um senhor. Ele precisava ser exercido pelo Estado. Para fazer isso, a polícia é reestruturada, para dar conta do controle urbano e para a observação de normas de conduta. Aumenta a repressão policial?Os sambas são proibidos depois das 22h, por exemplo. O candomblé foi proibido em Salvador, bem como a capoeira, que foi proibida em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Cabia à polícia fazer cumprir essas proibições. Tudo isso são sinais de tentativas do estado de controlar a população negra livre, e isso se estende para além do século XIX. A Constituição federal, hoje, não estabelece distinções raiais. É verdade —não está dito na constituição que há uma subcidadania para a população negra. Mas as políticas do estado brasileiro foram construídas desde a abolição, e ainda hoje, num sentido de garantir lugares sociais diferentes para esses sujeitos, à partir de uma condição racial. Hoje, se diz que a lei que aboliu a escravidão foi curta e insuficiente. Em fins do século XIX já se fazia essa crítica? Havia outros projetos de liberdade?Havia essa crítica. Para muitos abolicionistas, a abolição era uma reforma. Era um ajuste na ordem liberal. Mas o movimento abolicionista não era homogêneo. Havia, por exemplo, abolicionistas que eram sapateiros. Sabemos de abolicionistas que invadiam senzalas para fazer campanha. Na memória nacional, restaram apenas alguns “grandes homens’, que incorporaram a ideia da abolição a partir de uma perspectiva de reforma liberal. Para encontrar outras perspectivas, é importante olhar para os abolicionistas negros, como o Luis Gama. Gama tinha elaborado um plano para o que deveria ser o Brasil depois da abolição. Havia um projeto de habitação, um plano de acesso a espaços na política. Há outras figuras como ele, que foram inviabilizadas. Alguns, anos depois, se tornam lideranças de movimentos operários. Caso de Manoel Quirino, na Bahia. Nascido escravo, ele compra a própria alforria. No pós-abolição, se torna líder operário e chega a fundar um jornal socialista. Elege-se vereador, mas não vai além disso. Eles todos defendem reformas muito mais profundas para a sociedade brasileira do pós-abolição. O mais conhecido deles talvez sejs André Rebouças, que elaborou uma plano de distribuição de terras. Uma espécie de reforma agrária?Não era propriamente uma reforma agrária, porque reforma agrária é muito marcado por uma ideia de distribuição de terras privadas. André Rebouças pensava em terras públicas, que deveriam ser transformadas em colônas para serem distribuídas a pequenos proprietários de terras. Pensava também num plano de reforma educacional. Quando se olha para essa pluralidade, a gente se dá conta de que havia propostas muito mais igualitárias, atentas às desigualdades colocadas naquele momento. Esses abolicionistas negros tinham projetos para o Brasil Essas lideranças negras continuam a atuar no pós-abolição. Que bandeiras defendem?Eles vão reivindicar que se estabeleça a instrução pública obrigatória a essa população egressa da escravidão. Cobram o estabelecimento de salários. A escravidão acabou à base de um decreto curto. Em muitos lugares, isso não significou a adoção do trabalho livre imediatamente. O estabelecimento de salários, a fixação de um jornada de trabalho, o respeito aos fins de semana livres. Essas bandeiras, que começam a ser incorporadas pela luta operária, surgem como reivindicações dessa população negra para se livrar das continuidades do escravismo. Essas lideranças pensam, então, no 13 de maio como uma alavanca, um ponto de partida, a partir da qual construir um país mais igualitário. Mas isso só vai aparecer nos discursos desses abolicionistas negros. Que acabam sendo inviabilizados naquela galeria de heróis nacionais. Por que esses protagonistas negros foram esquecidos?Muito fazendeiros ficam descontentes com o fim da escravidão, e tornam-se republicanos. Defendem um liberalismo — que não o mesmo de hoje— que prevê um Estado que garanta liberdade econômica e direitos de propriedade. Esses fazendeiros garantem o fim da monarquia, e levam para a república esses principios de desigualdade racial, essa ideia de preservação da propriedade acima de qualquer coisa, como a primeira premissa do estado liberal. Eles conseguem manter um processo de desigualdade racial que corre na republica brasileira até hoje. A república brasileira se faz cheia de noções de desigualdade racial dadas pelo escravismo. Há uma tensão política que faz com que a abolição aconteça. Mas ela vem preenchida por vícios, e por um projeto que exclui parte da população da cidadania. Há muita gente querendo que a escravidão acabe. Mas, mesmo entre essas pessoas, há muitos que trabalham para fazer com que essa mudança aconteça sem que, para isso, se desmonte um edifício social desigual. foto de topo: a professora Wlamyra de Albuquerque (divulgação Companhia das Letras) | A A |
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A A | Stiglitz: O singular autoritarismo de TrumpNobel de Economia relembra seus embates com Milton Friedman, que usava argumentos morais em favor do neoliberalismo. E explica como a desregulação total, conduzida por Trump, usa falso conceito de liberdade que oprime as maiores Joseph Stiglitz em entrevista a Rodrigo Ponce de León, traduzido no IHU “A liberdade de portar uma AK-47 para alguns é a perda da liberdade devido ao medo pelos outros”. Com este exemplo fácil de entender, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2001, Joseph E. Stiglitz (Estados Unidos, 1943), destrói os falsos argumentos de uma direita comprometida com um falso conceito de liberdade que, no final, se traduz na lei da selva. Um defensor ferrenho de um capitalismo progressista onde a regulamentação deve regular as finanças para acabar com a desigualdade, ele argumenta que “mercados irrestritos não seriam livres; eles terminariam em monopólios”. Em seu livro The Road to Freedom (Taurus Publishing House), Stiglitz argumenta que “a ideia de que você deve ser livre para fazer o que quiser para construir algo soa bem até que você perceba que muitas vezes é mais fácil ganhar dinheiro explorando os outros. No entanto, se você impede alguém de explorar os outros, você canaliza as energias da sociedade para maneiras construtivas de alcançar uma economia melhor.” Este economista não esconde o fato de que “há um medo avassalador nos Estados Unidos” em relação ao presidente Donald Trump, que está conduzindo o país em direção a “um tipo diferente de autoritarismo”. “O que está acontecendo hoje nos Estados Unidos com Trump é o enfraquecimento total da democracia”, reitera. E faz um alerta: “Esperemos que o que está acontecendo nos Estados Unidos sirva de alerta para a Europa, porque pode acontecer em qualquer lugar”. Eis a entrevistaSeu livro se chama “O Caminho para a Liberdade”. Será que o conceito de liberdade pode ser o mais amplamente utilizado para destruir a liberdade de milhões de pessoas em um sistema como o capitalismo neoliberal, que nos aprisiona em uma falsa liberdade? A razão pela qual escrevi o livro é por causa do abuso do termo “liberdade”. Nos Estados Unidos, o grupo de direita do Partido Republicano, chamado Freedom Caucus, abusa constantemente do termo: liberdade econômica, livre iniciativa, livre mercado. O que estou tentando apontar é que a direita não percebe o quão interdependentes somos em sociedade. Portanto, a liberdade de uma pessoa pode tirar a liberdade de outra. Por exemplo, a liberdade de portar uma AK-47 pode tirar sua liberdade de viver. Nos Estados Unidos, temos assassinatos constantemente, muitos deles em escolas. Os pais se preocupam se seus filhos voltarão para casa; eles perderam a liberdade devido ao medo. Portanto, a liberdade de portar uma AK-47, para alguns, é a perda da liberdade devido ao medo pelos outros. A liberdade de não usar máscara durante a COVID-19 significou que outras pessoas morreriam, ou a livre iniciativa e sua liberdade de poluir aumentarão as consequências das mudanças climáticas. A direita alega que a regulamentação é prejudicial porque limita a liberdade. Mas regulamentações simples dão a todos mais liberdade. Portanto, restringir a liberdade de alguma forma pode expandi-la de uma forma mais significativa. Você escreve em seu livro que “é impressionante que, apesar de todas as falhas e desigualdades do sistema atual, tantas pessoas continuem defendendo a economia de livre mercado”. Como se conseguiu enganar as pessoas? Primeiro, o sistema econômico é muito complexo. Entender como todas as peças se encaixam é muito difícil. Além disso, há um conceito muito atraente na ideia de espírito livre, de poder fazer o que quiser. Parece bom, mas todos os jogos exigem regras e regulamentos. Caso contrário, seria o caos. Economistas já estudaram esse impacto: mercados irrestritos não seriam livres; eles terminariam em monopólios. Uma das coisas que eu disse a Milton Friedman quando ele escreveu um livro intitulado Livre para Escolher foi que o livro realmente deveria ter se intitulado Livre para Explorar. Os mercados não funcionam bem quando alguém se aproveita das pessoas. Por exemplo, em 2008, os bancos americanos se envolveram em empréstimos predatórios, com taxas de juros altíssimas que as pessoas realmente não tinham condições de pagar. O resultado foi uma grande crise financeira; tudo teria entrado em colapso se o governo não tivesse intervindo para socorrê-los. Escrevi este livro para tentar explicar de forma simples que a ideia de que você deve ser livre para fazer o que quiser para construir algo soa bem até você perceber que muitas vezes é mais fácil ganhar dinheiro explorando os outros. No entanto, se você impede alguém de explorar os outros, você canaliza as energias da sociedade para maneiras construtivas de alcançar uma economia melhor. Algumas pessoas pensavam que o lucro impulsionava as pessoas a fabricar produtos melhores, mas a verdade é que, sem regulamentações, elas teriam um incentivo para tirar vantagem dos outros. Quando o entrevistei em 2020, perguntei o que poderia ser feito em relação ao 1% dos ricos, que, como você apontou, nos EUA “estava evoluindo para uma economia e uma democracia do 1%, para o 1% e pelo 1%”. Sua resposta foi “restringir seu poder político”. Considerando os resultados das recentes eleições nos EUA, parece claro que isso não foi suficiente. Quem imaginaria que o mundo estaria falando sobre oligarcas americanos? Costumávamos falar sobre oligarcas russos como um símbolo do que havia dado errado na sociedade russa. Acho que o que deu errado foi que, por 40 anos, não demos a devida atenção à desigualdade. Acreditávamos que a liberação do mercado levaria a mais crescimento e que a economia de gotejamento garantiria que os benefícios chegassem a todos. Mas o que obtivemos foi um crescimento fraco, e apenas os mais ricos se beneficiaram. Não funcionou. Mas o neoliberalismo era a religião econômica do momento, não baseada na ciência econômica. Vários economistas, inclusive eu, já haviam explicado que o neoliberalismo não funcionaria. Mas, com a política de persuasão, Milton Friedman, que era um grande retórico, como Ronald Reagan, convenceu os americanos e boa parte dos europeus. Eles engoliram a história, continuaram esperando pelo gotejamento da riqueza, mas isso não aconteceu, o que gerou descontentamento. Essa desilusão e descontentamento levaram muitos cidadãos a se tornarem antissistema e antigoverno, embora sem o governo eles estivessem ainda menos protegidos. É uma espécie de ciclo vicioso em que a desigualdade faz com que populistas neoliberais ganhem eleições, que então implementam políticas que aumentam essa desigualdade. Os progressistas não conseguem lidar com isso quando estão no poder, o que faz com que os neoliberais vençam novamente, e a desigualdade continua a crescer. Concordo plenamente. O que está acontecendo nos Estados Unidos hoje com Trump é o enfraquecimento total da democracia. De certa forma, Donald Trump é a conclusão lógica desse círculo vicioso. O mais decepcionante é que os cidadãos estão tão desiludidos que dizem que a democracia não é tão importante. Portanto, não os incomoda que Trump tenha violado o Estado de Direito ou os princípios básicos da democracia. Eles acreditam que o importante é garantir que suas vozes sejam ouvidas, porque acham que ninguém os ouviu por 40 anos. Esperemos que o que está acontecendo nos Estados Unidos sirva de alerta para a Europa, porque pode acontecer em qualquer lugar. Parecia que o debate sobre austeridade estava definitivamente enterrado, que as lições da crise de 2008 nos ensinaram como a austeridade apenas exacerbou o desastre econômico e piorou a situação de milhões de pessoas. No entanto, a gestão de uma figura como Elon Musk no governo dos EUA só serviu para fazer cortes. É diferente. O que Trump está fazendo não pode ser descrito como austeridade, embora tenha coisas em comum. Há muitos cortes orçamentários em áreas muito importantes para o crescimento, minando a pesquisa científica e as universidades, que são um dos alicerces da força dos Estados Unidos. Portanto, está explicitamente matando a economia de uma forma pior do que na Europa. A austeridade europeia baseava-se na crença de querer reduzir o déficit, mas Trump só conseguiu um aumento no déficit. Ele está destruindo áreas de investimento público para dar mais dinheiro aos oligarcas ou para ter mais margem de manobra para cortar impostos para os ricos. Você enfatiza o papel da educação liberal como fórmula para criar sociedades mais justas. Isso dá sentido aos ataques de Trump a uma universidade como Harvard. Sociedades democráticas precisam de freios e contrapesos, não apenas no governo, mas também na sociedade. A concentração de poder, seja econômico ou midiático, não pode ser permitida. Agora, há poder demais nas mãos de poucos, os oligarcas. Trump se opõe a qualquer coisa que interfira no que ele quer fazer; ele quer ser um ditador. Ele acusa a imprensa de ser inimiga do povo por publicar suas ações ilegais. O mesmo acontece com a liberdade acadêmica. A sociedade cria essas instituições educacionais para continuar desenvolvendo ideias. Trump odeia universidades porque não quer ideias que desafiem suas teorias falhas. Mas há outra razão pela qual Trump e muitos da direita odeiam as universidades. Eles veem os jovens saindo das universidades pensando de forma diferente da que ele pensa agora. Em parte, isso se deve ao fato de os jovens precisarem pensar por si mesmos, e Trump culpa as universidades; ele não quer que as pessoas pensem com rigor. É por isso que ele tem tanta animosidade e raiva em relação às nossas universidades, mas, ao atacá-las, ele está destruindo o bem mais importante dos Estados Unidos. A direita na Espanha não tem outra política econômica além da redução de impostos. Você diferencia claramente entre receitas de mercado, que carecem de legitimidade moral, e impostos, que são um ato moral. Poderia explicar? Uma das reivindicações da direita é que você tem direito a toda a renda que ganha, sem ter que pagar impostos. Mas a realidade é que você não teria sido capaz de ganhar essa renda se uma sociedade não tivesse sido construída sobre impostos, fornecendo educação, infraestrutura, segurança e assim por diante. É um ato moral pagar impostos. Em segundo lugar, salários, taxas de juros e preços surgem em uma economia de mercado e refletem a distribuição de riqueza e poder na sociedade, mesmo que não tenham legitimidade moral. Por exemplo, se temos uma sociedade em que a maior parte da renda está nas mãos de pessoas que exploram outras, elas serão as que determinarão os salários, independentemente de alguém receber um salário alto ou baixo. Nos Estados Unidos, é muito claro que grande parte da riqueza pode ser rastreada até a escravidão, o poder de mercado, o tráfico de drogas ou o comércio de ópio com a China, que não têm necessariamente legitimidade moral. Outra parte muito interessante do seu livro é quando você explica que o direito à propriedade é uma construção social. Na Espanha, temos um sério problema de acesso à moradia. Pessoas de baixa renda ou jovens têm sérios problemas de acesso à moradia, enquanto os mais ricos ou os fundos de investimento monopolizam centenas e milhares de casas próprias. Seria legitimamente moral limitar o direito à propriedade para garantir o direito à moradia? Quando digo que os direitos de propriedade são uma construção social, é como as leis. Nós os decidimos como sociedade por meio de processos democráticos. As sociedades podem decidir como organizar seus direitos de propriedade, embora a forma como o fazemos atualmente seja ineficiente. Precisamos criar comunidades onde todos possam viver juntos, e ter moradia é fundamental para o funcionamento da sociedade. A propriedade ou sua disponibilidade pode ser limitada de várias maneiras. Por exemplo, por meio de infraestrutura e transporte público. Dessa forma, as pessoas podem morar mais longe e se deslocar, já que a terra é muito escassa no centro da cidade. É mais barato morar mais longe. Se um bom transporte público estivesse disponível, as pessoas estariam dispostas a morar mais longe. Portanto, a moradia não seria um problema tão sério se houvesse boa infraestrutura. Outro exemplo: no centro da cidade de Nova York, que tem alguns dos imóveis mais caros do mundo, há muitos apartamentos vazios de propriedade de ricos oligarcas russos ou chineses. Eles querem possuir propriedades nos Estados Unidos tanto para lavar dinheiro quanto como um porto seguro. Acho que deveríamos tributar apartamentos vazios muito pesadamente para desencorajá-los de permanecerem vazios, mas se eles permanecerem vazios, pelo menos a receita pode ser usada para construir moradias populares. Você também aponta para as cadeias da dívida e ressalta que a resolução desta crise deve se basear no princípio de que a sustentabilidade da dívida não deve ser alcançada às custas do desenvolvimento humano, uma vez que as atuais políticas de dívida em muitos países em desenvolvimento atendem aos mercados financeiros, não às pessoas. Como resolvemos o problema da dívida? Há duas partes: como evitar o acúmulo excessivo de dívidas e o que acontece quando já existe dívida excessiva. Cada país tem uma lei de falências que reconhece que, às vezes, as pessoas se endividam excessivamente. É um problema tanto para o credor quanto para o devedor. Reconhecer que as pessoas às vezes não conseguem pagar é a razão pela qual a falência existe. Precisamos de um sistema de falências mais humano que permita que as pessoas paguem suas dívidas sem abusos. O que fazemos com o excesso de dívidas quando ele ocorre ex ante? Um bom sistema de falências desencoraja empréstimos excessivos. Mas ainda precisamos de boas regulamentações para impedir que instituições financeiras concedam empréstimos predatórios. Precisamos de leis que aumentem a transparência para que saibamos claramente o quanto as pessoas se endividam… Não podemos impedir isso completamente, mas podemos desencorajar empréstimos predatórios. Você questionou repetidamente o compromisso com a democracia de economistas como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Ambos ganharam o Prêmio Nobel de Economia. Não é uma mensagem assustadora que pessoas que não defendem a democracia possam ganhar esse prêmio e, em última análise, se tornarem modelos para a sociedade? Deveria ter havido mais discussão. As políticas que defendiam não eram muito democráticas. Por exemplo, Milton Friedman era intimamente ligado ao ditador chileno Augusto Pinochet. Friedman não teve escrúpulos em usar esse ditador para impor políticas de livre mercado sem recorrer a meios democráticos, o que acabou sendo um desastre para o Chile. Friedman e Hayek tentaram apresentar um argumento moral a favor do livre mercado e um argumento de que a liberdade econômica era necessária e imperativa para a liberdade política, mas não estavam verdadeiramente comprometidos com a liberdade política. Você escreve em seu livro que “os mercados livres e desenfreados defendidos por Hayek, Friedman e tantos outros direitistas nos colocaram no caminho do fascismo”. Quão perto estamos realmente de sucumbir a esse novo fascismo? Acho que estamos muito próximos nos Estados Unidos. Não é o mesmo que o fascismo do século XX na Itália, Espanha ou Alemanha. O trumpismo é um tipo diferente de autoritarismo. Estamos discutindo muito sobre se os tribunais conseguirão deter Trump, mas há um medo avassalador sobre para onde estamos indo. Na última semana, ele mobilizou a Guarda Nacional e o exército para protestar contra as deportações. O medo é enorme. | A A |
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A A | ![]() “Há uma grande defasagem quantitativa entre o número de estudantes de medicina ou vaga de graduação e o número de médicos residentes. Isso é um problema, porque o país precisa também de especialistas”, afirma Mário Scheffer. Créditos: Getty Acesso a especialistas num país de medicina privatizadaO que a Demografia Médica revela, no momento em que o governo lança Agora Tem Especialistas? Com recursos públicos, país forma profissionais para o setor privado e cria grande fosso no SUS. Como reverter essa tendência e desprivatizar a atenção especializada? Mário Scheffer em entrevista a Gabriel Brito O mês de junho se inicia com uma novidade de peso nas ambições do SUS, através do anúncio do programa Agora Tem Especialista. A iniciativa visa reduzir de vez a espera por cirurgias no país, representa uma tacada política que certamente será instrumento de campanha eleitoral em 2026 e é tratada por Alexandre Padilha como um objetivo primordial de sua gestão no Ministério da Saúde. Para além dos debates técnicos, que serão tratados nas próximas edições do Outra Saúde, o Agora Tem Especialista tenta dar nova prioridade a um gargalo histórico do SUS na atenção de média e alta complexidade. E, como explica Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, essa dimensão da saúde é palco preferencial das desigualdades estruturais em saúde, o que justifica a negociação estabelecida pelo governo federal com o setor privado para a aquisição de seus serviços especializados. “Fica muito claro que temos, no caso dos cirurgiões, uma concentração muito mais favorável à menor parte da população que tem planos e seguros de saúde. E não há outra alternativa a não ser comprar tal capacidade de atendimento, no curto prazo, do setor privado. É preciso que a oferta hoje concentrada no setor privado atenda às necessidades do SUS”, analisou Scheffer. Para embasar seu ponto, o professor tem debaixo do braço aquele que talvez seja o mais detalhado estudo sobre a classe médica brasileira: a Demografia Médica, uma espécie de Censo da categoria, publicado no início deste ano e que traz profundo detalhamento sobre distribuição etária, regional, por gêneros, especialidades, níveis de renda, relações de trabalho, dentre outros indicadores. O documento foi utilizado pelo Ministério da Saúde na elaboração do programa que já havia sido lançado no início do ano, mas agora foi repaginado em razão das imbricadas fórmulas de transação entre setor público e privado no uso de serviços de cirurgia, em especial da bilionária dívida do mercado com o Estado neste âmbito. Na entrevista, Scheffer se debruçou especialmente sobre os capítulos que tratam dos especialistas e da produção cirúrgica no Brasil, o que permite a compreensão do arranjo governamental para tirar o programa do papel. Hoje, o país tem 635 mil médicos, aproximadamente 40% generalistas — número exagerado, pois revela uma crise na oferta de vagas de residência, que forma os especialistas. “O financiamento é quase exclusivamente público nas residências. O campo de prática são os serviços públicos do SUS, não só os hospitais universitários, hospitais escola, mas a rede SUS hoje conveniada inclusive pelas faculdades privadas como campo de prática e também como campo da residência médica. Concluída a formação, o percentual de profissionais a atuar exclusivamente no SUS é baixíssimo. Tal disparidade gera iniquidade, desigualdade de acesso”. Ou seja, aqui Scheffer joga luz sobre uma dimensão fundamental do passivo da saúde suplementar com o Estado, a respeito da formação dos especialistas em falta no serviço público. Em resumo, o SUS forma o profissional, o mercado o leva e a maioria da população padece. “Estamos com quase 60% dos gastos privados em saúde. Com razão, voltamos à defesa de maior financiamento, com fontes estáveis para ampliar a oferta no SUS. E isso inclui atenção especializada: é preciso mais investimentos em serviços e isso demanda garantia de mais financiamento público do que privado. A saída é a desprivatização”. Para além deste objetivo imediato da política pública, a entrevista buscou destacar algumas mudanças do perfil desta categoria: ela se tornou mais feminina e jovem. No entanto, a concentração nas grandes cidades prevalece, o que Mário Scheffer relaciona com o fato de o aumento da oferta de vagas em cursos de medicina ter sido quase todo privado. No caso dos especialistas, cerca de 70% têm vínculo público e privado e presta serviço para ao menos três diferentes estabelecimentos de saúde; e por volta de 18% trabalham mais de 40 horas semanais, o que revela aspectos de precarização da profissão. “É uma realidade da força de trabalho médica em geral, mas no caso da força de trabalho cirúrgica, parece muito mais grave a prática pública e privada, de múltiplos empregos, longas jornadas e imensa fragmentação”, comentou. Confira a entrevista completa com Mário Scheffer. Em linhas gerais, o que a Demografia Médica demonstra da profissão no Brasil? O grande crescimento do número de profissionais médicos nos últimos 10 anos mostra que ela se democratizou pelas classes sociais? Em função da grande expansão de cursos e vagas de medicina, o Brasil vai contar com mais de 1,150 milhão de médicos em aproximadamente dez anos, 5,2 médicos por mil habitantes. É algo que precisa ser avaliado do ponto de vista das políticas. Tal aumento da quantidade de profissionais é decorrência de dois fatores: a política deliberada pelo programa Mais Médicos, que visava prover médicos em regiões desassistidas e, de outro lado, a indução da abertura de cursos e vagas de medicina. Esse aumento será acompanhado da persistência de desigualdades na distribuição ou nós iremos ter políticas que contribuam para aproximara oferta das necessidades de saúde da população? Hoje, o Brasil tem quase 4.900 cidades com menos de 50 mil habitantes. Nessas cidades, habitam 30% da população e só 8% dos médicos. Os profissionais continuam muito concentrados nas grandes cidades, em especial nas 48 com mais de meio milhão de habitantes, onde também vivem 30% da população e 60% dos médicos. A Demografia alerta a necessidade primordial de planejamento, é preciso ter essa noção de que rapidamente o sistema de saúde irá se deparar com a progressão imensa do número de médicos. Devemos olhar alguns movimentos que acompanham isso, pois a formação médica foi delegada essencialmente ao setor privado. Na última década, 92% das vagas foram privadas. Em breve, nós devemos formar 48,5 mil médicos por ano e com uma grande concentração. Hoje já temos 90 cursos de medicina de grandes grupos privados listados na Bolsa de Valores. E parte dessa formação privada é fortemente contestada por entidades e especialistas da saúde, o que inclusive levou o governo a formular o Exame Nacional de Medicina, o Enamed. É preciso também avaliar essa opção pelo mercado porque nós tivemos, de fato, um aumento da oferta às custas da opção pela privatização do ensino. E tudo indica que haverá um novo ciclo de expansão. Nós estamos falando de 450 cursos, mas há indícios de que com o novo edital Mais Médicos de 2023 e a imensa judicialização de aberturas é possível que tenhamos ainda mais. O Sírio-Libanês acabou de abrir mais uma faculdade privada na capital de São Paulo. É preciso olhar a dinâmica de expansão, sobretudo do setor privado, pois tem a ver com a qualidade. O governo tenta administrá-la com a criação do Enamed, iniciativa que tardou a acontecer, mas importante para avaliar essa expansão. O estudo adverte também que essa expansão de oferta de médicos e cursos de graduação não foi acompanhada pela expansão da residência médica, essencial para formar especialistas, outro gargalo que o governo tenta corrigir neste momento de lançamento de um programa de aceleração da oferta de cirurgias. Há uma grande defasagem quantitativa entre o número de estudantes de medicina ou vaga de graduação e o número de médicos residentes. Isso é um problema, porque o país precisa também de especialistas. Está aumentando muito o número de médicos generalistas, o sistema de saúde precisa de bons generalistas, daí a importância da garantia da qualidade neste cenário de predomínio das escolas privadas. Houve um freio na maior diversidade social de profissionais médicos, mesmo após políticas afirmativas das públicas. Quando houve deliberadamente a opção de delegar ao setor privado a expansão começamos a ter um retrocesso, pois o financiamento estudantil não alcançou o mesmo resultado das políticas afirmativas. Nós estamos falando de uma minoria de vagas e de cursos públicos e temos evidências científicas de que, não só por justiça social, aproximar perfis profissionais das necessidades da população é muito bom para o sistema de saúde. Portanto, é importante dizer que o efeito adverso da privatização vai se ampliar neste âmbito se não houver uma regulamentação. Você defende, portanto, mais planejamento estatal na criação de oportunidades para formação de especialistas? Sim, sempre pensando que a formação de especialista se dá principalmente via residência médica, em contexto no qual as bolsas são públicas e o campo de prática é no SUS. É preciso aproximar tal investimento das necessidades estratégicas do SUS, a exemplo do que acabamos de ver com o lançamento do programa Agora Tem Especialista. Hoje os especialistas que atuam na linha de cuidado de câncer, ortopedia e traumatologia têm um impacto muito importante nas demandas do sistema de saúde. É preciso aproximar essa formação das necessidades do SUS. Quanto aos cirurgiões, é um recorte que nos dá informações que os dados mais gerais não dão. É uma questão também metodológica porque, por exemplo, nós não temos nas bases secundárias disponíveis o lugar onde o médico trabalha. Assim, é preciso produzir esse dado primário por meio de inquéritos e por meio de estudos como das cirurgias, em que estudamos a fundo a produção assistencial e também realizamos inquéritos com os médicos. Por isso que a demografia não abordou só a distribuição dos cirurgiões, mas também selecionou três cirurgias mais frequentes: apendicectomia, colecistectomia e correções de hérnias. E fizemos isso perguntando aos especialistas. O que fica muito claro (e já trazíamos em demografias anteriores) é uma sobreposição de disparidades e desigualdades: a desigualdade na distribuição geográfica e territorial entre as regiões e entre os setores público e privado. Uma parte do estudo se dedica às cirurgias e uma demografia dos cirurgiões. A seu ver, quais as informações mais importantes e reveladoras de urgência foram trazidas à tona? Nós lidamos com dados secundários e há limitações, mas a Demografia traz uma descrição muito aprofundada do número de especialistas e suas especialidades. É importante saber de quantos e quais especialistas o sistema de saúde precisa. Um primeiro aspecto é que eles estão em especialidades muito importantes para o SUS, como se vê nas quatro maiores especialidades: clínica médica, cirurgia geral, pediatria, Ginecologia e Obstetrícia (GO). Ao analisarmos o aumento da oferta de especialistas nos últimos 13 anos, tivemos um aumento importante da pediatria, da GO, da medicina de família e comunidade, da cardiologia, mas o que precisa ser discutido é se este quantitativo é suficiente para suprir as novas demandas do SUS, em função dos aspectos do envelhecimento da população, de toda a demanda reprimida na atenção especializada… É preciso discutir, já que temos um déficit importante entre o número de graduados, de recém-formados e de especialistas, na decisão de expandir a residência médica. E é preciso expandir em especialidades estratégicas para políticas relevantes do SUS, por exemplo, a própria atenção primária ou atenção em saúde mental. O país também precisa de bons generalistas, há lugar e espaço no sistema de saúde para generalistas bem formados e precisamos de novos especialistas em especialidades estratégicas, pois a distribuição hoje está nessas especialidades citadas. Temos sete especialidades que reúnem mais de 50% dos profissionais e são de fato aquelas ligadas a problemas de saúde mais frequentes. É um foco evidente de novos investimentos de incremento do SUS nos serviços de chamada média e alta complexidade, como tenta o Agora Tem Especialista? Fica muito claro que temos no caso dos cirurgiões uma concentração muito mais favorável à menor parte da população que tem planos e seguros de saúde. Agora temos evidências mais claras a respeito, o que explica a política de redução de filas. Não há outro caminho a não ser o deslocamento dessa capacidade cirúrgica localizada no setor privado para o setor público. E não há outra alternativa a não ser comprar tal capacidade de atendimento, no curto prazo, do setor privado. É preciso que a oferta hoje concentrada no setor privado atenda às necessidades do SUS. Não entro na discussão mais ampla de concepção do programa ou mesmo de investimentos no SUS, pois é uma outra discussão, mas me parece que hoje a única forma, pelo menos de acordo com os dados sobre as três cirurgias que estudamos e nos dados do inquérito. Veja: apenas 7,7% de cirurgiões atuam exclusivamente no SUS; 20% atuam exclusivamente no setor privado e 72% têm dupla prática, múltiplos empregos, público e privado. É uma força de trabalho estratégica ligada a problemas crônicos de filas de espera, de demandas reprimidas em cirurgias no SUS. A cirurgia compõe esse gargalo da atenção especializada no SUS e muitíssimo concentrado a favor da menor parte da população. O médico é um ponto do sistema de saúde e acompanha a questão estrutural do sistema de saúde, que no Brasil é subfinanciado no aspecto público. Assim, se precisamos aumentar rapidamente a oferta de atenção especializada no SUS e ela está concentrada no privado, além de concentrada em grandes centros, é preciso haver um deslocamento por meio de políticas que levem os profissionais a realizar cirurgias para o SUS. Como você disse, a demografia também relata uma alta densidade de médicos cirurgiões que atendem o setor público e privado ao mesmo tempo e 90% atendem em pelo menos três locais diferentes. Além disso, há uma parcela de 18,7% que trabalha até mais de 40 horas semanais em uma função de alta especialização, de exercício de um trabalho delicado de cuidado. Isso significa também uma precarização dos especialistas hoje disponíveis? Sim, é uma força de trabalho que ao aderir à dupla prática, pública e privada, vive uma fragmentação (a maioria trabalha nos dois setores, nas duas estruturas). No caso cirurgiões, quase 70% trabalham em quatro ou mais locais. Mais de 60% realiza plantões, a imensa maioria é pejotizada, recebe por número de procedimentos. Quando indagamos a respeito de condições de trabalho, os profissionais reportam problemas de condições de trabalho, sobretudo os médicos que fazem cirurgias em serviços do SUS. Fala-se de problemas com leitos, inadequação de leitos de enfermaria e de UTI, para cirurgia, problemas com segurança dos próprios pacientes e profissionais no bloco cirúrgico…. A percepção das condições de trabalho sempre é pior entre os cirurgiões que atuam no SUS. Esta é uma realidade da força de trabalho médica em geral, mas no caso da força de trabalho cirúrgica, parece muito mais grave a prática pública e privada, de múltiplos empregos, longas jornadas e imensa fragmentação. Uma política imediata de redução de filas em curtíssimo prazo, como ora em curso, precisa lidar com essa situação. Não é uma situação que vai se solucionar de um dia para o outro. É preciso agilizar uma redução de filas e, insisto, precisamos de um deslocamento dessa capacidade hoje concentrada no setor privado para o setor público. A demografia amplia a compreensão sobre os médicos envolvidos com as práticas cirúrgicas, porque pela primeira vez nós juntamos a produção cirúrgica do SUS e dos planos de saúde, combinando com as informações em inquérito e temos evidências sobre essa outra dimensão da desigualdade. Assim, teríamos aqui outra dimensão do privilégio do setor privado garantido pela ação direta do Estado, não só pela conhecida discussão da dívida da saúde suplementar com o SUS como também neste aspecto formativo, onde a estrutura pública é trampolim para o atendimento particular? Essa é a realidade: quem possui plano de saúde hoje tem à sua disposição muito mais cirurgiões, realiza mais cirurgias, não só eletivas, como ainda mais as de urgência. Isso nos coloca de volta ao início da discussão, pois estamos falando de uma formação especializada financiada por bolsas públicas. O financiamento é prioritariamente, quase exclusivamente público, nas residências. O campo de prática são os serviços públicos do SUS, não só os hospitais universitários, hospitais escola, mas a rede SUS hoje conveniada inclusive pelas faculdades privadas como campo de prática e também como campo da residência médica. Concluída a formação, o percentual de profissionais a atuar exclusivamente no SUS é baixíssimo. Certamente uma grande parte são residentes que estão em formação e depois de formados assumem a dupla prática, de múltiplo emprego e de concentração no setor privado. Tal disparidade na oferta tem de receber uma atenção, porque gera iniquidade, desigualdade de acesso. Tem de haver uma desprivatização, ou deslocamento, para o SUS de parte da oferta, hoje concentrada em benefício de uma clientela particular, o que envolveria União, estados, municípios, mais financiamento público, regulação de preços e de práticas. Esse deslocamento de especialistas para o SUS poderia ter efeitos positivos também na atenção primária? Aqui, entro numa dimensão que o estudo não traz com profundidade, mas em alguns estudos o preço praticado por procedimentos pelo setor privado e pelo SUS, muitas vezes, é o que influencia a adesão do profissional a esse ou aquele serviço. Quando perguntamos aos profissionais o que pensam para reduzir as filas de cirurgia no SUS, recebemos várias respostas e alternativas: 50% deles falam que precisa aumentar o valor dos procedimentos, mas achei interessante porque parte importante dos cirurgiões reconheceu que é preciso fortalecer a atenção primária, no sentido de ser mais resolutiva e evitar agravamentos que depois demandam necessidade de cirurgias; outra parte importante dos cirurgiões fala da necessidade de regular e de estipular tempos máximos de espera… Nós temos de chegar a consensos entre gestores, prestadores, médicos, porque a situação é complexa, o problema é multideterminado, nós não podemos entrar numa discussão de que isso é, por exemplo, apenas um desejo, uma opção deliberada dos médicos. Eles integram um sistema de saúde que estruturalmente está organizado dessa forma. Assim, nada melhor do que ter dados e evidências científicas. O objetivo nosso é uma base empírica comum para um debate sobre soluções consensuadas entre tantos interesses. O que fica claro com a pesquisa é que a atenção especializada está muito mais concentrada hoje no setor privado. Por isso o Ministério anunciou, e com razão, a única solução em curto prazo, a compra da capacidade instalada no setor privado. Sem contar que no caso das especialidades estão ainda mais concentradas do que os médicos em geral, também muito concentradas nos grandes centros, porque aqui nós estamos falando de cirurgias que demandam internação, o que significa a concentração dos equipamentos. É preciso olhar para os dois níveis de desigualdade, uma desigualdade territorial, mas também entre público e privado. Dessa forma, ao atacar o subfinanciamento do SUS também se poderia tocar na “fila estrutural das cirurgias”, isto é, nas condições que levam à criação dessa pressão para procedimentos de média e alta complexidade. No médio e longo prazo é financiamento, pois enquanto persistir a equação de maior volume de gastos privados do que público, a consequência é um sistema desigual, estratificado, com várias vias de acesso, com profissionais com a prática fragmentada em múltiplos vínculos. Como mostram as últimas pesquisas do IBGE, estamos com quase 60% dos gastos privados em saúde. Com razão, voltamos à defesa de maior financiamento, com fontes estáveis para ampliar a oferta no SUS. E isso inclui atenção especializada, é preciso mais investimentos em serviços e isso demanda garantia de mais financiamento público do que privado. A saída é a desprivatização, do financiamento primeiro e depois da capacidade instalada, que hoje beneficia a menor parcela da população e fica muito nítido na atenção especializada. | A A |
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A A | Psiquiatria: reduzida à prescrição de remédios?Em entrevista, Juliana Belo Diniz aponta como a sociedade e trabalhadores da saúde mental sofrem as consequências de discurso reducionista que reduz sofrimento psíquico a desordem química. Cenário favorece a hipermedicalização, celebrada pela indústria farmacêutica É preciso mudar a forma como se abordam os transtornos mentais em nossa sociedade, alertou a psiquiatra Juliana Belo Diniz, em entrevista concedida a Outra Manhã, o programa matinal ao vivo de Outras Palavras, na última segunda-feira (12/5). É cada vez mais disseminada na sociedade a ideia de que a origem do sofrimento psíquico está em desequilíbrios químicos no cérebro. Na prática, isso tem servido à hegemonia de uma psiquiatria que recorre exclusivamente à medicação como tratamento – para a felicidade e o lucro da indústria farmacêutica. “A indústria explora a ideia de que, se você tiver um discurso palatável, compreensível e simples da doença mental, isso vai favorecer a identificação das pessoas. Elas vão assumir que aquela é a sua forma de sofrimento e vão procurar tratamento médico. Tem todo um discurso de boas intenções, de ampliar o acesso, de que as pessoas possam ter acesso a ferramentas que podem ajudá-las com seu sofrimento, de tirar a doença do âmbito moral”, ela explica. Também psicanalista e pesquisadora do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC-USP), Diniz avalia que as consequências desse processo são funestas para o bom trabalho na área da saúde mental: “As pessoas passam a usar os critérios diagnósticos do DSM como uma verdade absoluta, um fato cientificamente incontestável. Vejo que muitos colegas concordam que isso é um reducionismo absurdo da psiquiatria. Leva as pessoas a trazerem o seu sofrimento de uma forma completamente despersonalizada e a procurar saídas farmacológicas – ou psicoterapêuticas, mas voltadas para a supressão de sintomas –, com a ideia de que ‘se eu medicar isso aqui que eu sinto, tudo vai ficar ótimo’, o que obviamente é uma visão bastante deturpada da vida.” Recentemente, Diniz lançou o livro O que os psiquiatras não te contam, que “surge da demanda de responder a essa visão de uma psiquiatria extremamente reduzida e focada na ideia de sintomas que respondem a certos remédios”. Outra Saúde publicou, com exclusividade, um trecho da obra. Na entrevista, a autora frisa que a ascensão desse modelo médico não está desconectada da precarização do trabalho na Saúde: “O indivíduo que medica é pressionado a atender cinco pacientes por hora e marcar retorno só para daqui a seis meses. Nessas condições, mesmo colegas que são ótimos profissionais, não vão conseguir fazer um bom trabalho. A prescrição de remédios vira a ‘solução’ até para os que não concordam.” ![]() É nessa dinâmica que a hipermedicalização se torna uma consequência quase natural, ela aponta. “Remédio não é ruim, a gente precisa deles e em muitos momentos eles são ferramentas úteis. Mas saber que eles são limitados é extremamente importante, porque você não assume essa limitação, os profissionais correm atrás do próprio rabo e medicam cada vez mais sintomas que claramente não vão responder a remédio. A consequência são aquelas pessoas que a gente vê com prescrições de dez drogas diferentes em doses altíssimas”, avalia a psiquiatra. A partir desse fenômeno, a psiquiatria é “convocada a resolver problemas sociais” que evidentemente possuem raízes muito mais profundas que apenas transtornos de ordem psíquica. A partir do exemplo dos casos extremos de violência entre menores de idade organizados via redes sociais, que vêm sendo divulgados na imprensa, ela provoca: “A psiquiatria vai pôr todos esses adolescentes em um consultório? Vai medicar todos eles? Responder isoladamente a essas questões não vai dar nenhum resultado”. Diniz aponta que o mesmo pode ser dito da explosão de diagnósticos no âmbito escolar, que preocupa os profissionais da educação pública devido à impossibilidade prática de oferecer cuidados extremamente específicos a todos os jovens que receberam um laudo – os de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositor Desafiante (TOD), oferecidos até mesmo a crianças com sintomas bastante leves, sendo os mais comuns. No âmago dessas transformações regressivas na psiquiatria brasileira, a autora revela que há um aspecto internacional. “De certa forma, existe uma tentativa de colonização do Brasil por um discurso da psiquiatria norte-americana, que diz que não interessa qual é a história [do paciente] e como ele chegou até aqui, o fato é que hoje ele está assim e que a gente precisa medicar. A gente acaba sendo muito dependente dessas fontes de pesquisa, e acaba não levantando a voz por ter receio de ser reprovado”. Por isso mesmo, defende Juliana, é cada vez mais importante abordar criticamente, com o público geral e os profissionais da área, o discurso biologizante sobre os transtornos mentais – e construir mudanças políticas, sociais e econômicas com efeitos nas questões mentais, a verdadeira alternativa para começar a construir um caminho positivo em uma área ainda cheia de incertezas. “O Thomas Insel, que foi diretor por mais de uma década do órgão de distribuição de recursos para pesquisas em saúde mental dos Estados Unidos, recentemente lançou um livro dizendo que a neurociência não revolucionou em nada a doença mental nos últimos 30 anos. Não sou só eu, uma ‘neurocientista radical da periferia’, dizendo isso. É qualquer neurocientista sério que conhece profundamente a área que vai dizer isso. A gente não revolucionou as doenças mentais, porque a gente ainda consegue explicar muito pouco delas”, completou Diniz. | A A |
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A A | Para escapar do TecnofeudalismoEntrevista com um dos pensadores que veem a emergência de um novo modo de produção, mais predador que o próprio capitalismo. Apoia-se em Habermas e Marx. Sugere: para virar o jogo, é preciso fazer das Big Techs monopólios públicos Cédric Durand, em entrevista a Diego Velásquez, no Nuso Há algo de novo em ilustrar a maneira como os futuros punks e distópicos, imaginados na segunda metade do século XX, se estabeleceram como realidade? Provavelmente não. De qualquer forma, não é aí que reside a originalidade do pensamento do economista francês Cédric Durand. Parte de sua proposta foi elaborada em seu livro Tecnofeudalismo. Crítica da economia digital 1 . Durand baseia-se no estudo da dinâmica de investimento das Big Techs, nas margens de lucro excessivas e nos métodos de apropriação do conhecimento nas cadeias de valor globais, para propor a hipótese de que uma transformação qualitativa do capitalismo está ocorrendo, realizada pelos gigantes tecnológicos. A hipótese de uma feudalização do capitalismo, que ele desenvolve nesta entrevista, serve para detalhar esse repertório reacionário, mas também para propor novas formas de intervenção pública e repensar o papel do Estado nesse campo. Lendo seu livro, a primeira coisa que se torna evidente é o paradoxo temporal em que nos encontramos. Ou seja, as discussões intelectuais tendem a caracterizar o tempo presente entre o aceleracionismo e a hipermodernização, mas você sustenta que devemos olhar para as tendências feudalizantes da acumulação. Como chegamos a esse ponto? Uma das grandes lições do século XX é que a história não tem um significado determinado, nem no nível teleológico nem nos seus ritmos. Há o que o filósofo francês Daniel Bensaïd chamou de discordância dos tempos 2 : diferentes temporalidades com diferentes lógicas. Por outro lado, a segunda questão que é importante mencionar é que o que o capitalismo certamente produz é uma maior socialização objetiva do trabalho e, em última instância, as condições para que a humanidade progrida em direção a uma maior capacidade de controle de seu destino coletivo. Sim, o capitalismo produz isso. Mas o capitalismo também gera tendências reacionárias e ambas podem coexistir. De fato, há dimensões de socialização que são progressivas e, ao mesmo tempo, outras dimensões que são mais reacionárias. A tese que defendo no livro pretende romper com essa visão irônica que se difundiu nos anos 1990, como se fosse de direita, que dizia: “Voilà , caminhamos para um novo capitalismo: uma nova economia regenerada, com muita competição, muita criatividade”. Mas, no final das contas, o que temos são supermonopólios hiperpredatórios. Mas também era um discurso que se encontrava em certos setores da esquerda, especialmente na corrente aceleracionista, próxima de Toni Negri, que era muito otimista quanto à ideia de que o general intellect que emergiria de tudo isso seria a base de uma democracia radical que já estava ali. E isso também não aconteceu… essa é a questão. De qualquer forma, não sou o primeiro a fazer essa analogia entre feudalismo e capitalismo, nem a apontar as tendências feudais que existem dentro do capitalismo. Se a crescente acumulação de poder por setores técnicos dentro da estrutura empresarial também foi trabalhada por John K. Galbraith na década de 1960, em sua análise da formação de uma tecnoestrutura empresarial, o que você descreve é uma dinâmica generalizada fora do circuito empresarial? Absolutamente. Mas se formos específicos sobre a questão do feudalismo, Karl Marx já retomou Charles Fourier e falou de feudalismo industrial para se referir às grandes concentrações financeiras que eliminavam a concorrência e organizavam os diferentes ramos da indústria de uma maneira altamente monopolista. Em particular, Marx tinha em mente o desenvolvimento do crédito sob o regime de Napoleão III na França, com os irmãos [Émile e Isaac] Pereire. No campo da filosofia política, temos Jürgen Habermas, que falou da refeudalização da esfera pública, ou seja, a falta de autonomia dos agentes impede a sustentação de uma conversa pública autêntica, que é, em última análise, onde emerge um processo deliberativo substancialmente rico. Segundo Habermas, esse afastamento levou à ausência de uma esfera pública, à sua atrofia, o que resultou na refeudalização 3 . Na década de 1990, também foram realizados estudos sobre o recuo pós-soviético em direção às formas feudais. Mais recentemente, no campo digital, tem-se trabalhado de forma semelhante à de Habermas em referência à existência de um feudalismo digital. Então, há várias ideias que vão nessa direção. Penso que o que há de original no meu trabalho é partir dessa abordagem, mas insistir na estrutura de custos e no tipo de estratégia econômica associada, bem como no que isso implica nas relações de produção. Então poderíamos dizer que no meu trabalho há um tratamento da economia política hardcore, presente em particular a partir da segunda parte do livro, e isso é algo único em comparação com outros estudos, que tendem a ser bastante alusivos ou focados no campo da ciência política. Qual seria a especificidade que esse ângulo de análise proporciona? Para ser mais preciso, o feudalismo não é um retorno às formas individualizadas de produção. Afinal, o feudalismo certamente implica a dependência de servos, mas também pressupõe a existência de camponeses autônomos e independentes, trabalhando com seus próprios meios de produção, suas próprias ferramentas, etc. Não é disso que estou falando. No que me diz respeito, o que estou descrevendo aqui é uma forma extrema de socialização do trabalho, mas que assume uma característica particular: a monopolização do que chamo de gleba digital. O paralelo com o sistema feudal surge quando vemos que a lógica da produção é substituída pela da predação. E se nos tempos feudais isso estava estritamente ligado ao controle da terra, hoje se trata de monopolizar o conhecimento. Em termos gerais, isso inclui os dados, os algoritmos, a infraestrutura necessária para operar (incluindo elementos físicos como data centers, cabos, etc.) e as habilidades necessárias para organizar tudo isso. Então é uma espécie de monopolização dessas ferramentas, que não são meios de produção no sentido tradicional, mas meios de coordenação. E toda coordenação social, seja nas relações privadas entre indivíduos, nas empresas produtivas ou mesmo nos Estados, depende do acesso a recursos extremamente concentrados. Sua concentração é explicada por razões muito simples. Primeiro, a produção desses recursos exige economias de escala extraordinárias, que assumem duas formas. A primeira é que as fontes originais de dados – ou seja, os primeiros pontos de coleta – são extremamente raras. Já transformamos quase tudo no mundo que poderia ser transformado em dados, e agora obter novos dados significa principalmente encontrar dados de alta qualidade. Portanto, aqueles que conseguiram capturar esses pontos de acesso a dados posicionaram-se como um monopólio que pode ser comparado, de forma tradicional, à concentração de terras. Em segundo lugar, há uma dinâmica de custos inerente ao mundo da informação. Isso significa que, uma vez criado um banco de dados, algoritmo ou serviço digital, os custos operacionais diminuem continuamente. O custo marginal é praticamente zero. E, claro, aqueles que estão em primeiro lugar – os chamados hiperescaladores – podem se avançar extremamente rápido. A combinação desses dois elementos – uma lógica rentista associada à terra e, ao mesmo tempo, uma lógica industrial radicalizada – se conjuga nessas novas ferramentas, e isso gera uma tendência à monopolização extremamente forte. Essa monopolização extrema se traduz na existência de um pequeno grupo de agentes digitais que poderíamos chamar deknowledge agents [agentes do metaconhecimento], que capturam diretamente a mais-valia e se tornam indispensáveis, e por meio dessa centralização adquirem, sem dúvida, um papel econômico muito importante, mas fundamentalmente político. Por que um papel político? Porque organizar conhecimento e coordenação não é a mesma coisa que vender meias; trata-se de algo vital que constitui uma comunidade. Outro dos paradoxos que você aborda é o fato de que essa acumulação monopolista da estrutura e do conhecimento digital contradiz fortemente as promessas feitas pelo Vale do Silício desde sua criação, mas também os dois mitos fundamentais na articulação da narrativa neoliberal. Nesse sentido, o que o momento atual nos diz sobre as ideias que sustentam que o melhor meio de coordenação é por meio do mercado e que a propriedade privada é a melhor maneira de garantir a liberdade? De fato, o momento em que a narrativa do Vale do Silício se tornou o discurso econômico dominante foi no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Antes disso, havia um discurso sobre a “nova economia”, mas era mais uma observação das mudanças em andamento do que uma doutrina econômica consolidada. No entanto, esse momento do final da década de 1990 é bastante paradoxal porque coincide com as primeiras grandes crises financeiras nos países do Sul. Já tivemos a crise asiática na década de 1980, a crise mexicana em 1994, a crise asiática novamente em 1997 e a crise russa em 1998. Tudo isso começa a abalar seriamente o que deveria ser o grande e novíssimo projeto do neoliberalismo: a abertura completa dos mercados de capitais. Ao mesmo tempo, a transição pós-socialista ocorria nos países do Leste Europeu, o que se revelou um fracasso monumental em termos de impacto socioeconômico. Vale lembrar que a Rússia, por exemplo, reduziu seu PIB pela metade nesse período. As vantagens aparentes da abertura do mercado geralmente se traduziam em uma espécie de selvageria brutal que empobrecia quase todo mundo. Portanto, a ideia de que simplesmente liberalizar e privatizar seria suficiente está começando a perder credibilidade. É nesse contexto que a narrativa do Vale do Silício é apresentada como novidade. O que eles nos dizem é: “Ok, não se trata apenas de abrir o mercado, mas de criar condições necessárias para a inovação. As novas empresas não são como as de antes”. Assim, a regeneração do tecido produtivo das startups, que eventualmente se transformam em grandes empresas, fecharia o círculo virtuoso de um processo muito schumpeteriano de destruição criativa. É justamente nesse ponto que se constrói a doutrina do Vale do Silício, ou o que poderíamos chamar de “consenso do Vale do Silício”. Que é basicamente o mesmo que o neoliberalismo, mas com uma adição fundamental: o reforço da propriedade intelectual para proteger os inovadores. A ideia é simples: para que a inovação ocorra, é preciso proteger a renda de quem a desenvolve. O que isto significa? Primeiro, fortalecer a renda associada à propriedade intelectual. Em segundo lugar, reduzir os impostos sobre o capital, pois considera-se que isso recompensa fundamentalmente a inovação e o empreendedorismo. Então temos como resultado uma história schumpeteriana, inovadora, que se sobrepõe ao discurso neoliberal clássico e cuja melhor ilustração são as startup, que é algo extremamente cool. Você começa com amigos, tem uma boa ideia e talvez fique muito rico ou até mesmo mude o mundo. É, em essência, o sonho. Pura diversão na garagem de casa… A realidade é que a maioria das startups, obviamente, fracassam. Existem pouquíssimas histórias de sucesso e, quando startups têm sucesso transformam-se em grandes e velhas empresas extremamente agressivas. O termo “inovação” está constantemente presente em seus textos porque parece estar localizado no cerne da narrativa do Vale do Silício. Nesse sentido, correntes libertárias parecem usar a tentativa de vários governos latino-americanos de ampliar a presença do Estado na economia para sugerir que o planejamento estatal não funciona e é contrário a toda inovação. Algo semelhante à queda da União Soviética, decisiva para consolidar a racionalidade do Consenso de Washington. É possível pensar em inovação e planejamento de forma não excludente? Essa é uma ótima pergunta. Na verdade, é muitas vezes o que se opõe à ideia de planejamento. A resposta pode ser bem simples: o planejamento não é exclusivo da URSS. Planejamento também é China. Hoje em dia na China, há muito planejamento e, do ponto de vista da inovação, é o lugar mais dinâmico depois dos Estados Unidos. Ainda não estão no limiar, mas… É, no entanto, um exemplo que pode causar receios ou objeções devido à lógica autoritária que existe no país… Bom, esse é outro problema que não tem nada a ver com inovação, mas com ditadura. Podemos pegar outro exemplo: a Coreia do Sul. Na época, era uma ditadura, mas a economia era profundamente planejada. Era uma ditadura pró-capitalista. De fato, a França do pós-guerra também teve um planejamento significativo. Não era uma superdemocracia, mas também não era uma ditadura. Outro exemplo: a social-democracia sueca. Quando falamos de planejamento, é um conceito muito vago. Do que exatamente estamos falando? No fundo, estamos falando da socialização do investimento e é isso que é decisivo. E a socialização do investimento existe mesmo dentro do capitalismo, em graus variados. Em sua forma mínima, ele é regulamentado para proibir certos tipos de investimento. No seu extremo, encontramos formas muito fortes de socialização de investimentos, como na França do pós-guerra ou na Coreia do Sul. Isso implicava alta tributação sobre os lucros e, ao mesmo tempo, controle rigoroso do crédito, indicando quais tipos de projetos eram permitidos e quais não. Essas são formas muito avançadas de planejamento, mas isso não significa que o mercado desapareça completamente ou que a inovação dos produtores seja eliminada. O objetivo é estabelecer setores prioritários para o desenvolvimento, mas a forma como os investimentos são feitos nesses setores fica a cargo dos produtores. Em outras palavras, o planejador pode dizer: “Construam uma linha de produção para roupas esportivas de alta qualidade”. Mas o tipo específico de têxteis, as máquinas utilizadas ou a organização do trabalho são decisões tomadas pelos produtores, que geralmente são empreendedores, embora também possam ser cooperativas ou empresas locais. Na minha opinião, a chave está aqui: a inovação efetivamente requer uma forma de indeterminação e é necessário deixar espaço para essa flexibilidade. Mas essa indeterminação não é de forma alguma incompatível com formas de socialização que definem a direção onde se deve avançar. De fato, o planejamento de inovação existiu e continua existindo em uma escala muito ampla. No setor público, isso é evidente. Tomemos o caso da França: os TGVs [trens de alta velocidade] são o resultado de grandes programas públicos. Há muitos exemplos assim, alguns bem-sucedidos, outros nem tanto, mas muitos deles funcionaram muito bem. Se tomarmos o caso dos Estados Unidos, como mostra o trabalho de Mariana Mazzucato 4 , toda a pesquisa fundamental por trás dos produtos tecnológicos do Vale do Silício foi financiada pelo Departamento de Defesa. Isso significa que houve uma direção quando se decidiu trabalhar em mecanismos de geolocalização, veículos autônomos e outros avanços. Então, o passo final para a implementação foi dado pelos empreendedores. O que eu quero enfatizar é que, claro, há gênio e criatividade humana, mas eles não estão necessariamente ligados ao mercado. É preciso haver espaço para flexibilidade. O mercado, no campo dos bens de consumo, ajuda a selecionar o melhor modo de produção, mas grande parte do esforço inovador ocorre fora do mercado, realizado por cientistas ou mesmo burocratas, em menor grau, que decidem em que direção seguir. No caso dos EUA, fala-se até de um “Estado desenvolvedor secreto”, porque não existe apenas a DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa), mas também programas de saúde e outros projetos locais, embora alguns sejam redundantes entre si. Em resumo, para encerrar este tópico sem entrar em muitos detalhes, é verdade que inovação requer flexibilidade e indeterminação. Mas a ideia de que o mercado é o único impulsionador da inovação é em grande parte falsa. Isso é só na fase final de comercialização, mas tudo isso é apoiado por estruturas burocráticas que sustentam a inovação, mesmo em um país como os Estados Unidos. Muitos podem dizer que a competição é a melhor maneira de evitar a concentração de poder das Big Techs. O que você acha? Com a eleição de Donald Trump, parece que já não iremos mais nessa direção, mas antes de ele chegar ao poder havia um argumento bastante forte, especialmente nos EUA sob a liderança da presidente da Comissão Federal de Comércio, Lina Khan 5 e, até certo ponto, na Europa, que assumiu uma postura muito dura contra Big Techs. É bastante correto que os reguladores estejam preocupados com o impacto das Big Tech, dizendo: “cuidado, isso é perigoso para o futuro das nossas economias porque criará desigualdades extraordinárias, mas também representa desafios políticos porque seu poder ameaça a autonomia das instituições públicas ”. Esta análise é completamente correta e necessária, temos razão em nos preocupar com isso. No entanto, a resposta que propõe enfrentá-las por meio do desmantelamento das Big Techs e promovendo uma maior concorrência, parece-me insuficiente, ou poderíamos dizer, subótima. Claro, pode ser melhor ter muitas pequenas empresas privadas do que um grande monopólio privado sobre o qual não temos controle. Mas o ideal seria ter um grande monopólio sob controle público ou pelo menos fortemente regulamentado. Porque? Simplesmente porque existem lógicas naturais de monopólio que mencionei antes. Se uma empresa como o Google funciona tão bem, é justamente graças à fertilização cruzada entre seus diferentes serviços. O que acontece no Gmail influencia o que acontece no Google Maps, e vice-versa. Então a grande questão é como o Google ganha dinheiro… por meio de publicidade personalizada. Mas ele faz isso distribuindo anúncios por todo o seu ecossistema de serviços, mantendo os custos relativamente baixos. Se fragmentarmos esses serviços, isso significaria ter vários provedores que teriam que buscar sua remuneração em cada um desses serviços. O resultado? Mais comercialização de cada serviço. É realmente desejável? Eu não acho. É verdade que ao desmembrar o Google poderíamos reduzir seu poder concentrado e isso seria positivo, claro. Mas, por outro lado, teríamos serviços de menor qualidade e mais comercializados e isso, do meu ponto de vista, não seria um resultado positivo. Não há razão para impor algo assim a nós mesmos. Acho isso importante. Talvez eu possa dar um exemplo para ilustrar isso melhor. Sim, vá em frente… Agora na Europa, ao comprar um celular Android, você tem a possibilidade de escolher entre diferentes mecanismos de busca. Ao configurar seu dispositivo pela primeira vez, ele pergunta se você prefere Google, Bing ou outros, dependendo do país. Mas a questão importante é: como os mecanismos de busca entram nessa seleta lista? Por trás das opções que seu telefone oferece, há um sistema de leilão: as empresas devem pagar e aquelas que oferecem mais dinheiro ficam nos quatro primeiros lugares que são mostrados em cada país. O problema é que os melhores mecanismos de busca, aqueles que mais respeitam a privacidade do usuário, são aqueles com menor capacidade de gerar receita. Portanto, eles têm menos chances de competir nesses leilões. É o que explica o buscador DuckDuckGo: eles dizem que não têm chance de ganhar o leilão porque, justamente por exercerem uma prática ética, a renda que geram é mínima. Isso não significa que eles não sejam úteis para os usuários, mas eles não podem se financiar por meio de publicidade na mesma medida que os outros. Aqui fica evidente a clara contradição entre valor de uso e valor de troca, uma vez que a mercantilização dos serviços digitais, associada à sua extrema fragmentação, acaba destruindo o valor de uso. Penso que esta é a contradição fundamental. Vamos agora dar um grande salto: acontece que o reino digital é, em essência, uma objetificação do social. Em parte, mas é basicamente isso. Retomando os termos de Frédéric Lordon, poderíamos chamar de “transcendência imanente” 6 . O que é digital, realmente? Não são seus dados ou os meus separadamente, mas a inter-relação entre os nossos dados. E isso é o social! Uma substância social. E aqueles que controlam essa substância social conseguem se apropriar da renda que ela gera. Agora, se fragmentarmos essa substância e colocarmos essas partes no mercado, estaremos agindo de forma absurda porque essas conexões já existiam naturalmente. É por isso que sou a favor de opções públicas e regulamentações fortes. Aí podemos entrar em outra discussão, por exemplo: até que ponto os dados devem ser acessíveis e para quem? Acredito que deveriam ser acessíveis, mas regulamentados. Algo semelhante acontece com os arquivos nacionais: é possível acessá-lo se você faz uma solicitação a um Comissão e pode usá-los para pesquisa, projetos públicos ou, inclusive, empresariais, sob licenças específicas. Construir dados como um bem comum não significa torná-los irrestritamente disponíveis no mercado, mas sim tratá-los como um bem comum. Outra abordagem promove a discussão sobre a responsabilidade dos algoritmos. Algoritmos criam efeitos reais: de engarrafamentos à depressão entre os adolescentes, passando por diferentes formas de contaminação. Se formos capazes de demonstrar a relação entre o uso do algoritmo e esses efeitos, a responsabilidade criminal deve recair sobre aqueles que os desenvolveram ou implementaram. Isso não significa que temos que entender como cada algoritmo funciona, mas sim responsabilizar legalmente aqueles que os implementam pelos resultados que geram. Um terceiro mecanismo seria o modelo golden share (ação de ouro), muito utilizado na China. Esse mecanismo implica que o Estado tenha poder de veto sobre os conselhos de administração de determinadas empresas. Isso permite que as autoridades antecipem os movimentos de inovação tecnológica, em vez de sempre correr atrás deles tentando regulamentar depois que os efeitos já estão presentes. Para a América Latina ou mesmo para países como a França, esse sistema não será de grande utilidade, mas nos Estados Unidos é um debate que pode ser muito importante. Por fim, outra opção é construir alternativas públicas. Hoje, um mecanismo de busca público pode ser uma resposta viável… Algo semelhante ao que o Brasil está fazendo atualmente com o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO). Exatamente. O que o Brasil está fazendo é muito bom, mas mesmo para o Brasil, que é um país grande e com recursos significativos, será difícil alcançar os mais avançados nesse campo. O que sustentamos é que todos os países, exceto os Estados Unidos e, em menor grau, a China, hoje dependem do sistema digital. Portanto, todos esses países deveriam ter interesse em criar uma infraestrutura pública global mínima no campo digital. Isso pode parecer utópico, mas acho necessário levantar a questão, mesmo que isso não pareça viável hoje. Seria algo como o que surgiu com a União Postal Universal: uma coordenação internacional no campo digital, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU); e se isso não funcionar, pode ser por meio de uma organização paralela, que pode fornecer um conjunto de serviços digitais básicos. Estamos falando de coisas como poder de computação, sistemas de alocação de endereços, mecanismos de busca — serviços que podem não ser extremamente sofisticados ou avançados, mas que oferecem uma forma de infraestrutura robusta, acessível e relativamente neutra. Algo como uma estrutura acordada entre diferentes Estados em nível internacional. Essa seria uma das condições necessárias para seguir em frente. Nas décadas de 1950 e 1960, houve muito debate sobre a ideia de computer as public utility [o computador como serviço público] e acredito que precisamos reavivar essa discussão hoje, porque agora vemos como os monopólios privados estão cumprindo funções que deveriam ser de utilidade pública. E isso é muito perigoso, por um conjunto de razões que poderíamos detalhar, mas principalmente porque coloca em xeque a soberania dos Estados. Assim como o exemplo da América Latina é útil, o da Suíça, por exemplo, também o é. Eles percebem que dependem das Big Techs para serviços essenciais e não gostam muito disso. Ninguém quer estar nessa situação. Parece que a resposta às grandes empresas de tecnologia está focada na via legal, com as medidas antimonopólio promovidas nos EUA e as tentativas de regulamentação pela União Europeia, mas me pergunto que outras respostas políticas podem ser formuladas, porque a união interestatal parece ser o ideal, mas muito longe das reais possibilidades no momento… É verdade que pode parecer utópico, mas quando vemos o Brasil tomando uma iniciativa… É ótimo que o Brasil faça isso. Mas o que o Brasil deveria fazer é aproveitar essa iniciativa para propor a união de outros países. Obviamente, não será um acordo global com todos os países. Mas o que eu quero dizer é que é importante levantar a questão, o Brasil está considerando isso, na Europa alguns países estão refletindo sobre isso, a Suíça também está se fazendo a mesma pergunta. Em algum momento essas opções devem ser fortalecidas por meio da cooperação. Se os Estados perceberem que há uma ameaça existencial à sua capacidade de autonomia política, ou seja, que sua capacidade decisória e soberania estão em jogo, em algum momento isso os fará reagir. Então, embora não esteja sendo implementado agora, é uma questão tão imediata e realista do ponto de vista da capacidade dos Estados de autonomia de ação que inevitavelmente será pleiteado. Há uma questão que permanece latente e sem resposta: a desconexão entre a ameaça aos Estados como entidades abstratas e a ameaça aos indivíduos em um nível mais específico. Se as grandes empresas de tecnologia em sua forma atual são onipresentes em nossas vidas, apropriando-se de dados e conhecimento coletivo, como podemos politizar essa questão? Ou seja, como poderíamos construir uma “consciência de classe tecnológica” para enfrentar esse tipo de exploração? Na minha opinião, não existe uma solução única que valha a pena. De fato, muito tem sido tentado através de software livre, plataformas alternativas, etc. E não tem problema tentar. Mas, na realidade, a maioria desses dispositivos está associada às Big Techs ou é usada por elas. Por exemplo, grande parte dos projetos de software das Big Techs são lançados na forma de software livre, para o qual a comunidade de pesquisadores, engenheiros, etc. é mobilizada. E, no final, como as empresas são donas das infraestruturas e serviços complementares, elas acabam concentrando as soluções desenvolvidas pela comunidade de software livre em seus produtos comerciais. Ou seja, eles se apropriam do trabalho realizado pela comunidade. Se tomarmos, por outro lado, os serviços digitais desenvolvidos fora do radar das Big Techs, é verdade que eles podem oferecer certas garantias em proteção de dados, mas invariavelmente também dependem de uma série de serviços produzidos pelas Big Techs. Existem pouquíssimos espaços que são completamente autônomos dessas empresas. Porque? Porque são habilidades gerais. No pior dos casos, estamos falando de cabos e infraestrutura física básica, etc. Então, como você politiza isso no nível individual? Acredito que há várias maneiras. Isso pode me desviar um pouco do assunto, mas acho que chegamos a um ponto de ruptura na digitalização do mundo. Percorremos um longo caminho, e até as Big Techs percebem que estamos atingindo certos limites. Ou seja, mesmo que as tecnologias continuem a ser implantadas, já sabemos o que elas podem fazer. Percebemos que elas de fato cumprem certas funções, mas também não vão mudar tudo. E, por outro lado, há um sentimento de que as Big Techs são muito invasivas: há problemas de saúde pública, problemas ecológicos. Acredito que todos esses elementos nos levarão a questionar qual é realmente o lugar do mundo digital em nossas vidas, nos sistemas educacionais, nos tipos de interação, etc. Acredito que essa será uma das conversas principais. Quanto espaço damos ao mundo digital? Quais tarefas atribuímos ao mundo digital e quais decidimos fazer de forma diferente? Por exemplo, poderíamos criar espaços livres de recursos digitais nas cidades, onde as pessoas irão interagir fora do mundo digital? Nos sistemas educacionais, definiríamos que até certa idade não há acesso ao mundo digital porque entendemos que existe um mundo além da tela? Essas são as conversas que precisamos ter sobre o lugar do mundo digital. Na minha opinião, elas são importantes, primeiro de uma perspectiva epistemológica, porque vemos que há um efeito de reificação e empobrecimento das interações devido à digitalização, mas também de uma perspectiva ecológica. Estamos percebendo que a implantação de todas as soluções digitais possíveis é tal que não é possível sustentá-las a longo prazo. Teremos que decidir onde o uso do digital é útil e onde não é, onde é frívolo e onde é supérfluo, onde é prejudicial e onde é positivo. Ou seja, uma deliberação sobre os usos do mundo digital é absolutamente necessária. E não é tão louco quanto parece. Durante a pandemia da covid-19 na Europa, houve um acordo entre a Comissão Europeia e a Netflix para reduzir o uso de banda larga para que houvesse o suficiente para permitir o teletrabalho. Isso mostra que em algum momento houve uma decisão política sobre o uso dos recursos digitais disponíveis. A Netflix concordou (ou foi forçada a) se adaptar a essa necessidade. Esse tipo de reflexão, na minha opinião, deve ser multiplicado, tanto por questões de emancipação, democracia e saúde, quanto por questões ecológicas. E essa conversa é muito interessante porque não é só sobre tecnologia, nem é só sobre regular as Big Techs; também se trata de decidir qual papel queremos que o digital desempenhe em nossas vidas, independentemente das formas como as tecnologias são desenvolvidas ou implementadas. Como diria Wendy Brown, trata-se de “refazer o demos” ou, mais precisamente, de uma forma de “reincorporar a economia”, seguindo Karl Polanyi? Sim, exatamente. Há algo que não mencionei, mas se entendermos que o digital é uma forma de coordenação – uma coordenação algorítmica, como Katharina Pistor menciona 7 – é importante reconhecer que essa coordenação lógica, algorítmica, também tem efeitos de reificação semelhantes aos da burocracia ou do mercado. Então temos que decidir quando, onde e como vamos pará-lo. Nesse sentido, se temos a possibilidade de socializar as decisões do Estado, em maior ou menor grau, como podemos traduzir essa participação para a esfera privada quando se trata das Big Techs? Principalmente neste momento em que, como ele explica no livro, a concentração de poder nessas empresas está no mito da propriedade privada. O que eu gostaria é que as Big Techs padronizadas fossem monopólios públicos. Uma espécie de nacionalização? Basicamente, estamos falando de infraestrutura geral, como serviços postais ou trens. É uma forma de coordenação social generalizada. O mecanismo de busca, hoje, é como um serviço básico. Google Maps, todo mundo precisa dele. Quero dizer, realmente existe uma lógica de sistemas universais. Isso não significa que não haja espaço para iniciativas privadas, cooperativas ou similares, mas grandes coisas que são padronizadas devem ser gerenciadas sob controle público. Obviamente o problema é que essas são empresas que estão sediadas em um país, portanto, há uma lógica que é muito difícil de gerenciar. Você não pode dizer: “Estou nacionalizando o Google na França”, isso não faz sentido algum. Há uma dificuldade específica aí. Podemos imaginar, por exemplo – e esta também é uma das soluções possíveis – que nas negociações entre as Big Techs e sua autorização para operar em diferentes países sejam estabelecidas condições nesse sentido. Ou seja, uma licença é basicamente concedida ao Google, Amazon, etc., e nessa licença os Estados reservam certos direitos de supervisão sobre certas questões. Não se trata de nacionalização, mas há maneiras de conter isso de forma bastante significativa. Parece que com a eleição de Trump o cenário é bastante sombrio, principalmente se levarmos em conta que Elon Musk esteve muito presente na campanha política e agora faz parte do governo Trump. Será este um período de ouro de acumulação para as Big Techs? Sim, acho que será assim. Os apoiadores de Trump vieram do lado das Big Techs mais agressivas, mais libertárias, mais antirregulamentação, etc. Então, nós realmente temos esse tipo de aliança entre a extrema direita e visões muito libertárias e também, poderíamos dizer, com todo esse movimento transumanista, uma espécie de hubris, completamente delirante, em torno do solucionismo tecnológico, em torno de empreendedores como esses grandes cavalheiros. Então aqui estamos realmente em um delírio absoluto que está dando um passo além. Obviamente, isso não vai de forma alguma seguir na direção desejada e está claro que a vitória de Trump reforça essas tendências. Não quero entrar em muitos detalhes porque não é minha área. Mas acho que, de fato, existem, associadas ao diálogo digital, formas de politização que a extrema direita entendeu melhor do que nós. Uma questão que esqueci, mas que acho importante antes de terminar, é sobre a crise do sistema atual. Em seu livro, você menciona duas lógicas que acabam provocando e acelerando a crise do modelo feudal: a lógica rentista das elites, mas também o gasto ostentoso que elas fazem dessas rendas. Neste momento, quando falamos de tecnofeudalismo, quais são os sinais que podem nos alertar sobre um colapso do sistema? Bem, a tendência geral não é a de um capitalismo particularmente estável, que funcione bem, que cresça de forma sustentável, etc. Há um tipo de instabilidade persistente. Isso não significa que estamos na década de 1930… é algo ambivalente. Mas há tendências de crise que são evidentes. Então, uma das minhas hipóteses é que o tipo de investimento que é feito é importante, mas sua lógica principal não é aumentar a produtividade. Em vez disso, sua lógica é amplamente orientada para a geração de renda, ou seja, uma lógica de depredação. E a lógica de depredação é um jogo de perde-perde. Isso leva a tensões extremamente fortes. Então, quando falo de uma crise associada ao feudalismo, quero dizer que essa lógica de depredação pode gerar novos antagonismos que podem ir além dos clássicos conflitos de classe. É por isso que a questão dos Estados é tão importante. Também é possível imaginar que uma parte do capital que não está diretamente ligada a tudo isso esteja em uma posição subordinada, de tensão. Novas crises podem surgir aí. Por outro lado, é igualmente importante notar que, da minha perspectiva, o setor digital não cria muito valor. O setor digital, em essência, apropria-se de valor. Nesse sentido, minha abordagem continua bastante clássica do ponto de vista marxista: a produção de valor está ligada ao trabalho e ao trabalhador. Agora, a forma como a mais-valia é distribuída é um jogo entre capitalistas, no qual os gigantes tecnológicos ficam com grande parte dos benefícios. Em outras palavras, você pode ser explorado em uma pequena ou média empresa que produz máquinas de alta precisão; nesse caso, seu empregador ficará com apenas uma pequena parte dos ganhos de capital que você gerar, pois ele terá que pagar por muitos serviços digitais e outros benefícios para empresas maiores. Assim, parte desse valor excedente será apropriado mais acima na cadeia. É crucial entender isso. Portanto, há contradições que estão associadas tanto à produção da mais-valia em si quanto à sua forma de distribuição. Não é nada antinômico. Voltando à questão da crise, o primeiro elemento é que essa lógica de depredação leva a uma lógica de estagnação, um jogo de perde-perde que exacerba as tensões políticas. Esse é um primeiro elemento. O segundo elemento é mais político: há uma espécie de banalidade na ideia de as Big Techs assumirem a liderança política da humanidade. Elas gostariam de fazer isso. No entanto, elas encontram resistência, inclusive por parte dos Estados. Um exemplo disso foi quando o Facebook quis lançar sua Libra, seu projeto de moeda. Se essa moeda existisse, ela seria a mais usada no mundo. Agora imagine o poder político que isso implicaria, mas os bancos centrais disseram não. O que quero deixar claro é que os Estados ainda têm capacidade de decidir. Outro exemplo: os cabos submarinos, que hoje pertencem em sua maioria às Big Techs, poderiam ser declarados infraestrutura crítica para o funcionamento das sociedades. Os Estados poderiam decidir que sejam públicos, como eram no passado. Existem maneiras mais ou menos sofisticadas de elaborar uma regulamentação. Mais uma vez, o que aconteceu na China com as golden shares foi um caso em que o governo demitiu os líderes do setor e retomou o controle político. Portanto, embora a tendência ao tecnofeudalismo seja latente, isso não significa que ela se materializará plenamente. Os atores políticos, pelo menos nos grandes Estados, ainda têm meios para retomar o controle. | A A |
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A A | Ato de Trump acende alerta sobre intervenções dos EUA na América Latina, diz pesquisador Ordem extraordinária cita facção venezuelana e pode ser um recado ao presidente Nicolás Maduro, avalia o professor e pesquisador Thiago Rodrigues, do Departamento de Relações Internacionais da UFF. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou mais de 70 atos no seu primeiro dia de governo. No pacote de políticas de combate ao narcotráfico, a Casa Branca anunciou um ato extraordinário que coloca o país em “emergência nacional” e passa a classificar cartéis e organizações criminosas como terroristas. O anúncio acendeu um sinal de alerta no Ocidente e, em especial, para os latino-americanos, sobre a possibilidade de o governo estadunidense realizar incursões militares nos países que compõem o continente. A lista de organizações criminosas e cartéis que atuam em solo estadunidense e que passarão a ser classificadas como terroristas deve ficar pronta em até 15 após o anúncio do ato. No entanto, a Casa Branca cita dois exemplos de facções criminosas, o La Mara Salvatrucha 13, de salvadorenhos, e o Trem de Aragua, de origem venezuelana. De forma genérica, o republicano também cita os cartéis mexicanos e sua atuação no sul dos Estados Unidos, na fronteira entre os dois países, uma área de fluxo imigratório intenso. A ordem descreveu que “em certas partes do México, eles funcionam como entidades quase governamentais, controlando quase todos os aspectos da sociedade”. Professor Thiago Rodrigues, do Departamento de Relações Internacionais da UFF Embora seja a maior organização criminosa das Américas em exercício, o Primeiro Comando da Capital (PCC), que também tem indícios de atuação nos Estados Unidos, não foi citado no texto. Segundo o professor e pesquisador Thiago Rodrigues, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), a ordem executiva “tem um tom altamente repressivo” e “parece ser um aceno de apoio a perspectivas de ultradireita na América Latina”. “O Trem de Arágua me parece ter sido citado como uma forma de abrir espaço para uma intervenção contra o regime bolivariano da Venezuela”, avaliou Thiago Rodrigues. Em julho de 2024, o Departamento de Estados dos EUA informou que o Trem de Aragua é uma “crescente ameaça que representa para as comunidades americanas”. Além disso, pagaria 12 milhões de dólares a quem fornecesse informações sobre os líderes da facção venezuelana, que estariam escondidos na Colômbia e Venezuela. No mesmo dia em que a Casa Branca anunciou o combate ao Trem de Aragua, o Ministério Público da Venezuela havia declarado que a organização criminosa já estava desmantelada, em virtude de duas operações que culminaram em 48 prisões, incluindo a dos líderes da facção. O Trem de Aragua teve origem no estado de Aragua, no norte da Venezuela, nos anos 2010. Segundo a apuração da jornalista e escritora venezuelana Ronna Rísquez, autora do livro El Tren de Aragua. La banda que revolucionó el crimen organizado en América Latina, o grupo também teria estabelecido relações de parceria com o Primeiro Comando da Capital (PCC) na Bolívia, onde supostamente ocorreu troca de armas. Há indícios de atuação do Trem de Aragua em pelo menos sete países, sendo eles Brasil, Colômbia, Peru, Chile, Equador, Bolívia e Estados Unidos, conforme a declaração da Casa Branca na ordem extraordinária. Nos Estados Unidos, os governadores do Texas e Colorado afirmaram ter prendido 31 supostos integrantes do Trem de Aragua, de acordo com a apuração do jornal O Globo. Declaração de emergência gerou alerta especialmente na América Latina, sobre incursões militares Recado indireto ao Brasil Após o anúncio da ordem extraordinária, instaurou-se a preocupação de quais ações os Estados Unidos poderiam tomar com relação ao Brasil, berço de uma das maiores facções criminosas em atuação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), e com atuações em solo estadunidense. O professor de relações internacionais Thiago Rodrigues diz que, embora não cite o PCC, o anúncio pode ser interpretado como um recado indireto para o Brasil. “Existe um potencial teórico, conceitual para isso. Eu não acho que o documento, no momento, diga que há a possibilidade concreta, próxima de uma intervenção na Amazônia a título de combate a essas organizações. Mas [também] não há nada no documento que impeça chegar a isso”, disse. Presidente Donald Trump durante discurso de posse no dia 20 de janeiro Ato político A ordem de Trump faz citação também à Mara Salvatrucha 13, conhecida como MS-13, uma organização criminosa que nasceu nas ruas de Los Angeles, na Califórnia, ainda na década de 1980, composta majoritariamente por salvadorenhos. Thiago Rodrigues explica que o processo massivo de deportação de supostos integrantes da gangue, feito ainda no governo do ex-presidente Ronald Reagan (1981-1988), levou a organização criminosa a se expandir em El Salvador. Na avaliação do professor, a citação à organização criminosa salvadorenha é uma demonstração de apoio ao governo de ultradireita do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, um dos convidados para comparecer à posse de Trump, em 20 de janeiro. “A citação ao grupo de El Salvador [MS-13] me parece mais destinada a fortalecer um governo de ultradireita, que é o do Bukele, do que colocar esse governo sob a mira de Washington.” A ação da gangue já despertava preocupações a Donald Trump ainda no seu primeiro mandato. Em abril de 2014, quatro pessoas foram encontradas decapitadas em uma floresta de Long Island e a autoria seria da gangue MS-13. Na época, o presidente havia classificado o grupo como “perverso”. O ultradireitista Bukele trata a MS-13 como o seu principal alvo, tendo ganhado espaço no noticiário internacional após prender cerca de 2% da população de El Salvador como forma de combate ao crime organizado. Guerra ao narcotráfico não mira na cannabis, diz professor Em setembro de 2024, o então candidato republicado à Casa Branca declarou que votaria a favor da legalização da maconha para uso de adultos no estado da Flórida, o que o colocou em desacordo com o então governador do estado Gavin Newsom. O posicionamento de Trump foi publicado, na época, na rede Truth Social, onde ele disse que “é hora de acabar com as prisões e encarceramentos desnecessários de adultos por pequenas quantidades de maconha para uso pessoal. Devemos também implementar regulamentações inteligentes, proporcionando ao mesmo tempo acesso aos adultos a produtos seguros e testados. Como morador da Flórida, votarei ‘SIM’ na emenda 3 em novembro”. O uso recreativo da maconha no estado segue proibida. Na avaliação do professor Thiago Rodrigues, a política de combate ao narcotráfico nos Estados Unidos não deve atingir o processo de legalização da maconha, uma vez que o produto tem sido explorado pelo capital farmacêutico. “Do ponto de vista do outro tipo de legalização, que é a legalização para consumo recreativo, também já há interesses bilionários que mobilizam, nos Estados Unidos, grandes corporações”, argumentou o docente. | A A |
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A A | Olímpio Moraes: CFM é perigo à sociedadeMédico que é referência na garantia do direito ao aborto no país analisa os últimos ataques da ultradireita. Critica a entidade médica e seu papel nessa situação. E defende a interrupção da gravidez ampla, para que mulheres não sejam presas ou mortas Olímpio Moraes em entrevista a Gabriel Brito Olímpio Moraes, médico ginecologista há 38 anos, é diretor do Hospital da Universidade de Pernambuco e seu Centro Integrado de Saúde Amaury Medeiros (Cisam), mais conhecido como Maternidade da Encruzilhada. Sua história recente é de enfrentamento contra a cruzada ultraconservadora da militância antiaborto e dita “pró-vida”. Tal corrente chegou ao comando da política de saúde no país no governo Bolsonaro e foi responsável pela portaria 2165/2020, que recrudescia a legislação do aborto legal e tornava obrigatória a notificação à polícia de procedimentos aprovados clinicamente. E foi na maternidade dirigida por Moraes onde se concluiu o marcante episódio da perseguição comandada pela então ministra dos direitos humanos, Damares Alves, que tentou constranger a realização do aborto legal de uma menina capixaba de 10 anos, poucos dias após a edição da portaria. A notícia escandalizou o Brasil, mas a política foi mantida até o fim do governo Bolsonaro e o serviço de aborto legal segue alvo da direita, em especial do Conselho Federal de Medicina (CFM). Ao Outra Saúde, Moraes classifica a autarquia como “perigo à sociedade”. Apesar de a portaria ter sido derrubada no início do mandato de Lula, o CFM e conservadores seguem a tentar comer pelas beiradas o direito ao aborto legal, como se viu na nota técnica que suspendia o procedimento de assistolia fetal em gestações superiores a 22 semanas; seguida de apresentação do PL 1904, que equiparava o aborto após esse período a homicídio. O ataque foi derrotado politicamente após massiva manifestação de repulsa da sociedade brasileira, nas redes e ruas. Nesta entrevista, Olímpio Moraes relembra o episódio em um breve depoimento a respeito daquele domingo de 2020, no qual uma horda de fanáticos religiosos se colocou à frente da Cisam e tentou impedir o procedimento que evitou transformar uma menina de 10 anos em mãe. Para além das bancadas religiosas e suas ideias desconectadas do conhecimento médico-científico, Moraes dirige suas baterias ao CFM. “O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não têm acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo. Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da Saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica”. Ao Outra Saúde, Moraes explica por que um contexto de interrupção aparentemente incomum de gravidez tem justificativa médica, num país onde os dados de violações sexuais e partos de crianças de 10 a 14 anos atingem níveis alarmantes. Em vez da prevenção a esta mazela brutal, a direita brasileira e seus movimentos alegadamente favoráveis à vida criam condições para a ampliação das tragédias. A explosão de mortes maternas no governo Bolsonaro serve para ilustrar a cegueira, se não má fé, de tais setores. “Em alguns estados, suspenderam a vacinação para gestantes e o ministério sob Marcelo Queiroga adiou sem justificativa a vacinação infantil. Graças a isso um lugar como Santa Catarina passou da condição de estado com a menor razão de mortalidade materna no Brasil para um dos maiores na pandemia. O Paraná também, sendo que fora da pandemia a morte materna acontece mais no Nordeste”, afirma Moraes, que lamenta o fato de o Sudeste retroceder neste direito, a exemplo da capital paulista, cujo prefeito bolsonarista Ricardo Nunes sabota o serviço de aborto legal no Hospital de Vila Nova Cachoerinha e persegue profissionais que cumprem o direito previsto em lei. “A maior parte dos nossos atendimentos são de meninas vulneráveis. E elas não queriam nem a gravidez nem o aborto tardio. Elas são as mais vulneráveis, não podem ser punidas porque na verdade já foram punidas: já sofreram a violência do estupro, da gravidez fruto desse crime, da falta de acesso ao aborto legal, do acesso tardio ao aborto… É assustador”, protesta. Quanto ao avanço do debate após manifestações de rua e recuo da oposição que, nas palavras do relator do PL 1904, Sóstenes Cavalcante, queria “testar o governo”, Olímpio Moraes é cético, por considerar que tais pautas são sempre as primeiras sacrificadas no altar da governabilidade e seus pactos. “Se não houvesse mobilização, se a gente ficasse calado, o PL 1904 seria aprovado”. Sobre o direito ao aborto em si, ele é direto: “é tratar como assunto de saúde e suas orientações objetivas, como todos os países desenvolvidos tratam, qualquer país democrático. Só países como El Salvador, Afeganistão, Cazaquistão têm essa visão de que abortamento não é um problema de saúde pública, o problema são as mulheres, que devem ser presas ou mortas. Ninguém quer o aborto, nem a mulher. Quando se trata o aborto como um problema de saúde pública, diminui o aborto. E diminuem as mortes”. Leia a entrevista completa a seguir. O que pensa do PL 1904 e suas justificativas? É um projeto que mostra muito bem a misoginia de alguns políticos e, pior, do CFM. Porque a tentativa de que a mulher vítima de violência e estupro não tenha acesso ao aborto começou neste órgão, o mesmo CFM cujos conselheiros obstruem a todo momento o abortamento em qualquer situação. São as mesmas pessoas. E é por isso que essas obstruções são tentadas. As mulheres pobres não têm acesso à informação, à referência e aos poucos serviços de aborto legal do nosso sistema de saúde. Imagine uma pessoa que more no interior e só tem acesso a médicos que compartilham ideologia de ódio a mulher e seus direitos. Essa mulher procura ajuda em secretarias, prefeituras, hospitais… Quem a encaminha? Ela descobre sozinha onde procurar ajuda, pagar passagem, viajar 700, 900, 1000 quilômetros, a exemplo de pacientes do interior de Pernambuco, Maranhão, Alagoas etc. E agora com o fechamento ou colocação de barreiras ao serviço em São Paulo e outras partes do Sudeste passamos a receber pacientes de fora do Nordeste. É muito triste que o Sudeste sabote esses serviços, muito triste que no Paraná não o tenha e o Nordeste tenha de assumir o Brasil todo. Enquanto fazemos essa entrevista repercute a reportagem do pai que estuprou a filha adolescente numa UTI. Como fica a cabeça dessa criança, que é muito pobre, vai procurar ajuda aonde? Mas para a sociedade só chega a parte final da história, a menina com 5 meses de gestação que “quer abortar”. A maior parte dos nossos atendimentos são de meninas vulneráveis. E elas não queriam nem a gravidez nem o aborto tardio. Elas são as mais vulneráveis, não podem ser punidas porque na verdade já foram punidas: já sofreram a violência do estupro, da gravidez fruto desse crime, da falta de acesso ao aborto legal, do acesso tardio ao aborto… É assustador. E ainda querem que se leve até o fim a tentativa de viabilizar a vida do feto, mesmo em condições onde não há possibilidade de vida saudável, com diversas sequelas de saúde. Querem que uma menina que não queria a gravidez nem em condições saudáveis do feto gere uma vida com pouca chance de ser viabilizada. Os pastores vão adotar esses filhos frutos de estupro, com todos os eventuais problemas de saúde? Uma das características dessa guerra política foi a confrontação de discurso religioso e irracional, a exemplo do próprio Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), relator do PL 1904, com dados oficiais, pesquisas e histórias reais, como a estatística de 26 nascimentos por dia de filhos cujas mães tem entre 10 e 14 anos. Pois é, veja que negócio é esse. O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não têm acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo. Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica. Nós não podemos negar o tratamento baseado em melhores evidências científicas, não pode ter interferência política para a atividade médica, não pode tratar o ser humano sem dignidade. Como um presidente do CFM diz que precisamos “limitar a autonomia da mulher sobre seu corpo”? É uma coisa absurda um médico falar um negócio desse. Eles sabem que existe autonomia do paciente e tentam romper com isso. Eles fizeram resolução tirando a autonomia da mulher para fazer o próprio plano de parto, quando um deles estava no Ministério da Saúde e assumiu o Conselho da Saúde da Mulher da pasta, época em que foi feita a Portaria 2561/2020 que visava obrigar mulher estuprada a ouvir o batimento cardíaco do feto antes do aborto legal e notificação à polícia. Isso é para torturar a mulher. Não tem outro objetivo. Quem sofre estupro não quer ver o batimento da gestação. A mulher que passa por isso não quer ver nada. Ela quer dormir e acordar livre do pesadelo representado por uma gravidez fruto de estupro. Não tem condições. Todo esse movimento ultraconservador se apresenta no debate como “pró-vida”, mas é importante notar que sob gestões alinhadas a esses supostos valores o número de mortes maternas passou por uma explosão no Brasil, inclusive na pandemia, quando assumiram posições públicas de desestimular a vacinação entre gestantes e também crianças e adolescentes. Exato. Em alguns estados suspenderam a vacinação para gestantes e o ministério sob Queiroga adiou sem justificativa a vacinação infantil. Graças a isso um lugar como Santa Catarina passou da condição de estado com a menor razão de mortalidade materna no Brasil para um dos maiores na pandemia. O Paraná também, sendo que fora da pandemia a morte materna acontece mais no Nordeste. Por quê? Porque são estados poluídos com políticos, gestores, prefeitos, governadores negacionistas. Em Pernambuco, estamos na média de mortes maternas. Na pandemia, foi o estado que teve a menor taxa de mortalidade materna. Porque aqui não se suspendeu ou sabotou a vacina, não tinha um governo negando sua validade. É uma tragédia. O momento pode ser ponto de viragem para avanços no aborto legal e dos direitos reprodutivos da mulher? Vamos avançar. Mas estou acostumado, com 62 anos, eu já vi esse filme passar. O governo quando está fraco no Congresso e não tem maioria, não consegue avançar a pauta da mulher. Porque a pauta da mulher é a primeira moeda de troca usada para aprovar outras coisas de interesse do governo. O Ministério da Saúde não questionou com vigor o PL 1904. Mas o movimento social, jornalistas, médicos, mulheres indo para a rua dão respaldo político para que o governo, em algum momento, se sinta confortável e seguro de avançar. Se não houvesse mobilização, se a gente ficasse calado, o PL 1904 seria aprovado. Quais seriam as questões essenciais para avançar? É tratar o abortamento como assunto de saúde e suas orientações objetivas, como todos os países desenvolvidos tratam, qualquer país democrático. Só países como El Salvador, Afeganistão, Cazaquistão têm essa visão de que abortamento não é um problema de saúde pública, o problema são as mulheres, que devem ser presas ou mortas. Ninguém quer o aborto, nem a mulher. Quando se trata o aborto como um problema de saúde pública, diminui o aborto. E diminuem as mortes. Por isso que no Canadá, em toda a Europa, na Itália, na Espanha, em Portugal, o tema já foi batido, ainda que às vezes apareça uma onda de negacionismo, como em alguns estados dos Estados Unidos. Esperamos que a verdade e a ciência prevaleçam sobre questões político-partidárias. É questão de saúde, ponto. Não existe algo como “quem for de direita, toma penicilina. Quem for de esquerda, toma outro antibiótico. Quem for de esquerda, recebe sangue quando tiver hemorragia, quem for de direita, toma soro”. Saúde não é assim. Não pode ter política de enganar as pessoas. Depoimento: o aborto da menina de 10 anos que mobilizou Damares Era um domingo, o secretário de saúde ligou para mim, disse que estava para chegar um voo às três horas da tarde. Avisei que não seria bom um carro oficial da maternidade buscar a menina no aeroporto. Falei com um movimento de mulheres e a ONG Curumim alugou o carro. Eu estava tranquilo, almocei com meus filhos, minha cervejinha. À tarde, começo a receber vídeos de pessoas fazendo convocação pra frente do CISAM (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros) “para impedir que Pernambuco se tornasse a capital do aborto”. Trabalhamos com sigilo, não comunicamos ninguém, mas depois foi comprovado que o movimento “pró-vida” agiu sob orientação da Damares Alves e a Bia Kicis, que vazaram informação e passaram para seus correligionários locais. Eu não sabia do que se tratava. Eu tinha falado dez minutos antes com a médica sobre a menina que chegava do Espírito Santo. “Tudo bem, doutor, está tranquilo”. Falei com o meu amigo do ambulatório, que faz o procedimento. “Estou chegando agora de viagem e vou direto para lá”. Quando a menina chegou, o profissional que ia fazer o procedimento de assistolia fetal estava lá. Eu tenho 35 plantonistas e a maior parte deles não tem objeção de consciência para realizar a abortamento por esse meio. O ato em si eu não faço, não, e sim um plantonista, um diarista, enfim, os médicos da maternidade. No caso de 2020, quando eu saí para conversar com os manifestantes que estavam bloqueando a maternidade, eles fecharam a entrada e não permitiam que eu entrasse porque achavam que era eu que ia fazer o procedimento. Aí eles se distraíram, o portão abriu e a menina entrou, porque eles estavam bloqueando a entrada do carro. Fiquei associado ao procedimento, por ser diretor da Cisam, o que pouco me importa, afinal, se não estamos lá é possível que o serviço desapareça. | A A |
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A A | Até quando crimes da pandemia seguirão impunes?Deisy Ventura, autora de um importante estudo que mostrou a ação do governo Bolsonaro na disseminação da covid, defende mais rapidez na responsabilização pela mortes e sofrimento. Para ela, é hora de ir muito além de esforços simbólicos Deisy Ventura em entrevista a Gabriel Brito Nos dias 11 e 12 de março o Ministério da Saúde promoveu o Seminário para concepção e criação do Memorial da Pandemia de Covid-19, mais um passo do Estado brasileiro no reconhecimento de sua dívida com a população mais diretamente afetada pela pandemia, tanto as centenas de milhares de falecidos como seus familiares que carregarão para sempre as consequências da tragédia sanitária em questão. O esforço parece simbólico, mas é importante gesto de preservação da memória de uma acontecimento central na vida social. Soma-se a políticas ainda fragmentadas de criação de outros espaços de memória e projetos de indenização de vítimas da covid, desde profissionais de saúde a menores órfãos ou pessoas que vivem sequelas físicas. “Assim como a política de memória, as políticas de reparação precisam ser construídas junto com os seus beneficiários, e só serão bem-sucedidas se inseridas em uma cultura de reconhecimento das violações de direitos ocorridas no período”, afirmou Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, ao Outra Saúde. Especialista em ética e direito internacional em saúde, Deisy foi responsável pela pesquisa que culminou no estudo A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19, que sistematizou as 3.048 decisões administrativas, além de centenas de declarações públicas, de autoridades centrais do governo Bolsonaro na ação do Estado brasileiro durante a crise do coronavírus. O estudo não só documentou a irresponsabilidade como colocou na mesa a tese da intencionalidade do governo na disseminação do vírus, fundamental para a abertura da CPI da Pandemia – cujo relatório final indiciou o ex-presidente e mais 70 pessoas. “Constatamos que a institucionalidade da resposta prevista pelas normas vigentes sobre emergências de saúde havia sido rompida, assim como a tradição brasileira de resposta a epidemias. Infelizmente, predominavam naquela época, e talvez predominem até hoje, as versões de que o governo federal estava sendo apenas negligente ou incompetente diante da doença. Era mais que isso”, rememora Ventura. Sua posição corajosa e implacável rendeu-lhe retaliação direta do governo Bolsonaro, que boicotou a indicação de seu nome ao Comitê de Revisão do Regulamento Sanitário Internacional da OMS. Dessa forma, tal como reafirmado em seminário na Faculdade de Direito da USP em 20 de março, Deisy Ventura defende enfaticamente a responsabilização penal do ex-presidente e principais responsáveis pelo morticínio daquele período. Em sua concepção, trata-se de capítulo decisivo na consolidação da democracia no país, diretamente atacada pelos mesmos setores que cometeram tamanhos crimes contra a humanidade. Diante disso, apesar de reconhecer boas intenções do atual governo, Deisy identifica uma preocupante morosidade do Estado, mais precisamente da Procuradoria Geral da República, no avanço de processos penais contra Bolsonaro, Pazuello e companhia. “Entendo que o Poder Executivo deve agir com maior rapidez no que se refere às políticas de memória, verdade, reparação e não repetição. Mas no que se refere à responsabilização, quem deve ser cobrado neste momento é o Ministério Público, especialmente a Procuradoria Geral da República (PGR), e o Poder Judiciário. Porém, nos casos em que há prerrogativa de foro, a PGR manifestou-se pelo arquivamento da ampla maioria das petições criminais junto ao STF, inclusive as resultantes da CPI em petições que a própria PGR protocolou.” Trata-se, no frigir dos ovos, de uma disputa política que certamente contará com resistência estridente de seus alvos – afinal, eles podem acabar na cadeia -, mas é decisiva para o Estado brasileiro e suas instituições consolidarem sua legitimidade em tempos de instabilidades diversas nas ditas democracias liberais. “Além das centenas de milhares de mortes por covid-19 que poderiam ter sido evitadas, e dos milhões de casos da doença cujos efeitos prolongados causam sofrimento à população e oneram o SUS, foi abandonado o primado das evidências científicas como orientadoras de políticas públicas e foi desrespeitada a institucionalidade sanitária. A impunidade da promoção oficial da desinformação e de outros crimes contra a saúde pública hipoteca a capacidade brasileira de resposta a futuras emergências sanitárias”, analisou. Confira a entrevista completa com Deisy Ventura. O Ministério da Saúde promoveu em março um seminário que visou avançar na criação de um Memorial para Vítimas da Pandemia. Como avalia a iniciativa? Ela é suficiente? Existem ao menos 147 memoriais sobre a covid-19 no Brasil, com variadas formas e alcances, como revelou uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA/USP), liderada pela Professora Rossana Reis e pela Doutoranda Cristiane Ribeiro (IRI/USP), cujos resultados preliminares serão publicados em breve. Esta cifra abarca desde grandes e complexos projetos, como o excelente Sou Ciência até simples monumentos. Este número provavelmente crescerá nas próximas fases da pesquisa que ampliarão as formas de coleta de dados, mas também sabemos que muitas destas iniciativas são pontuais ou efêmeras. No meu entendimento, os memoriais já existentes não são valorizados, apoiados e divulgados como merecem ser. Neste sentido, a iniciativa do ministério da Saúde é muito importante, principalmente por ter congregado no referido seminário muitos dos atores sociais que estão envolvidos com estes memoriais, e estiveram à frente da luta contra a covid-19, incluindo entidades públicas e privadas, associações de vítimas e grupos de pesquisa. No entanto, esta iniciativa não é suficiente porque necessitamos de uma política de memória da covid-19 no Brasil a envolver o Estado e a sociedade, na qual um memorial do Ministério da Saúde pode ser um elemento, inclusive de liderança, mas não o único. As iniciativas fragmentadas de resgate da memória da covid-19 indicam a existência de uma capilaridade que precisa ser convertida em rede, com diretrizes, apoios e objetivos conjuntos. Como enxerga a relação do governo Lula com o legado da pandemia? Sente falta de iniciativas mais incisivas no sentido da proteção das vítimas da covid, inclusive parentes, órfãos, enfim, pessoas que tiveram a vida modificadas após o advento do coronavírus? Em seu discurso de posse no Congresso Nacional, Lula apontou “a atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista, insensível à vida” durante a covid-19, e afirmou que “a responsabilidade por esse genocídio há de ser apurada e não deve ficar impune”. Frequentes manifestações públicas da ministra Nísia Trindade, que foi uma figura central da resposta à covid-19, à época presidindo a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, coincidem com a avaliação de Lula sobre a responsabilidade do governo anterior na trágica dimensão alcançada pelos casos e óbitos em decorrência da doença ocorridos no Brasil. O reconhecimento de que foram praticados crimes contra a saúde pública na gestão federal da pandemia de covid-19 é muito importante. Quanto a iniciativas concretas, o governo tem aventado uma possibilidade de reparação que atingiria pessoas menores de 18 anos que perderam os pais em razão da pandemia de covid-19, o que aparece em recentes declarações de Lula e de Nísia. Embora esta iniciativa seja louvável, também aqui se constata a ausência de uma política de reparação dos danos causados por ações e omissões do Estado, que necessita atingir os trabalhadores da saúde e de outras atividades essenciais, além de vítimas e familiares. Assim como a política de memória que já referi, as políticas de reparação precisam ser construídas junto com os seus beneficiários, e só serão bem-sucedidas se inseridas em uma cultura de reconhecimento das violações de direitos ocorridas no período. Dias depois do referido seminário, você participou de evento na Faculdade de Direito da USP no qual se falou taxativamente sobre responsabilização penal da pandemia e da ação de diversos gestores públicos naquele momento. Por que você defende essa responsabilização penal? Porque ao estudar a resposta federal à covid-19 desde o seu início, acompanhando o Diário Oficial da União e os perfis de autoridades federais e órgãos de governo em redes sociais, nosso grupo de pesquisa percebeu a intencionalidade da disseminação do vírus a partir de março de 2020, quando o comando da resposta à pandemia foi transferido, por decreto, para a Casa Civil. Sendo especialistas em direito da saúde, constatamos que a institucionalidade da resposta prevista pelas normas vigentes sobre emergências de saúde havia sido rompida, assim como a tradição brasileira de resposta a epidemias. Infelizmente, predominavam naquela época, e talvez predominem até hoje, as versões de que o governo federal estava sendo apenas negligente ou incompetente diante da doença. Era mais que isso. Em janeiro de 2021, publicamos a primeira versão da linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19, no Boletim Direitos na Pandemia, editado pelo CEPEDISA e pela Conectas Direitos Humanos. Esta pesquisa comprovou que a doença foi disseminada de forma coordenada entre autoridades federais, por meio de três grupos de evidências: atos de gestão, atos normativos e atos de propaganda contra a saúde pública. Graças à coragem de uma grande jornalista brasileira, Eliane Brum, que publicou pela primeira vez o estudo, a percepção de que o governo federal estava espalhando a doença finalmente foi tratada com a devida seriedade e chegou ao grande público. Segundo os Senadores Humberto Costa e Randolfe Rodrigues, nossa linha do tempo foi uma das inspirações para a criação da CPI da covid-19. A pedido da CPI, o estudo foi atualizado e ampliado em maio de 2021, e serviu de base ao trabalho da comissão de especialistas em direito penal que subsidiou os pedidos de indiciamento de dezenas de autoridades por crimes contra a saúde pública, entre outros, inclusive crime contra a humanidade, que constam do relatório final da comissão. Em um estudo recentemente publicado, feito em nova parceria do CEPEDISA e da Conectas Direitos Humanos, constatamos que em janeiro de 2024 ainda existiam 14 petições criminais em andamento relativas a autoridades com prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal Federal, entre dezenas que foram propostas por diversos atores sociais, principalmente parlamentares e associações de vítimas. Este estudo foi recentemente apresentado em sessão conjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos e do Conselho Nacional de Saúde. Ou seja, somos muitos a apontar a necessidade de responsabilização pelos crimes cometidos durante a pandemia. Acha que o governo erra ao não encaminhar os indiciamentos do relatório final da CPI da Pandemia? Por que há uma certa morosidade em agir nesse sentido? Entendo que o Poder Executivo deve agir com maior rapidez no que se refere às políticas de memória, verdade, reparação e não repetição. Mas no que se refere à responsabilização, quem deve ser cobrado neste momento é o Ministério Público, especialmente a Procuradoria Geral da República (PGR), e o Poder Judiciário. Isto está sendo feito por diversos atores, entre eles o Conselho Nacional de Saúde e os Senadores que lideraram a CPI da covid-19. Quais seriam os caminhos práticos desta responsabilização penal? Como já referi, nosso estudo demonstra que existem iniciativas de responsabilização em andamento. Porém, nos casos em que há prerrogativa de foro, a PGR manifestou-se pelo arquivamento da ampla maioria das petições criminais junto ao STF, inclusive as resultantes da CPI em petições que a própria PGR protocolou. No entanto, também existem processos em primeira instância que precisam ser estudados. Novas ações também podem ser propostas. A impunidade de responsáveis por uma condução sem dúvidas desastrosa de ações de Estado naquela imensa crise sanitária não poderia fragilizar e desestabilizar ainda mais as instituições que operam a democracia brasileira, diante de uma direita que parece disposta a tudo? Não podemos permitir que se repita o que aconteceu no Brasil durante a pandemia de covid. Como afirmamos em nosso artigo mais recente, além das centenas de milhares de mortes por covid-19 que poderiam ter sido evitadas, e dos milhões de casos da doença cujos efeitos prolongados causam sofrimento à população e oneram o SUS, foi abandonado o primado das evidências científicas como orientadoras de políticas públicas e foi desrespeitada a institucionalidade sanitária. A desinformação sobre saúde e a insurgência contra medidas preventivas foram amplamente difundidas naquele período, inclusive por órgãos públicos. Infelizmente, a pandemia deixa um legado não apenas de desinformação, mas de naturalização da produção de desinformação por autoridades, como vimos na volta às aulas deste ano, com a campanha de governadores e prefeitos contra a exigência de apresentação da comprovação de imunização contra a covid-19 nas escolas públicas. A impunidade da promoção oficial da desinformação e de outros crimes contra a saúde pública hipoteca a capacidade brasileira de resposta a futuras emergências sanitárias. Como observa a relação da sociedade brasileira com a memória deste momento que sem dúvidas marca a vida de todos? A organização de setores da sociedade brasileira durante a covid-19 evitou que a catástrofe fosse ainda maior, tanto por iniciativas autônomas de resistência como pelo embate constante com o governo federal, travado no âmbito dos poderes Legislativo por seus representantes e Judiciário por meio de incontáveis ações, mas também nas esferas locais de governo, atuando junto ao SUS, nas redes sociais, nos veículos de imprensa, nas universidades e institutos de pesquisa etc. No entanto, uma parte importante da sociedade, vinculada ao movimento bolsonarista, não apenas tolerou ou apoiou, mas participou ativamente da produção de desinformação que até hoje compromete a confiança da população nas autoridades sanitárias e na ciência; esteve presente em aglomerações e boicotou medidas preventivas como a vacina e a máscara facial. Assim, a disputa política, ideológica e eleitoral ocorrida durante a resposta à pandemia encontra agora, no campo da memória, uma nova etapa. Gostaria que todos os setores que tomaram o partido da vida durante a pandemia de covid-19 mantivessem agora a sua posição, atuando firmemente na disputa para que a verdade sobre a covid-19 possa emergir (ainda há muito a apurar), para que a memória das vítimas e seus familiares seja preservada, para que os danos sofridos sejam reparados e os seus causadores responsabilizados, tudo isto como condição para que violações deliberadas do direito à saúde e à vida, desta natureza e deste porte, jamais se repitam no Brasil. | A A |
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Aborto: do “teste” do Congresso à indignação públicaCâmara utiliza projeto nefasto para provocar o governo. Sua rápida tramitação mostra articulação da ultradireita. Mas a resposta foi rápida e clara: passo atrás no direito ao aborto legal é inegociável. Abre-se uma oportunidade de mudanças Ana Maria Costa em entrevista a Gabriel Brito O aborto voltou a ser a pauta política principal – e dessa vez o campo progressista conseguiu participar ativamente do debate, apesar de um atropelo inicial da ultradireita. Na semana passada, em votação que durou apenas alguns segundos, a Câmara Federal aprovou a urgência da tramitação do PL 1904, que qualifica a interrupção de gravidez após a 22ª semana de gestação um crime equiparável ao homicídio. Um enorme retrocesso em um país que já está entre os mais restritivos em relação à questão do aborto: por aqui, ele só pode ser realizado em caso de estupro, anencefalia fetal e risco à vida da mãe. Mas não há nada que indique até que período gestacional esse procedimento pode ser realizado, nesses casos – pelo menos até agora. Se a pauta do aborto é muitas vezes interditada nos debates da esquerda, por ser um tema sensível aos religiosos, o campo da direita vem forçando os limites nos últimos meses. Há uma busca clara de se restringir ainda mais o direito. Há alguns meses, o Conselho Federal de Medicina (CFM), hoje dominado pelo bolsonarismo, emitiu nota técnica que proibia médicos de realizar a chamada assistolia fetal após 22 semanas de gestação – o que, na prática, inviabiliza o aborto. Pelo Brasil, há poucos centros de referência que realizam a interrupção da gravidez em casos onde é permitida – e estão sendo sistematicamente inviabilizados, como é o caso do hospital Vila Nova Cachoeirinha, na cidade de São Paulo. O avanço, no Congresso, do PL 1904, é mais um degrau nessa ofensiva reacionária. Mas, como se vê nesse caso, não se trata de uma questão puramente moral. Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, escancarou o cinismo da iniciativa ao falar que se tratava de um “teste” para o governo, num gesto de utilitarismo que potencializou revolta de amplos setores sociais, muito além do espectro de movimentos sociais e feministas mais atuantes. Muito rapidamente, a pecha de “PL do Estuprador” pegou. “Eu acho que nós não podemos mais ficar reféns desse grupo político. Essa é a chance, com a força das mulheres nas ruas, de o governo assumir posições mais firmes”, defendeu Ana Maria Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, em entrevista ao Outra Saúde. Profissional e ativista do SUS de longa data, Ana Costa tem uma história de relevante contribuição na implementação de políticas de saúde para as mulheres no sistema público de saúde. Dessa forma, consegue fazer a crítica médico-sanitária ao caráter irresponsável do projeto enquanto enxerga o movimento político de uma direita que tenta ampliar seu domínio através de pautas moralistas. “Quando Sóstenes Cavalcante disse que ia ‘testar o Lula’, ele testaria o Lula em quê? Nas políticas sociais que o Lula pretende implementar, no melhor financiamento que nós esperamos que o Lula vá manter a políticas sociais, na nossa pauta de manter a vinculação dos recursos da saúde, de aumentar o financiamento e o orçamento da saúde de forma adequada, justa e suficiente”, explicou. Mas desta vez a ultradireita, liderada pelo presidente da Câmara Arthur Lira, cuja atuação se notabiliza pelo uso sistemático da barganha e da chantagem ao governo, errou o cálculo e ativou uma resistência popular com a qual não contava. “Foi um descuido da direita, de ter salgado excessivamente a dose, de ter entrado em valores muito caros à sociedade brasileira”, percebeu Ana. Isso porque a sociedade não engole facilmente a penalização de mulheres que fazem aborto, segundo Ana. E o fato de o PL impactar crianças que foram estupradas foi motivo de choque geral. “Um terço das interrupções de gravidez nesses serviços legais ultrapassa as 22 semanas. E não é porque as mulheres ou meninas têm dúvida em relação a interromper a gravidez. Isso acontece por motivos muito mais complexos. As meninas demoram muito a perceber que estão grávidas, demoram muito a desconfiar que algo diferente está acontecendo no seu corpo, demoram muito a contar para a família. E além disso, depois que descobrem, até que consigam acessar um serviço de saúde que possa socorrer e interromper a gravidez, também demora muito. É por esse duro contexto real que se justifica que um terço dos casos de interrupção de gravidez acontecem após as 22 semanas”. ![]() A resposta da sociedade foi veemente. Durante o fim de semana, capitais encheram as ruas de protestos contra o PL do Estuprador. “É um momento muito importante para o Brasil, inclusive, porque essa convocatória restabelece uma possibilidade de um debate à esquerda, de um debate que avance a democracia, que avança os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos sociais de uma forma geral”, comenta Ana. Ela completa: “Acho que a resposta que está nas ruas e seguirá nas ruas nas próximas semanas e meses vai ser muito forte. Arthur Lira disse que vai esperar a poeira baixar, que houve muito incômodo. Mas a determinação de nós, mulheres, dos movimentos feministas é de não abaixar a poeira, de manter a poeira alta e estarmos definitiva e fortemente mobilizadas nas ruas, como começou a acontecer imediatamente nas redes e na ação interna junto à prática”. Confira a entrevista completa. Em primeiro lugar, como você analisa a aprovação da forma como se realizou, rápida, até atropelada, do PL 1904, que visa avançar na criminalização contra pessoas que realizem o aborto legal via assistolia fetal após 22 semanas, em casos de gravidez fruto de estupro? É abominável a forma como as mulheres foram ultrajadas com esse projeto e a forma como o presidente da Câmara manobrou. Como eles próprios explicaram, é um joguinho político do “centrão” e da ultradireita. Entretanto, a cada dia salgam mais o teor e o conteúdo dos projetos. Até recentemente, eu tinha uma certeza que o Estatuto do Nascituro era o centro da pauta deles. Hoje, essa pauta é difusa, dentro da temática dos direitos sexuais e reprodutivos, mais especificamente na pauta do aborto. Eles sabem que o aborto é um tema que polariza a sociedade, há uma moralidade importante que divide opiniões, embora saibamos que em termos de penalização a sociedade não passe perto de defender que as mulheres estupradas que abortam em consequência disso devam ser presas. A sociedade penaliza moralmente o aborto, mas não associa isso a uma necessidade de prisão. É muito interessante, porque o projeto atinge alguns valores muito caros para a sociedade. O primeiro ponto sensível é a forma de tratar e proteger o estuprador, na medida que o projeto penaliza tanto quem faz o aborto, os médicos, ou a família que autoriza, ou qualquer outro que realize o ato da interrupção da gravidez, penaliza a mulher que, na maioria das vezes, nós sabemos que são jovens ou meninas. Hoje no Brasil, lamentavelmente, meninas e mulheres são estupradas dentro de casa, e começam a ser estupradas muito precocemente, ainda na infância. Às vezes, são estupradas a vida inteira por pais, padrastos, tios, padrinhos, irmãos, mostrando a força desse patriarcado que se sente dono do corpo da mulher e as submete a essa humilhação de vida inteira. A criminalização, como uma prática hedionda, tem uma repercussão muito forte na sociedade. Não podemos esquecer que nas prisões o estuprador é objeto da ira dos outros presos. É ele que merece a ira e a violência dos outros presos, mostrando que nem os outros criminosos têm uma visão, digamos, bondosa, como esse grupo de deputados e deputadas que apresentaram o PL 1904. Os deputados que estão apoiando esse absurdo têm uma clara escolha de apoio e proteção ao estuprador. E é por isso que estamos chamando esse projeto de PL do Estupro ou Estatuto do Estuprador. Como você avalia este projeto de lei do ponto de vista médico e sanitário? É muito importante lembrar que as interrupções de gravidez nesse campo do aborto legal, dos abortos legalizados pelo Código Penal Brasileiro de 1940, se referem às modalidades do risco de vida materno, do estupro e da anencefalia, incorporada mais recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, particularmente a condição do estupro, a que mais ocorre nos serviços de aborto legal instituídos no Brasil. A respeito do contexto que o PL tenta atacar, é preciso destacar que um terço das interrupções de gravidez nesses serviços legais ultrapassa as 22 semanas. E não é porque as mulheres ou meninas têm dúvida em relação a interromper a gravidez. Isso acontece por motivos muito mais complexos. As meninas demoram muito a perceber que estão grávidas, demoram muito a desconfiar que algo diferente está acontecendo no seu corpo, demoram muito a contar para a família. E essa situação vai se postergando, vai avançando no curso da gravidez. E além disso, depois que descobrem, até que consigam acessar um serviço de saúde que possa socorrer e interromper a gravidez, também demora muito. É por esse duro contexto real que se justifica que um terço dos casos de interrupção de gravidez acontecem após as 22 semanas. Isso é muito importante porque as pessoas ficam no debate acerca da data, da idade gestacional para interromper uma gravidez. O Código Penal, inclusive, é muito claro em relação a isso. O aborto não é permitido só até a 12ª, 16ª, 20ª semana. Não, o aborto é admitido pelo Código Penal em qualquer idade gestacional. Naturalmente, nós médicos e médicas gostaríamos muito, e mulheres gostaríamos muito mais, que a interrupção da gravidez pudesse ser feita da forma mais prematura possível, até para não demorar, não alargar, não postergar por tanto tempo o sofrimento de portar no útero um fruto de uma violência. O sofrimento que isso ocasiona não é só para a mulher. O estupro, tal como nós já estudamos e sabemos, é um mal, é um ato que causa sofrimento para a menina e também para toda a família. Essa, inclusive, é uma das questões que fazem com que a população tenha ficado tão indignada em relação ao projeto. Nos protestos de rua, não havia só mulheres, estavam homens, estavam pais, estavam avós, porque esse sofrimento atinge toda a família, toda a sociedade. Foi um descuido da direita, de ter salgado excessivamente a dose, de ter entrado em valores muito caros à sociedade brasileira. E acho que a resposta que está nas ruas e seguirá nas ruas nas próximas semanas e meses vai ser muito forte. Arthur Lira disse que vai esperar a poeira baixar, que houve muito incômodo, mas a determinação de nós, mulheres, dos movimentos feministas é de não abaixar a poeira, de manter a poeira alta e estarmos definitiva e fortemente mobilizadas nas ruas, como começou a acontecer imediatamente nas redes e na ação interna junto à prática. É um momento muito importante para o Brasil, inclusive, porque essa convocatória restabelece uma possibilidade de um debate à esquerda, de um debate que avance a democracia, que avança os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos sociais de uma forma geral. Fica uma bonita imagem de que somos nós, as mulheres, puxaremos a luta e a resistência ao fascismo implantado no Congresso Nacional, e a essa ultradireita que assalta a democracia e impede que o país avance em um processo civilizatório de igualdade e de justiça social. Portanto, é um momento muito particular. O projeto é tão abominável sobre todos os aspectos, é tão absurdo, que fica evidente ter sido pensado pra provocar o governo, mas não foi capaz de antever a reação social. Quando mantêm a pena atual para o estuprador e penalizam a menina ou a mulher com 20 anos de prisão, ou seja, o dobro da pena do violador, não contavam com a indignação popular. Tanto é que eles agora já vêm com essa prosa de que vão aumentar a pena do estuprador. Mas a questão não é essa. A questão que está posta é sobre o direito conquistado, é sobre a saúde das mulheres, sobre a manutenção das mulheres vivas, porque essa proibição vai remeter às mulheres à prática clandestina de aborto e vai matá-las A cada vez essa proibição vai retomar a um tempo que o único recurso das mulheres era a prática clandestina, porque o desespero de uma mulher de levar ao curso final uma gravidez indesejada e uma gravidez fruto de uma violência é tão grande que elas adotam qualquer recurso. Vai ser o tempo de voltar aos métodos mais bárbaros, mais arriscados, que farão as mulheres morrerem de hemorragias, de infecções. É o tempo que os profissionais de saúde serão intimidados, quando eles, como profissionais treinados e jurados para ajudar e cuidar das mulheres, serão obrigados, por intimidação, a negar o atendimento. E se fizerem, atendendo ao juramento que fizeram, se fizerem a intervenção, serão penalizados e punidos. É interessante isso, porque até médicos que têm um professamento religioso se manifestam contra esse projeto, pois entendem que um direito conquistado não pode retroceder. Quem apresentou o projeto entrou num campo muito perigoso. Nesse sentido, o que comentar da postura de parlamentares , como o relator do PL 1904, Sóstenes Cavalcante, de que era um “teste para o governo”, e outros como o Cezinha de Madureira, que confrontado na Globo News com dados e números sobre o aborto, respondeu que “não se importava com pesquisas, pois minha fonte é deus”? Como dialogar com uma classe política que apresenta argumentos tão banalizadores? É um joguete, um objeto de barganha política. Isso no meio de um vício e uma intenção que esse grupo da ultradireita que envolve o ódio às mulheres, a misoginia, a obsessão pelos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente pelo aborto. Frequentemente, vemos muitos deputados com posição pessoal muito alargada em relação a isso e também em relação à violência contra mulheres. Certamente a Câmara tem mulheres que já vivenciaram situações de aborto porque é um evento extremamente frequente na nossa vida, na vida de todas as pessoas que praticam uma sexualidade humana, regular. De fato, esse “teste” envolve muito mais do que os negócios imediatos, que o agronegócio ou qualquer outro grupo político, econômico, ao qual o deputado esteja vinculado, tem como interesse. Envolve a ruptura da democracia, envolve uma disputa de poder e de hegemonia bem clara. Nós não podemos esquecer o que vivemos no golpe de 2016, quando Dilma teve o seu poder interrompido, teve o seu governo interrompido. Sabemos que se trata disso: uma disputa de hegemonia e poder no Brasil. Pegaram um assunto no qual esperavam um apoio popular grande, mas não obtiveram. E nós que estamos aqui sob incômodo e na ação política esperamos que o governo também mude de posição em relação ao tratamento desses senhores. Nós precisamos ajudar o governo a escancarar o jogo que está posto. E como esse grupo de deputados é, de fato, inimigo da pátria, inimigo das mulheres e inimigo de todos os projetos que beneficiam e apoiam o povo brasileiro. Eu acho que nós não podemos mais ficar reféns desse grupo político. E eu acho que essa é a chance, com a força das mulheres nas ruas, de o governo assumir posições mais firmes. ![]() E você vê uma reação firme do governo? Acha que há uma compreensão da janela de disputa que se abre? Primeiramente, quero saudar a posição firme do ministro Silvio Almeida, que fez uma leitura absolutamente pertinente. As mulheres ministras também se manifestaram, e espero que não só se manifestem como venham conosco para a mobilização, para a luta, que não é só das mulheres que estão na rua, é também uma luta do governo. Parece um momento importante, uma janela, o PL 1904 ocasionou uma ruptura de tolerância social, que cria possibilidades de uma indignação da qual o Brasil precisava para voltar às ruas, para pressionar. E o governo não pode nos deixar sozinhos. O governo precisa ouvir, sentir e avaliar politicamente a importância, porque a nossa presença na rua é um chamado, é uma convocação para que o governo assuma as posições pelas quais apostamos e votamos. É um momento muito importante para a democracia brasileira, para o futuro do Brasil. Nosso compromisso é varrer da política brasileira esse tipo de jogo, de chantagem que não favorece a democracia ou o debate das ideias. Favorece o constrangimento, a intimidação e, mais que isso, sacrifica uma parcela da população que está submetida ao ódio, à ruptura com o compromisso e a dignidade para com as mulheres. Nós não podemos de jeito nenhum permitir que esse projeto avance, além do que ele já avançou. É hora de a gente barrar definitivamente, e são as ruas que vão dar essa medida. Precisamos agora, nós mulheres, fazer uma campanha Brasil afora muito grande sobre não eleger prefeitos que apoiem, ou são apoiados por esse grupo de deputados fisiologistas e da ala do grupo político chamado “centrão”, os ultradireitistas, fundamentalistas religiosos. A religião tem de voltar para o seu lugar, não pode manipular a fé das pessoas para construir poder individual como vem sendo feito no Brasil. No Brasil e no mundo, lamentavelmente, mas aqui no Brasil estamos nós, as mulheres, querendo que mude, dando o nosso basta e achamos que a hora é essa, que todos venham, trabalhadores, homens, negros, LGBTQIA+, indígenas, toda a população venha mostrar a indignação, mas também colocar uma pauta de um Brasil democrático, justo e civilizado. O PL 1904 encontra eco em órgãos como o Conselho Federal de Medicina. Um CFM comandado por notórios bolsonaristas, um deles, Rafael Parente, ex-secretário de Atenção Primária à Saúde no governo Bolsonaro e na pandemia, ou seja, figura centralíssima em todo o resultado sanitário e humanitário desastroso, dentro do qual se encontra justamente um aumento das mortes maternas, que praticamente dobraram nos anos de Bolsonaro na presidência. É verdade, toda a questão tem a mão de um CFM hegemonizado politicamente por certas figuras que não representam a totalidade da categoria. Eu estou com duas alunas estudando morte materna, e sabemos que alguns estudos, como da doutora Melania Amorim, e vários outros, mostram claramente que a morte materna duplicou, triplicou em alguns estados. Houve, de fato, não só morte materna por covid, mas também a negligência com os casos de risco de morte materna aumentou, por uma desativação absurda que aconteceu da Atenção Primária, do atendimento de rotina. A resolução do CFM que tenta vetar a assistolia fetal em fetos de 22 semanas ocasionou uma reação muito grande da categoria médica. Essa tônica do órgão já gerou uma tímida tentativa de criação de campos de oposição na disputa pelos conselhos de medicina nos estados no ano passado, na eleição dos conselhos regionais de medicina. Isso cresceu e agora na eleição de agosto para o CFM há oposição a este grupo de fundamentalistas e negacionistas que vêm conduzindo o Conselho da forma mais absurda, anticientífica e autoritária possível. Esse grupo cresceu e está apresentando chapas de oposição em 18 estados, com chance de ganhar em mais de 60% deles. Isso vai mudar a configuração do Conselho Federal de Medicina, com certeza. E é muito importante que a gente fale sobre essas candidaturas que trazem nomes importantes. É uma coisa muito importante e inovadora, porque a categoria médica, essencialmente conservadora, também chegou no seu limite. Essas atitudes do Conselho testaram o limite da categoria médica também e ela está reage, exige medicina baseada na ciência, ética, dignidade, compromisso com o SUS e com a população, e claramente se manifesta contrária a essa recomendação do Conselho Federal de Medicina. A categoria médica tem uma história de proximidade e adesão ao fascismo e acho que essa característica também entrou no esgotamento. Não dá mais para a medicina ser deturpada na sua origem, que é uma profissão do cuidado, é uma profissão do zelo pela condição humana. Sabemos que o capital distorceu muito o interesse do médico, mas até isso, eu diria, chegou no limite. A crítica a uma medicalização, a um interesse muito prioritário do médico aos ganhos do capital, dos planos de saúde, hospitais, ou seja, todo um sistema ao qual se curva, também está em debate. Esse grupo volta a discutir a medicalização, o intervencionismo, a saúde como um direito, os exageros da medicina lucrativa, e isso é muito bom do ponto de vista de um futuro. Vamos acompanhar esse movimento que está acontecendo, monitorar, acompanhar na medida do possível, e apoiar essas chapas que se apresentam em oposição ao CFM que está aí. Não podemos esquecer que, no tempo da pandemia e já antes, desde que houve uma adesão do CFM à ultradireita, eles fazem dobradinhas de intervenções. Foi assim quando o Conselho Federal de Medicina ajudou a colocar sob desconfiança a vacina, quando questionou o isolamento social, quando deu espaço para “tratamentos” falsos de covid… Enfim, o órgão tem sido um parceiro dessa linha política. O PL 1904 vem nessa esteira. Na hora que o STF colocou limite e derrubou a determinação do CFM, mesmo transitoriamente, porque ainda está em julgamento e está interpelado, inclusive, por alguém vinculado a esse grupo, que é o ministro “terrivelmente evangélico”, o Congresso vem com um remédio mais forte, mais amargo. O Congresso tem atuado em uma constante prática de chantagem. Isso mostra a molecagem que orienta a ação do Congresso hoje, quando se trata de atendimento aos interesses dos grupos que o financiam, ao qual estão ligados, ou aos interesses deles próprios em relação aos grupos de capital, aos grupos religiosos ou o que seja. A característica da irresponsabilidade com o coletivo por parte do Congresso precisa ser denunciada. O tempo é agora, quando estamos elegendo prefeitos, e essa eleição de prefeitos é determinante, como nós sabemos, para o futuro do Congresso Nacional. Nós precisamos pensar fortemente em incidir sobre as pequenas prefeituras, que são os currais eleitorais dessa corja de deputados que vêm para cá causar dano à população brasileira e à nossa democracia. Do ponto de vista político, como você disse, o momento parece abrir uma oportunidade de retomada de lutas sociais e de rua, com pressão popular que possam retomá-las das mãos da ultradireita, o que até chega a ser pedido pelo presidente Lula em algumas declarações. Sim, na quinta-feira logo pela manhã os grupos que se mobilizam em torno de tais questões já estavam em atividade total. E as manifestações foram organizadas com bastante rapidez, surpreenderam pelo volume nas ruas de São Paulo, Rio; aqui em Brasília mesmo, proporcionalmente, foi muito robusta, e eu acho que seu vigor mostra que há assuntos que mobilizam. Neste caso, ultrapassou a janela da tolerância. Podemos ver que outras convocatórias, como o 1º de maio, não mobilizaram igual. Estamos aqui para não deixar baixar a poeira, vamos mantê-la alta, vamos incomodar, porque as mulheres não podem ser vilipendiadas dessa forma. Pensa que essa discussão pode evoluir para outras questões do direito ao aborto em outras circunstâncias, além daquele que a lei brasileira permite hoje? Esse fator que mobiliza a ida do povo nas ruas, e as próximas idas do povo nas ruas são muito favoráveis para uma mudança da opinião popular. Mas ainda acho que nós teremos alguns quilômetros à frente para um alargamento maior do direito ao aborto. Não vai ser com essa legislatura que nós avançaremos, provavelmente não. Por certo, atingiremos um patamar no debate popular mais interessante, mais bem informado, com mais compreensão do significado da legalização do aborto. Nós não podemos esquecer que os países vizinhos têm avançado nessa pauta. Colômbia, México, Argentina, Uruguai. E é uma pauta que as mulheres latino-americanas mantêm viva há muito tempo. Agora, precisamos construir mais, precisamos de mais mulheres, precisamos de mais compromissos da esquerda. Os partidos de esquerda não podem trair as mulheres sob pena de esvaziar o voto feminino para esses partidos. As mulheres hoje, enquanto atrizes políticas, têm cartas muito firmes. E isso fortalece muito as possibilidades. Nós não podemos esquecer que lá pelos anos 80 o debate sobre o aborto no Congresso Nacional era muito mais avançado em termos de ser um debate democrático, com prioridade à questão da saúde, do direito das mulheres e não essa loucura fundamentalista que se transformou atualmente, a partir do protagonismo desse grupo religioso e da ultradireita que manobra o Congresso. Para fechar com uma reflexão um pouco mais ampla, isso tudo aqui debatido faz parte de uma certa encruzilhada histórica da democracia, representada por este Congresso que, como você mesma diz, já fez debates mais avançados e agora se reduz a um moralismo cada vez mais histérico. Esse moralismo pode estar conectado a uma certa crise de reprodução do próprio sistema capitalista, que se manifesta em questões como a catástrofe climática do Rio Grande do Sul, diretamente relacionada com o nosso modo de reprodução socioeconômica? Sem dúvida que não interessa à ultradireita escancarar os estragos do neoliberalismo, do agronegócio, essa forma de gerir o próprio capitalismo e o rentismo e suas consequências ao país e ao meio ambiente. Mas essa pauta não está imune a estragos, porque eles tentam impor uma pauta de costumes que também é geradora de mais desigualdade, pois quem será penalizado são as mulheres pobres, negras, as meninas. Isso também nos convoca a uma qualificação desse debate e uma vinculação das pautas aos interesses maiores que estão postos. Quando Sóstenes Cavalcante disse que ia “testar o Lula”, ele testaria o Lula em quê? Nas políticas sociais que o Lula pretende implementar, no melhor financiamento que nós esperamos que o Lula vá manter a políticas sociais, na nossa pauta de manter a vinculação dos recursos da saúde, de aumentar o financiamento e o orçamento da saúde de forma adequada, justa e suficiente. Estou dizendo isso apostando que o projeto dos ministros Simone Tebet e Fernando Haddad são do interesse da Faria Lima, da Banca dos Rentistas, e não será vencedor. E, na medida em que o Lula fique firme e impeça o avanço desse projeto, eles vão espernear, o agronegócio vai espernear. Até quando o agronegócio será respeitado e não tão ajudado, porque o agronegócio não caminha por si, ele caminha nas tetas do Estado? É preciso colocar o Estado, como o Lula prometeu na eleição, a serviço do povo; manter a centralidade das necessidades populares no projeto do Estado brasileiro. Queremos que essa mobilização ajude também. Estamos aqui dizendo que a gente não aceita o projeto e o constrangimento nem da sociedade, nem do governo, em relação à chantagem que parte do Congresso Nacional quer impor ao Brasil. | A A |
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E o Nobel de economia vai para… a defesa do liberalismo!Uma análise mostra: prêmios reconhecem pesquisas muito vagas – e enquadradas no padrão de desenvolvimento do Norte. Vale conhecer um trabalho perspicaz sobre as desigualdades e suas soluções para “recuperação do atraso” – e ele é brasileiro Por Michael Roberts, com tradução em A Terra é Redonda 1.Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson receberam, agora em 2024, o prêmio Nobel (que, na verdade, é o prêmio Riksbank) de Economia “por seus estudos sobre a formação das instituições e sobre como elas afetam a prosperidade”. Daron Acemoglu e Simon Johnson são professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. James Robinson é professor da Universidade de Chicago, também nos Estados Unidos. Eis o que os árbitros do Nobel dizem sobre o motivo da premiação: “Hoje, 20% dos países considerados mais ricos são cerca de 30 vezes mais ricos do que os 20% tomados como os mais pobres. As disparidades de renda entre os países têm sido fortemente persistentes nos últimos 75 anos. Os dados disponíveis também mostram que as disparidades de renda entre os países cresceram nos últimos 200 anos. Por que as diferenças de renda entre os países são tão grandes e por que elas são tão persistentes?” “Os laureados deste ano foram pioneiros em uma nova abordagem que se mostrou capaz de fornecer respostas quantitativas e confiáveis para essa questão, que é obviamente importante para a humanidade. Eles examinaram empiricamente o impacto e a persistência das estratégias de desenvolvimento econômico adotadas por muitos países de baixa renda após a libertação do colonialismo. Verificaram, desse modo, que muitos deles criaram ambientes institucionais que classificaram de extrativistas. A ênfase no uso de dados históricos para apreender os experimentos institucionais, deu início a uma nova tradição de pesquisa que continua a ajudar a descobrir os impulsionadores históricos da prosperidade – ou de sua falta”. “As pesquisas desses economistas se concentram na ideia de que as instituições políticas moldam de modo fundamental as condições que permitem a geração da riqueza das nações. Mas o que molda essas instituições? Empregando o saber existente no campo da ciência política sobre a reforma democrática, largamente baseado na teoria dos jogos, Acemoglu e Robinson desenvolveram um modelo dinâmico no qual a elite dominante toma decisões estratégicas sobre instituições políticas – particularmente sobre os processos eleitorais – em resposta às ameaças emergentes periodicamente. Essa estrutura teórica agora é padrão para analisar a reforma institucional política. E ela tem impactado significativamente no desenvolvimento da pesquisa nesse campo. Ora, as evidências estão aumentando em apoio a uma das principais implicações do modelo: governos mais inclusivos promovem o desenvolvimento econômico”. 2.Ora, o que eu mesmo descobri examinando os ganhadores anteriores é que o vencedor ou a vencedora (mais raramente) – qualquer que seja a qualidade de seu trabalho – recebeu o prêmio não pelo melhor, mas geralmente pela pior parte de sua pesquisa. Eis que os trabalhos ganhadores sempre confirmavam a visão dominante sobre o mundo econômico atualmente existente, mesmo se não ia muito longe na compreensão das suas contradições inerentes. Acho que essa conclusão se aplica aos últimos vencedores acima referidos. O trabalho pelo qual eles receberam o prêmio de um milhão de dólares consiste em pesquisas cujo sentido foi mostrar que os países que alcançaram a prosperidade e acabaram com a pobreza são aqueles que adotaram a “democracia”. Por democracia, entenda-se a democracia liberal de estilo ocidental, onde as pessoas podem falar (principalmente), podem votar em políticos profissionais, esperando que as leis protejam as suas vidas e propriedades (isso é bem esperado). Nessa perspectiva, as sociedades que são controladas por elites que não tem qualquer responsabilidade democrática, que promovem a mera extração de recursos, que não respeitam a propriedade e o valor gerado na passagem do tempo, não prosperam. Os ganhadores do Nobel provaram essa tese por meio de uma série de artigos em que são apresentadas análises empíricas, as quais mostram a existência de correlação entre democracia (conforme definida) com os níveis de prosperidade. De fato, os ganhadores do Nobel argumentam que a colonização do Sul Global nos séculos XVIII e XIX poderia ter sido “inclusiva”. Os países da América do Norte, por terem sido “inclusivos” se transformaram em nações prósperas (nessa prosperidade deve ser excluída, obviamente, a população indígena). Já os países do Sul, por terem sido “extrativistas”, permaneceram na pobreza (América Central e do Sul) ou mesmo na extrema pobreza (África). Para eles, tudo depende das instituições assim classificadas. Essa é a teoria que defendem. Esse tipo de análise econômica é dito institucionalista. Ela prega que não são as forças cegas do mercado e da acumulação de capital que impulsionam o crescimento (e as desigualdades), mas as decisões e as superestruturas construídas pelos atores sociais. Com apoio nesse tipo de modelo, os atuais vencedores afirmam que as revoluções precedem as mudanças econômicas; para eles, não são as mudanças econômicas (ou a falta delas antes que um novo ambiente econômico seja criado) que precedem as revoluções. 3.Dois pontos decorrem dessa análise. Eis o primeiro deles: se o crescimento e a prosperidade andam de mãos dadas com a “democracia”, como explicar o sucesso de países como a União Soviética, China e Vietnã se eles têm supostamente elites “extrativistas” e/ou antidemocráticas? Como esses nobres ganhadores de prêmios Nobel explicam tais desempenhos econômicos indubitáveis? Aparentemente, eles o explicam pelo fato de que saíram de uma condição de extrema pobreza copiando tecnologia dos países mais desenvolvidos; contudo, após os primeiros saltos, o caráter extrativista de seus governos passa a fazer com que percam força? Bom, talvez acreditem que o hipercrescimento da China vai perder força logo. Talvez, isso esteja ocorrendo agora! Em segundo lugar, é correto dizer que revoluções ou reformas políticas são necessárias para colocar as coisas no caminho da prosperidade? Bem, pode haver alguma verdade nisso: a Rússia do início do século XX chegaria aonde está hoje sem a revolução de 1917; a China, explorada pelo imperialismo britânico, chegaria ao ponto em que chegou, agora em 2024, sem a revolução de 1949. Ora, esses nobres ganhadores de prêmios Nobel não se referem a tais exemplos: eles preferem a Grã-Bretanha e os Estados Unidos como exemplos de países vencedores. Contudo, o estado da economia, a forma como funciona, o investimento e a produtividade da força de trabalho também têm um efeito no progresso das nações. O capitalismo e a revolução industrial na Grã-Bretanha precederam a mudança em direção sufrágio universal, que só veio depois, após muita luta. A Guerra Civil Inglesa da década de 1640 lançou as bases políticas para a hegemonia da classe capitalista na Grã-Bretanha, mas foi a expansão do comércio (inclusive de escravos) e a colonização no século seguinte que produziram a prosperidade econômica. A ironia deste prêmio é que o melhor trabalho de Acemoglu e Johnson veio somente mais recentemente. Mas os avaliadores do prêmio se concentraram em trabalhos mais antigos desses pesquisadores. Apenas no ano passado, os autores publicaram o livro Poder e progresso (Objetiva) (Power and Progress), no qual apresentam a contradição presente nas economias modernas entre a tecnologia que aumenta a produtividade do trabalho, mas também tende a elevar a desigualdade e a pobreza. É claro que as soluções políticas que propõem não tocam na questão da mudança nas relações de propriedade, mesmo se recomendam que precisa haver um maior equilíbrio distributivo entre o capital e o trabalho. A favor dos vencedores deste ano vem o fato de que as suas pesquisas tentam entender o mundo econômico e o seu modo de desenvolvimento, ao invés de estabelecer algum teorema misterioso de equilíbrio, tal como já ocorreu. Muitos vencedores anteriores foram homenageados por tal tipo de contribuição esotérica. Contudo, é preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas (ou “contingentes” como eles próprios se referem) e, como tais, pouco convincentes. Acho que há explicação muito melhor e bem mais persuasiva sobre o processo de recuperação do atraso econômico (ou do fracasso em obtê-lo) no recente livro dos economistas marxistas brasileiros Adalmir Antônio Marquetti, Alessandro Miebach e Henrique Morrone. Eis que eles produziram um livro importante e muito perspicaz sobre o desenvolvimento capitalista global. Criaram inclusive uma maneira inovadora de medir o progresso da maioria da humanidade no chamado Sul Global que almeja, sem poder, “recuperar o atraso” em relação aos padrões de vida em vigor no “Norte Global”. O livro deles, Desenvolvimento desigual e capitalismo – Alçando ou ficando para trás na economia global (Unequal Development and Capitalism – Catching Up and Falling Behind in the Global Economy, Routledge), lida com várias variáveis que os atuais ganhadores do Nobel ignoram, ou seja, produtividade do trabalho e do capital, taxa de acumulação, troca desigual, taxa de exploração – bem como com o fator institucional mais importante, isto é, aquele que define quem controla o excedente, se esse controlador é de dentro ou de fora. Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view (Lulu Press) Tradução: Eleutério F. S. Prado. | A A |
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Vício em apostas online é comparável a epidemia de saúde pública, alerta Altay de Souza Psicólogo e pesquisador discute as consequências psicológicas e financeiras do crescente fenômeno de apostas no Brasil Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo SOCIEDADE TECNOLOGIA apostas online lobby política saúde tecnologia No Brasil, os jogos de apostas online têm se tornado uma preocupação crescente entre especialistas por serem projetados para viciar. A popularidade dos aplicativos de apostas, ou bets, é alimentada pela constante propaganda de ganhos vultosos em um curto período de tempo. Em entrevista ao Pauta Pública desta semana, o psicólogo e pesquisador Altay de Souza alerta para os perigos de uma epidemia ainda silenciosa, oculta nas telas de celulares. O vício em apostas online pode ser comparado a uma epidemia de saúde pública, alerta o psicólogo e pesquisador que fala sobre as consequências psicológicas e financeiras do crescente fenômeno de apostas no Brasil. Segundo um relatório da XP Investimentos, essas atividades já movimentam 1% do PIB e comprometem 20% do orçamento livre das famílias mais pobres. Já a consultoria PwC estima que as apostas já representam 1,38% do orçamento médio familiar desses estratos de menor renda, um aumento de cinco vezes em relação a cinco anos atrás, quando era de 0,27%. Souza destaca que a incidência de pessoas usando bets cresce em países com maior desigualdade, fazendo com que muitas busquem soluções rápidas para seus problemas financeiros. A ausência de regulação efetiva no Brasil também é preocupante. Em 2018, uma lei com regras pouco claras legalizou os sites de apostas esportivas, conhecidos como bets. Em 2023, foi aprovada a Lei 14.790, conhecida como nova lei de apostas esportivas, que, em tese, regula os processos de autorização de casas de apostas físicas ou virtuais, estabelece direitos dos apostadores, regula a publicidade de apostas e também a tributação. De acordo com a Fiquem Sabendo, a aprovação dessa lei foi resultado de meses de lobby das empresas de apostas em ao menos 78 reuniões em nove ministérios. Altay de Souza destaca que estratégias como melhorar a educação financeira são insuficientes para combater o vício em apostas, apontando para a necessidade de políticas que reduzam a desigualdade e protejam os consumidores. Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo. EP 135 Azar ou vício: vivemos uma epidemia de apostas online? – com Altay de Souza 30 de agosto de 2024 · Pesquisador explica impactos psicológicos e sociais dos aplicativos de BETs VEJA MAIS EPISÓDIOS DESTA SÉRIE [Clarissa Levy] Altay, para começar eu queria perguntar para você sobre o que já sabemos relacionado aos impactos psicológicos e financeiros dos jogos de apostas online. Alguns dados de uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotivo mostram que 46% dos jogadores brasileiros de apostas esportivas online são jovens, de 19 a 29 anos. O levantamento ainda mostra que um terço destes jovens está endividado ou com o nome sujo. Outra análise, feita por uma empresa de consultoria chamada Strategy aponta que as apostas no Brasil já representam 1,4% aproximadamente do orçamento de famílias de classes mais empobrecidas, das classes D e E com menos poder aquisitivo. Ano passado fui convidado para adicionar novas variáveis de um questionário que fazia parte de um relatório sobre uso de instrumentos financeiros, chamado “Raio X do investidor” feito pela Anbima (Associação de Bancos do Brasil). Nesse relatório, tem uma parte sobre stress financeiro e autocontrole e uma parte com estudos de prevalência das bets. Alguns dados do relatório são interessantes. Um deles é que entre 8 e 10% das pessoas que responderam o questionário acreditam que esse é um tipo de investimento. É a mesma coisa que achar que jogar na loteria é um investimento. Isso tem a ver com outro estudo que a gente fez no mesmo relatório ligado a autocontrole, que já é validado em dezenas de países. A gente perguntou para as pessoas “se eu te desse 100 reais hoje, quanto você aceitaria receber de volta daqui um ano?” Essas pessoas pedem cinco vezes mais em média, ou seja, 500 reais. Esse dado varia um pouco, mas é razoavelmente consistente entre vários países. Ao imaginar um investimento financeiro real que dá um retorno de 500% em um ano há uma dificuldade de base, nem o tráfico de drogas, de pessoas ou armas rende tanto. Quando pensamos alguma coisa que vai acontecer daqui um ano nos inclinamos a distorcer esse fato, porque não temos controle do tempo. A bet é um jogo que tem relação entre comportamento e tempo, base de toda a psicologia experimental. É como se você colocasse os seus comportamentos dentro do tempo e precisasse de uma plataforma para isso. [Clarissa Levy] Alguns pesquisadores têm falado sobre a febre das bets como uma questão de saúde pública no Brasil. Pode falar mais sobre isso? Eu dou aulas de epidemiologia na universidade, dentro dela tem uma área que se chama epidemiologia global que trata das grandes questões atuais, um exemplo são as questões ligadas à saúde pública. As doenças vão pegar você independente da sua nacionalidade. As bets são a mesma coisa, porque todos somos pessoas, temos dificuldades de autocontrole e todos nós distorcemos o tempo porque não o produzimos. Já existem trabalhos para regulamentação de bets. Um exemplo é a Holanda que já tem uma legislação para jogos – para jogos como o “tigrinho” e para jogos de videogame. Esses jogos funcionam como um cassino, só fazem uma manutenção ano a ano e vão se lançando. Já temos evidências de que as bets fazem mal, que melhorar a educação financeira das pessoas não funciona. A única solução seria as pessoas compreenderem o tempo de uma forma melhor, só que isso é fisiológico. Inclusive, no relatório “Raio X do brasileiro” e em outra literatura, falamos que outra variável crítica para reduzir as bets é reduzir a desigualdade. O Brasil é o país do mundo em que a incidência de pessoas que usam bets cresceu mais vertiginosamente na história. No ano passado, as apostas não eram conversa de ninguém, hoje são de todo o mundo, é como se fosse uma epidemia mesmo. Parece que esses esquemas crescem muito mais rápido em países mais desiguais. E a explicação vai para o autocontrole: se a pessoa é de uma origem muito desfavorecida ou está em alguma penúria financeira quer uma solução rápida. O jogo do tigrinho é pior que as bets, porque o jogo do tigrinho é quase que um cassino que tem um algoritmo programado para no início você ganhar mais. Isso que te segura. É igual a pessoa que você conhece que fez a bet e ganhou uma vez, pegou um empréstimo, ganhou, e aí não sai mais. A arquitetura é feita para isso. Outro exemplo é a pirâmide financeira. O esquema Ponzi ou pirâmide, tem um monte dessas pirâmides por aí que são a mesma coisa. Você me dá uma grana, e eu te dou um retorno rápido. Na primeira e segunda vez eu te devolvo mesmo, e depois é só ficar enrolando. Isso é exatamente o mesmo esquema das bets. As bets são um problema de saúde pública porque elas pulverizam muito mais o acesso a esse tipo de fraude. [Clarissa Levy] Pensando um pouco na responsabilidade coletiva, temos o marketing das bets rolando e o maior campeonato de futebol do país, o Brasileirão. Esse campeonato agora tem o nome de uma casa de apostas e sua publicidade desregulada, diferente de como acontece em outros países. Nesses termos, você pode dizer mais sobre esse combo marketing e regulação frágil? Novamente, isso é uma reedição, não é nada de novo. Claro que o marketing e a publicidade têm culpa total nisso. O marketing não é algo que se aprende por consciência, ele aprende por punição. Em geral, punição positiva ou negativa. Sendo um dono de uma casa de apostas e tendo dinheiro, sabendo que vai haver uma regulamentação porém vai ser daqui a dois ou três anos, eu faria um lobby para atrasar isso o máximo possível. A regulação tem que vir o quanto antes. Colaboração: Ana Alice de Lima | A A |
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A A | Jornalismo não deve adotar linguagem da extrema direita, propõe Fabiana Moraes As redes sociais estão no centro da polarização política, com o impulsionamento de desinformação e do discurso de ódio. Nesse contexto, é necessária uma reflexão crítica sobre os caminhos que o jornalismo e a sociedade vêm trilhando, principalmente em vésperas de disputas eleitorais, propõe a jornalista, escritora e professora Fabiana Moraes, em conversa com o Pauta Pública. Fabiana Moraes é autora de diversos livros, entre eles o mais recente, Ter medo de quê?: textos sobre luta e lantejoula, publicado pela editora Arquipélago. A obra é uma coletânea de suas principais colunas ao longo de seus seis anos de contribuição para veículos de imprensa como Intercept Brasil, UOL, piauí e Gama. Na conversa, Moraes fala sobre seu novo lançamento e traz reflexões sobre as posturas de enfrentamento aos discursos radicais e a necessidade de novas abordagens dentro da comunicação. Para ela, a extrema direita usa, cada vez mais, uma linguagem de “desrespeito pela lacração”. Uma estratégia que encontra ressonância social. Mesmo entendendo que ainda não há uma receita pronta para enfrentar isso, o fato é que o jornalismo não deve disputar a mesma linguagem, mas sim buscar elementos que possam ser retrabalhados. “Não dá para fazer perguntas para um comediante vestido de presidente e perguntar se ele tem uma proposta para o Brasil. É preciso repensar o tipo de comunicação que se faz a um candidato que não está interessado a falar [com jornalistas].” | A A |
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