CORPORATIVO




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A farsa das “corporações responsáveis”

Exame de uma contradição. Quanto mais produzem desastres, mais as megaempresas dizem-se “conscientes”. Que relações sustentam esta hipocrisia? E como explicar o crescimento da ultradireita, em meio ao “capitalismo verde”?

Por Ladislau Dowbor, em Meer. Tradução: Glauco Faria

O que importa é o crescimento sustentável
e equilibrado de longo prazo para todos nós.
As corporações estão correndo atrás de resultados imediatos para o 1%,
gerando desastres sistêmicos para a sociedade e para o mundo natural.
E elas apoiam calamidades políticas se isso for de seu interesse.
Não se trata de “apenas negócios”. Estamos enfrentando
uma falha estrutural, e nenhuma alegação de ESG ajudará.

(Ladislau Dowbor)


Se a economia tem uma lei digna desse nome,
é a de que as empresas preferem se fundir a competir.

(The Economist, 6 de abril de 2019, p. 61)

Costumávamos chamar de “catástrofe em câmera lenta”. Certamente não é mais em câmera lenta. Na tradição orwelliana de 1984 das reuniões de ódio contra Goldstein, nossas emoções foram canalizadas contra personalidades altamente visíveis no topo, os Hitlers de diferentes épocas, atualmente até mesmo os hitlerzinhos como Bolsonaro no Brasil ou Trump nos EUA. Mas Hitler chegou ao topo após as reuniões e o apoio dos gigantes corporativos do Ruhr, Krupp e outros. A IBM não teve problemas em garantir o sistema de gerenciamento dos campos de concentração alemães. Negócios. Sempre haverá demagogos prontos para se tornarem ditadores, mas a ditadura só existe em cima de um sistema de poder estruturado. Ler a história de Charles Koch construindo poder político em cima do superpoder econômico das Indústrias Koch é preocupante: o dinheiro para influência política organizada como investimento de longo prazo está mudando o que costumávamos chamar de democracia. Isso é muito mais do que uma questão Trump/Biden: trata-se de uma mudança estrutural na forma como nossas sociedades funcionam. Além dos idiotas fascistas que elegemos, temos de analisar quem os apoia.

A desigualdade é um drama não apenas porque gera muito sofrimento entre os pobres. Nenhuma democracia pode sobreviver quando se chega a um cenário de desigualdade profunda. Tom Malleson afirma isso de forma muito simples: “Os super-ricos minam a democracia… Lembre-se da tremenda influência que os irmãos Koch tiveram sobre a política norte-americana – gastando centenas de milhões de dólares por meio de uma vasta rede de fundações privadas obscuras e think tanks conservadores e atuando como peças-chave na mobilização do movimento Tea Party contra os impostos. ”1 A metade mais pobre e desesperada da população acaba apoiando o populismo de extrema direita, o que podemos ver em muitos países. O oportunismo político navega livremente pela frustração e pelo desespero.

Wolfgang Streeck está certo quando escreve que talvez não estejamos diante do fim do capitalismo, mas é o fim do capitalismo democrático. Muitas corporações, nos EUA, por exemplo, estão interessadas em investimentos militares. “Esses projetos podem fazer pouco sentido do ponto de vista do interesse nacional dos EUA, mas fazem muito sentido do ponto de vista do crescimento dos negócios dessas organizações e instituições dentro do competitivo mercado de segurança e guerra do setor de defesa militar dos EUA.” 2

A permanente insegurança internacional gerada, com as 750 bases militares que os EUA administram no mundo, sem falar nas vendas de armas e na submissão política de tantos países, está diretamente ligada ao gigantesco e altamente privatizado setor militar: “Os gastos ligados ao exército americano em 2024 chegarão a cerca de US$ 1,5 trilhão, aproximadamente US$ 12 mil por família”. Nenhum presidente tem o poder de reverter o processo, como vimos com a guerra do Vietnã, em que quatro presidentes sucessivos, embora convencidos de que não era possível vencê-la, continuaram a apoiá-la. Barbara Tuchman nos dá todos os detalhes sobre isso, denominando de “a marcha da insensatez”, e há uma lógica poderosa nisso. Estamos presos em uma máquina de poder que gera enormes custos, enorme sofrimento, mas também enormes lucros. Todo esse dinheiro poderia ser usado de outra forma. A voz corporativa é simplesmente mais forte.

Contaminação química permanente, as PFAS [substâncias perfluoroalquiladas]? Mike Ludwig analisou a DuPont e a 3M: “Essas empresas sabiam há décadas que estavam envenenando o mundo; elas sabiam que esses produtos químicos eram incrivelmente persistentes, sabiam que estavam entrando no sangue das pessoas, sabiam que seus trabalhadores estavam ficando doentes, sabiam que esses produtos químicos estavam contaminando comunidades próximas e mentiram sobre isso por anos… Não apenas os americanos, cada pessoa está pagando o custo disso. Está em nosso sangue e na vida selvagem, está no Ártico, está em todos os lugares — e isso é puramente por causa da ganância corporativa.”3 Essas corporações têm enfrentado desafios legais nas últimas duas décadas e remunerado exércitos de advogados. Esses custos legais são incorporados aos preços que pagamos por seus produtos, e seus advogados estão pressionando para que seus pagamentos sejam dedutíveis de impostos.


Poluição por plásticos? “A metade do plástico de marca era responsabilidade de apenas 56 empresas multinacionais de bens de consumo de rápido movimento, e um quarto disso era de apenas cinco empresas. A Altria e a Philip Morris International representaram 2% do lixo plástico de marca encontrado, a Danone e a Nestlé produziram 3%, a PepsiCo foi responsável por 5% das embalagens descartadas e 11% dos resíduos plásticos de marca puderam ser rastreados até a Coca-Cola… No entanto, embora muitas dessas empresas tenham tomado medidas voluntárias para melhorar seu impacto na poluição plástica, autores do estudo argumentam que elas não estão funcionando. A produção de plástico dobrou desde o início de 2000, e estudos mostram que apenas 9% do plástico está sendo reciclado.”4 O lixo plástico está em todo lugar. Podemos nós, consumidores, evitá-lo? As corporações dizem que somos nós que devemos agir com responsabilidade.

David Boyd, relator da ONU, não esconde seu desespero diante de “um sistema que é absolutamente baseado na exploração das pessoas e da natureza. E, a menos que possamos mudar esse sistema fundamental, estaremos apenas remexendo as cadeiras do convés do Titanic… Nos últimos seis anos, fiquei enlouquecido com o fato de os governos simplesmente não se darem conta da história. Sabemos que o setor de tabaco mentiu com todos os dentes durante décadas. O setor de chumbo fez o mesmo. O setor de amianto fez o mesmo. O setor de plásticos fez o mesmo. O setor de pesticidas fez o mesmo. Não consigo fazer com que as pessoas pisquem um olho. É como se houvesse algo errado com nossos cérebros, pois não conseguimos entender a gravidade dessa situação. Acho que o direito a um meio ambiente saudável é, na verdade, a base de que precisamos para desfrutar de todos os outros direitos humanos. Se não tivermos um planeta Terra vivo e saudável, todos os outros direitos serão apenas palavras no papel.”5

Responsabilidade corporativa? ESG? Será que devemos ler as letras minúsculas nos produtos que compramos? Bem, os CEOs nos EUA recebem 350 vezes o salário médio dos trabalhadores. Eles se vinculam aos acionistas, que confirmam seus ganhos, se maximizarem os dividendos. Uma mão lava a outra. Falamos de democracia, mas o poder está no mundo corporativo, e o 1% governa.

Monbiot está certo em seu ceticismo em relação à democracia. O orçamento federal dos EUA, o dinheiro que Biden tem que brigar pelo uso de cada bilhão, é de cerca de 6 trilhões de dólares. Larry Fink, na BlackRock, administra 10 trilhões e coloca o dinheiro onde os algoritmos mostram que os dividendos serão maximizados, no curto prazo, qualquer que seja o impacto econômico, social e ambiental. As cinco principais empresas de gestão de ativos administram quase 30 trilhões, mais do que o PIB dos EUA.6

O ESG está presente em todas as comunicações. Mas “o próprio relatório da Capgemini fornece um dado que demonstra o estado real da sustentabilidade nos negócios: ‘Os investimentos em iniciativas de sustentabilidade permaneceram estáveis entre 2022 e 2023 e representaram menos de 1% da receita total em 2023, enquanto os orçamentos de marketing foram equivalentes a 9,1% da receita anual, em média’. Em outras palavras, as empresas investem quase 10 vezes mais em marketing do que em sustentabilidade.” 7 Estamos sendo pressionados a consumir mais, e esses 9,1% para marketing estão nos preços que pagamos pelos produtos. É outra bola de neve à vista de todos, mas não à vista dos algoritmos corporativos.

Estamos enfrentando grandes corporações, com impacto em escala mundial, mas com objetivos limitados. Pessoas com uma abordagem fantasiosa de Papai Noel para os negócios, ou por uma abordagem liberal, considerariam que essas são apenas maçãs podres. Mas o The Economist vai direto ao ponto, quando se refere ao “mau cheiro que paira sobre várias empresas poderosas”: A Boeing enfrenta reclamações de que vendeu aviões 737 MAX com software perigoso. Ela diz que está “tomando medidas para garantir totalmente a segurança do 737 MAX”. Foram apresentadas acusações criminais contra o Goldman Sachs na Malásia por seu papel na estruturação de uma dívida de US$ 6,5 bilhões para um fundo estatal que se envolveu em fraude. O Goldman afirma que está cooperando com os investigadores.

Um júri da Califórnia acaba de concluir que a Monsanto não avisou a um cliente que seu herbicida poderia, supostamente, causar câncer. A Bayer, empresa alemã que comprou a Monsanto em junho, disse que recorrerá do veredito. O Wells Fargo, um dos maiores bancos dos Estados Unidos, admitiu ter criado 3,5 milhões de contas bancárias não autorizadas. Ele diz que está trabalhando para “reconstruir a confiança de nossas partes interessadas”. O Facebook está envolvido em escândalos; suas práticas em relação a dados foram examinadas em vários países. A empresa diz que ‘precisamos de um papel mais ativo para os governos reguladores’.8 Isso foi em 2019, antes de outros aviões da Boeing perderem uma porta ou rodas durante os voos.

O OxyContin, vendido como analgésico opioide, já matou centenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos. A família Sackler, proprietária da Purdue, está sendo processada, mas o dinheiro ganho gerou fortunas para a Johnson&Johnson, AmerisourceBergen e Walmart. As empresas estão desembolsando mais de US$ 50 bilhões no total em acordos de ações judiciais nacionais. De acordo com o The Economist, com 50.000 mortes por overdose por ano e aumentando, a crise de opioides dos Estados Unidos nunca foi tão grave. Eles continuam vendendo, os grandes distribuidores ganham dinheiro com isso, pagam as multas – insignificantes em comparação com os lucros – e continuam matando pessoas sem ter que admitir culpa. Isso faz parte do admirável mundo novo dos “acordos”. 9

Trouxe aqui apenas alguns exemplos, mas eles não são maçãs podres. Elas são o sistema. Alguns devem se lembrar do esquema da Libor do qual participaram todos os grandes bancos europeus. A Bayer e outros continuam a produzir produtos químicos proibidos na Europa, pois estão autorizados a vendê-los no exterior, inclusive para o Brasil, onde o agronegócio apoiou a eleição de Bolsonaro. Portanto, está tudo bem se você estiver envenenando outras nações. A invasão GAFAM [acrônimo de Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft] de nossas mentes se expande, enquanto os governos correm atrás de possíveis regulamentações para reduzir o que Max Fisher chamou, com razão, de A Máquina do Caos. E todos eles geram dividendos extraídos pela BlackRock e por outras estruturas de gestão de ativos vistas acima. Todos eles também usam amplamente os paraísos fiscais para escapar não apenas dos impostos, mas também das informações sobre os fluxos financeiros. Temos um sistema de governança financeira corporativa global e reuniões de Bilderberg, mas nenhum governo ou regulamentação global. É uma bagunça global, que nos leva para o fundo do poço.

Marjorie Kelly vai direto ao ponto: “O verdadeiro problema é o excesso de riqueza – como os oito bilionários que possuem metade da riqueza mundial. Mas a cultura de nossa economia em geral apoia, na verdade exige, a extração máxima de riqueza… O que está acontecendo é uma aspiração para cima. Os ativos financeiros se tornaram uma gigantesca ação de sucção, apertando os bolsos dos consumidores, gerando desemprego, elevando os preços das moradias a patamares inalcançáveis, criando monopólios que dificultam as empresas familiares, bloqueando nossa capacidade de enfrentar as mudanças climáticas, desestabilizando a economia com os altos e baixos do mercado de ações. E permitindo que os bilionários dominem a democracia… As empresas precisam obter lucro para sobreviver, mas a maximização desencadeia danos à sociedade e à destruição da Terra.” 10

Não se trata de Trump, nem de Bolsonaro, nem de Milei, nem de Orban, nem de tantos demagogos prontos para lamber as botas das empresas. É sobre as corporações que criam o terreno para eles.

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Teoria: E se estivermos à beira do Plataformismo

A ordem do capital segue vigente. O que mudou foi sua forma. Assim como abandonou o fordismo, sistema cria hoje um novo regime de exploração, ainda mais brutal, pervasivo e apoiado na tecnologia. Só a luta política permitirá superá-lo

O título deste texto é, evidentemente, uma provocação e, simultaneamente, um estímulo para reflexões e análises sobre o fenômeno da digitalização na perspectiva de sua totalidade no andar superior da superestrutura. Aqui se tem um artigo-síntese de um ensaio mais extenso – e com o mesmo título – que está sendo publicado como capítulo do livro Capitalismo X Cooperativismo de plataforma: Diagnóstico e propostas para a organização da classe trabalhadora*.

Em cinco séculos, o mundo saiu do feudalismo e da era agrária para um período industrial, já sob a égide do fordismo. O advento da reestruturação produtiva faz surgir o toyotismo e a ampliação dos serviços, já na perspectiva da acumulação flexível, hegemonia financeira e do neoliberalismo. Inovação tecnológica e a digitalização de quase tudo ampliaram-se, imbricadas à financeirização. Expandiu-se a ideia difusa de progresso e do fetiche da tecnologia, quase desconsiderando o fato do seu desenvolvimento ser fruto do trabalho humano, ao qual sempre esteve umbilicalmente vinculado. Capitalização e valorização se misturam entre fundos financeiros e plataformas digitais como instrumentos e infraestruturas de intermediação da comunicação e da produção, de onde emerge o plataformismo, como nova etapa do Modo de Produção Capitalista (MPC). Combinando e integrando princípios do fordismo e do toyotismo, o plataformismo tem acelerado as desigualdades, a precarização do trabalho e a dominação tecno-digital, ampliando a hegemonia financeira em todos os setores, espaços e dimensões da vida na sociedade contemporânea.

A dimensão do desenvolvimento e da inovação tecnológica com a ampliação da digitalização da vida social, junto com a ideia difusa de progresso e da explosão de startups (processo de startupização), acompanhada ainda do fetiche da tecnologia, ganhou corpo no campo das pesquisas em tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Um campo que também investiga o assunto das redes, as questões culturais, sóciocomunitárias e ainda as relações de poder e política que remetem à geoeconomia e à geopolítica numa outra forte interação com o campo de estudos da geografia e do espaço.

A dimensão econômica é mais clara e está presente na denominação do conceito (ou ideia) da economia de plataformas ou do capitalismo de plataformas e que tem ampla interface com as pesquisas sobre geoeconomia e espaço, mas também com a organização do trabalho, as etapas do MPC e com a crescente precarização do trabalho. A dimensão econômica também analisa a hiperconcentração das Plataformas Digitais (PDs), a oligopolização das Big Techs (Plataformas-raiz), o circuito de extração de valor e a intensa relação com a financeirização que juntos remetem a um novo ciclo ainda mais perverso de acumulação.

Porém, é na dimensão do trabalho e do MPC que emerge de forma mais evidente a lógica da racionalidade neoliberal de administração da vida e do cotidiano, incluindo a hiperindividualização da fábrica do sujeito-empresário, aquele que julga que se faz por si próprio (DARDOT e LAVAL, 2017). [1] Essa lógica presente no ambiente digital tem favorecido o surgimento desse “tripé do capitalismo contemporâneo”. Em síntese, a gênese do plataformismo trata da maciça digitalização, em nova etapa da reestruturação produtiva que vem dando suporte à ampliação da hegemonia financeira, sob a égide do neoliberalismo com o mercado ampliando o seu espaço na direção da vida em sociedade.

A abordagem não trata do tema – ao contrário – como superação do fordismo e nem do toyotismo, mas do convívio, ampliação e uso mais intensivo de ambos, aprofundando alguns princípios, em especial, do taylorismo: a supervisão, controle e a exploração, com o apoio das ferramentas cibernéticas e de infraestruturas tecnológicas. Através da intermediação do ambiente das plataformas digitais surgem enormes ganhos de produtividade, em especial na etapa de circulação, o que acaba ensejando não apenas as transformações no MPC, mas nas entranhas e na intensidade deste novo ciclo de acumulação.

A intermediação da comunicação e da produção e o capitalismo de plataformas

A reestruturação produtiva na atual fase de colossal digitalização – ou transformação digital – vem sendo acompanhada de processos e usos intensivos das plataformas que se desenrolam a partir do incremento de tecnologias da informação e comunicação (TIC) com uso da internet, inicialmente fixa e depois móvel e em velocidades crescentes (5G, 6G).

Segundo o dicionário o Aurélio “plataforma” é uma superfície plana e horizontal, mais alta que a área do redor. Pode ser ainda, um programa político, ideológico e ou administrativo de um candidato a cargo eletivo (em escolha). Ambas definições se aproximam e ajudam a iniciar a compreensão sobre o fenômeno da plataformização com a substantivação do processo de intermediação exercida pelas plataformas digitais que servem de instrumento para essa superfície interligar a produção ao consumo. Trata-se, portanto, de um meio, um instrumento de intermediação.

Em síntese, as plataformas digitais (PDs) podem ser vistas, de forma simultânea, como meio de produção e/ou como meio de comunicação. Ambos interligam a produção ao consumo e se configuram como circulação dentro da tríade marxiana (produção, circulação e consumo). Como meio de comunicação vemos as PDs usando as redes digitais e as mídias sociais (Facebook, Google, Twitter, TikTok, Youtube, Facebook, Instagram, WeChat, etc.) trocando informações e extraindo dados, através de imensas infraestruturas digitais (PESSANHA, 2023), gerando relações de poder (política) e negócios que aparecem sob a forma de PDs que interligam a produção (Amazon, Alibaba, Shopee, Mercado Livre, Americanas, Via Varejo, Magalu, etc.) ao consumo final. [2]

As PDs como meio de produção movimentam-se entre o intangível (virtualidade) do digital e a materialidade da infraestrutura logística de entregas, lembrando que o abstrato do digital também prescinde de enorme e colossal infraestrutura material de comunicação entre aparelhos, redes, torres, cabos submarinos, datacenters, etc. (PESSANHA, 2023). [3]

As PDs fazem a intermediação usando o mecanismo de captura e também de envio, bidirecional, extraindo valor tanto na ida quanto na volta, na lógica do serrote que corta dos dois lados. Além da conectividade e intermediação, as PDs permitem o rastreamento da informação que junto da captura de dados permite a extração de renda que também se efetua na etapa de circulação entre a produção e o consumo.

As PDs como meio de comunicação melhor identificam potenciais consumidores de coisas e serviços demandados. Todos na condição de “usuários” das mídias sociais que articulam de forma intensa a vida na sociedade contemporânea.

Em 2023, mais de 2/3 da população do planeta se utilizavam das principais mídias sociais. Na condição de usuários eles disponibilizam seus dados que, ao serem extraídos, se transformam em commodities (metadados) e são armazenados em Big Datas e a seguir processados, a partir da orientação dos algoritmos. O uso ampliado da digitalização para além das mídias sociais, dentro do que hoje se chama de Economia de Dados, permite estimar que o volume de dados produzidos no mundo deve passar dos 33 zetabytes que estava em 2018, para 175 zetabytes em 2025, ampliando para 291 zetabytes em 2027 [4]. Algo inimaginável que demonstra o domínio da tecnologia digital como um setor transversal que como as finanças atravessa todos os demais.

As Big Techs com esse potencial e esses recursos vendem publicidade direcionada a partir da promessa de interligar os consumidores aos grupos de produtores de quase tudo no mundo contemporâneo (assunto que será tratado adiante com os três principais tipos de rendas extraídas com as PDs). Assim fica exposta a lógica da intermediação que com o uso da infraestrutura das plataformas cria as condições de reger o processo plataformização.

As PDs atuam com eficiência extraordinária para capturar os excedentes econômicos regionais/nacionais em diferentes setores econômicos (vistos também como frações do capital – PESSANHA, 2019, p. 62-69), para levá-los, no seu movimento de valorização, em direção ao andar superior das altas finanças – movimento vertical (figura 1 abaixo) – a partir da ampliação dos rendimentos (mercado de capitais e fundos), onde realizam maiores lucros e acumulação, em processos que misturam a valorização (produção real) com a capitalização (capital fictício da financeirização) no movimento que chamei de capital helicoidal [PESSANHA, 2019, p.177-192].[5]

Figura 1: A lógica da plataformização na extração de valor.

PESSANHA (2020) [3] [6]

As PDs não acrescentam valor em movimento, mas evitam a desvalorização na etapa de circulação da qual faz parte, quando efetiva a apropriação pela função que realiza. Daí se depreende com maior potência e clareza, a lógica da plataformização, a condição das “plataformas-raiz”, das quais dependem os aplicativos e produzem o gigantismo das Big Techs.

Não é possível compreender a lógica da plataformização sem observar a articulação entre o circuito do valor, a financeirização (fundos de investimentos e circuito financeiro global), a inovação tecnológica, o uso ampliado das PDs e a “startupização” (PESSANHA, 2020, p.438) vistas nos dias atuais, em que a tecnologia se torna também propriedade (marcas, patentes e copyright). A tecnologia e o capital, como propriedades e como frações de classe, ampliam a captura de renda do trabalho na base da pirâmide.

Srnicek (2021) aprofundou a interpretação do capitalismo de plataformas definindo os três tipos de renda principais extraídos via plataformas-raiz. A conexão digital (transformação digital) extrai e organiza os dados na etapa de “dataficação” que é parte da etapa mais recente das mudanças decorrentes da reestruturação produtiva global e que vai resultar na mudança do MPC com a ascensão do plataformismo.

Transformações no MPC: do fordismo para o toyotismo até chegar ao plataformismo

Afinal, estamos ou não diante de uma nova etapa do modo de produção capitalista (MPC)? Há ou não elementos para essa hipótese de uma nova etapa do MPC? Entendemos que sim e que essa seria, em grande parte, decorrente das alterações, inicialmente graduais, do desenvolvimento da microeletrônica e de forma acelerada nas últimas décadas, produzidas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. Uma sociedade industrial tradicional que vai passando por mudanças na produção material, organização das cidades e em paulatina transição para uma sociedade, majoritariamente de serviços, mais conectada e interligada a novos tipos de trabalho e vida em sociedade. Em síntese, uma reorganização do trabalho que contribui para o surgimento de uma espécie de “sociedade das plataformas”.

As transformações produzidas por essa nova etapa da reestruturação produtiva, centradas na chamada transformação digital, ensejam análises mais arrojadas, em que pese ganhar ainda mais importância e ressignificação com a teoria marxista da renda e do valor. As noções de capital constante (fixo), ligadas aos meios de produção (e comunicação), à propriedade, ao capital variável e, especialmente, ao trabalho e ao processo de produção seguem compondo a tríade de classes identificada por Marx: terra (propriedade) – trabalho – capital. Ganha também relevância a noção do capital dividido em frações para se compreender as alterações produzidas pela digitalização e pelas plataformas digitais no modo de produção capitalista.

A partir do contexto apresentado sobre as PDs como meio de produção e meio de comunicação, numa lógica de controle que as plataformas-raiz (Big Techs) realizam enormes extração de renda e valor tendo levado ao gigantismo das empresas de tecnologia em processos que Srnicek chamou de capitalismo de plataformas é, então, possível reposicionar a pergunta: seria o plataformismo uma nova etapa do Modo de Produção Capitalista? Em que o plataformismo se diferencia das duas etapas anteriores: fordismo e o toyotismo? Nem uma e nem outra etapa, foram totais em termos de utilização como modo de produção nos seus períodos de picos de implantação conforme se pode ver na figura-2 abaixo.

Figura 2: Transformações no Modo de Produção Capitalista

PESSANHA (2020). [5] [6]

A passagem do fordismo para o toyotismo representou alterações na organização do trabalho, na hierarquia, disciplina e supervisão para uma produção sob demanda do Just-in-Time. As mudanças foram também fruto das reações da classe trabalhadora às pressões da supervisão e do controle por produtividade que ganhou corpo, em especial, após a IIª GM. Daí surge a ideia não apenas do JIT, mas o Kanban, a melhoria contínua (Kaizen), a terceirização, etc. O toyotismo não envolvia maquinaria, era muito mais a “persuasão” e novas formas de organizar o trabalho, a planta da empresa (processos e fluxos). Assim, se avançou ainda para flexibilizações, a participação, o enriquecimento de cargos, o modelo sueco da sociotécnica (Volvo), os CCQs (times), sindicalismo de empresas, a financeirização, o capitalismo flexível, mas tudo isso visou maior produtividade e admitia um convívio, mais ou menos intenso, com o taylorismo.

O fordismo se expandiu muito na utilização do tempo e do espaço e está ainda muito presente com maior ou menor grau de automação. O toyotismo desde o seu surgimento, a partir das décadas de 70/80, não chegou sequer a ser dominante, nem mesmo na indústria automobilística japonesa. O fordismo se reorganizou embaralhado à acumulação flexível e às técnicas de organização do trabalho vindas no bojo do sucesso do toyotismo, assim como ganha novos desenhos e impulsos com o aprofundamento da chamada Transformação Digital nessa nova fase da reestruturação produtiva e com o advento das plataformas.

As plataformas digitais aceleraram a flexibilidade e tornaram os processos de acumulação decorrentes de tudo isso, muito mais denso e fluido. As mudanças não se dão apenas na planta das empresas (processos e fluxos), mas na articulação do sistema como um todo. A velocidade de circulação e a fluidez das mercadorias e do capital se ampliaram de forma colossal. Vive-se numa hipermobilidade com uma “quase revolução” da etapa de circulação e da logística, reduzindo os custos de transportes e a desvalorização das mercadorias, em função do menor tempo entre a produção e o consumo. Nessa trajetória se adentrou num período com condições objetivas e materiais que Taylor e/ou Ford jamais imaginaram – ou sequer sonharam –, em termos de controle de todo o processo, desde a produção, a circulação indo até a etapa do consumo, hoje exercidos a partir da intermediação das TIC digitais.

É fato que se trata de mudanças muito aceleradas produzidas pela digitalização de quase tudo (Transformação Digital) que induzem a um deslocamento mais amplo do capitalismo, em que a hegemonia financeira também se expandiu, junto com a acumulação ainda mais flexível e ampla do dinheiro, já sob a condição de informação e registros digitais. Portanto, não se trata da superação do fordismo e nem do toyotismo, mas de um plataformismo que amplia o convívio desta nova etapa do MPC, integrando de forma ainda mais intensiva, os princípios e as características das etapas anteriores do sistema capitalista de produção.

O plataformismo faz surgir novos tipos de empresas e negócios: empresas-plataformas, empresas-aplicativos (APPs), e-commerce, marketplace (shoppings virtuais), etc. Assim vão incorporando também novos linguajares: nuvem (armazenagem de dados), aprendizado de máquinas (machine learning-ML), robôs, etc. A característica fundamental é a infraestrutura das plataformas, similar ao que foi a linha de montagem no fordismo, fazendo a mediação (simbiose) entre a virtualidade do digital e a materialidade do real. A infraestrutura das PDs também faz a mediação das relações entre diferentes grupos de usuários, com efeitos de rede e com arquitetura central que controla as possibilidades de interação (Srnicek, 2018). [7] [8] [9]

O plataformismo por todas essas características já descritas da economia de plataformas, aprofunda o taylorismo, a supervisão, o controle e a exploração com o apoio das ferramentas cibernéticas de intermediação do ambiente das plataformas digitais. Com a digitalização, os colossais ganhos passam o discurso de que produtividade seria também fruto da superação das imperfeições humanas, embora, elas ocorram de forma especial na etapa de circulação. Tudo isso enseja uma interpretação de que elas estariam permitindo não apenas transformações no MPC, mas no surgimento de um novo ciclo de acumulação ainda mais intenso e denso na direção do andar superior da pirâmide do capital (ARRIGHI, 2005). [10]. Rever figura 1: lógica da plataformização e o circuito do valor (valorização).

Com a intermediação realizada pelo plataformismo, o taylorismo e o fordismo reaparecem num ambiente de plataformas digitais nos controles e registros feitos pela maquinaria cibernética, fazendo com que a etapa de circulação da tríade marxiana se reduza enormemente (numa tendência em direção a zero). Articula-se o uso da comunicação virtual-digital das redes interligando-as às infraestruturas materiais de logística portuária, ferroviária, aeroportuária e rodoviária. Transporte (rastreado online) levam as mercadorias dos produtores até os consumidores finais, produzindo resultados econômicos que explicam o gigantismo das corporações de tecnologia, como nenhum outro tipo de companhia registrou antes. Assim, a chave para compreender plataformismo se situa na interface entre a “virtualidade do digital e a materialidade do real”, exatamente a etapa de circulação no interior da tríade do MPC.

Assim, o plataformismo parece ter absorvido a parte mais danosa ao trabalhador oriunda do taylorismo/fordismo que é a hierarquia, com o controle e uma supervisão quase total que passam a ser ampliados a partir do aperfeiçoamento do ambiente online, gerado pelas plataformas digitais como meio de comunicação e tudo isso se dá num patamar superior, àquilo que já se fazia o toyotismo, em termos organização e reorganização permanentes da produção. Portanto, o que surge da entrada da infraestrutura digital é algo distinto das etapas anteriores do MPC. Há uma mescla (integração) de princípios e características do fordismo e do toyotismo viabilizadas pelas PDs (como condições gerais de produção), em especial nas plataformas-raiz, agregadas e/ou interligadas às demais (plataformas, softwares ou aplicativos-APPs) nessa nova etapa do MPC, germinado pelo sistema informacional que gera o plataformismo. Por tudo isso, o plataformismo merece ser visto e analisado na perspectiva da totalidade do MPC, para além das leituras parciais, por dimensão e/ou escala, de forma fragmentada e algumas vezes superficial.

Considerações finais

Este ensaio deixa evidente a profunda relação entre tecnologia e trabalho que historicamente são imbricados como afirma Grohmann (2020) [11], que também lembra que as tecnologias são fruto do trabalho humano e que o desenvolvimento tecnológico se refere às forças produtivas e às relações de produção. Grohmann também recorda Marx que disse que “as tecnologias são recheadas de trabalho humano” ajudando explicar o contexto do fenômeno aqui investigado.

Os processos, agentes, as classes e seus movimentos aqui analisados, a partir do expressivo e acelerado avanço da digitalização e da maior utilização das plataformas no mundo contemporâneo, partem exatamente da leitura que o trabalho humano nunca deixou de estar no centro do modo de produção capitalista. A interrogação no título sobre a existência ou não de uma nova etapa do MPC, visou estimular o desejo de debates sobre essa hipótese, embora o texto exponha uma leitura que reforça e tenta sustentar a dimensão e direção destas mudanças. Isso não foi feito por acaso, mas de forma proposital, para dialogar com os leitores, demais pesquisadores e com os trabalhadores a partir de sua visão de classe, no âmbito da discussão que se insere na temática mais geral entre tecnologia e sociedade.

Na articulação entre o rentismo financeiro e a economia real observa-se que também avança a profunda relação entre tecnologia e finanças. A tecnologia foi deixando de ser fator de produção e subiu para a superestrutura com inovação tecnológica digital e de processos (tipo plataformas, startupização, etc.) que contribui para ainda maior extração de renda e valor de várias atividades e tem levado ao gigantismo e à dominação digital das Big Techs e à hegemonia do capital financeiro lubrificado pelos fundos entre ativos reais e financeiros. Uma substituição em que os capitalistas produtivos vão deixando de investir e sendo substituídos pelos donos de ativos (fundos) que passaram a controlar ativos reais e financeiros nas várias frações do capital.

O plataformismo misturado às finanças tem gerado uma indução ainda mais forte ao consumismo em função da propaganda dirigida e focada. A inovação tecnológica e a startupização apoiadas pela hegemonia financeira dos capitais de risco ampliam e potencializam ainda mais o avanço desse processo. Os fundos de investimentos junto com as PDs financeiras foram conferindo maior potência e uma hipermobilidade ao capital. A startupização reduziu os riscos dos negócios que, em tese, explicariam as margens de lucro das empresas no capitalismo.

Há muito ainda a ser analisado entre a digitalização/plataformização e a mobilidade do capital. As PDs são instrumentos que garantem a hipermobilidade do capitalentre suas frações. A aliança entre a dominação digital e a hegemonia financeiratambém expande a extração de renda em direção ao andar superior. A fluidez e hipermobilidade espacial obtidas pelo capital financeiro (fundos) através da digitalização, explica a característica intersetorial de ambos, que juntos se expandem de forma ainda mais intensa e imbricada nos tempos atuais.

As Big Techs (PDs planetárias) extraem mais valor e assim exacerbam as desigualdades de classe entre proprietários e trabalhadores e também a assimetria entre as nações, quando épossível enxergar o “deslocamento do capitalismo”. Assistimos ainda disputas intercapitalistas por maior capacidade de extrair renda, ampliar lucros e dominar num processo em que as infraestruturas das plataformas digitais e o plataformismo, como nova etapa do MPC, contribuem para ampliar e adensar a relação entre a dominação técnico-digital e a hegemonia financeira, sob a égide e a racionalidade neoliberal dos mercados, desenhando o que, junto com outros pesquisadores, tenho chamado de “tripé do capitalismo contemporâneo”.

Só a política pode conter esse processo que amplia as desigualdades, muda comportamentos e esgarça o processo civilizacional. Esforços contra-hegemônicos têm sido desenvolvidos e tentados, mas ainda com limitações para enfrentar o gigantismo do monopólio ampliado pelo capitalismo de plataformas. Espera-se que o uso coletivo do conhecimento, como bem intangível e riqueza multiplicável, possa ser adiante compartilhado e utilizado na direção do pós-capitalismo. 

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O que é preciso mudar no abono salarial

Pacote de cortes do governo atinge também um benefício consagrado na Constituição, e de grande importância para milhões de assalariados. Se é para alterá-lo, que seja para incluir as domésticas e os rurais – em sua maioria pobres e negras – excluídos injustificavelmente

Por João Telésforo

O pacote fiscal do governo tem recebido merecidas críticas, ao longo das últimas semanas, pela adoção de critérios mais restritivos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, sobretudo, pela limitação imposta à política de aumento real do salário mínimo. A proposta de mudança no abono salarial, por outro lado, tem sido objeto de poucas discussões.

O abono consiste em um benefício a que têm direito trabalhadores com cadastro de pelo menos cinco anos no PIS/PASEP, que tenham trabalhado por pelo menos 30 dias com carteira assinada no ano-base para empregadores que contribuem para o PIS/PASEP, recebendo remuneração anual média de até dois salários mínimos mensais. Desde a Constituição de 1988, o benefício era pago no valor de um salário mínimo para todos os trabalhadores que atendessem a esses requisitos. A partir de 2015, com o ajuste fiscal de Joaquim Levy no segundo governo Dilma, o pagamento passou a ser proporcional aos meses trabalhados com carteira assinada (sob protestos, inclusive, de parte da bancada do PT, como o Senador Paulo Paim). Hoje, o trabalhador tem direito a receber 1/12 do salário mínimo de abono por cada mês com carteira assinada por empregador que contribui para o PIS/PASEP.


Em 2019, o governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso, junto à reforma da Previdência, a proposta de restringir o abono aos trabalhadores que ganhassem até um salário mínimo. O ministério da Economia de Paulo Guedes alegava que a concessão do benefício a trabalhadores com renda mensal de 1 a 2 salários mínimos seria “regressiva e concentradora de renda”. Os economistas Pedro Rossi, Marco Antônio Rocha e Arthur Welle fizeram as contas, no entanto, e demonstraram que o abono salarial contribuía para a redução do índice Gini de desigualdade de renda (ver aqui). Observaram ainda que o desenho vigente, de concessão do abono para quem tinha renda de até dois salários mínimos, produzia queda da desigualdade maior do que com a limitação do benefício somente para quem tinha renda de até 1 salário mínimo.

O Congresso rejeitou as regras mais duras para o abono propostas por Guedes, à época. A medida encaminhada agora pelo governo Lula gera menos injustiças: a restrição do universo de pessoas com direito ao abono será feita paulatinamente, por meio de uma regra engenhosa. A renda para fazer jus ao abono no ano que vem, de R$ 2.640,00 mensais, passará a ser reajustada pela inflação, anualmente. Conforme o salário mínimo siga crescendo acima da inflação ao longo dos próximos anos, a renda para fazer jus ao abono ficará, a cada ano, um pouco mais abaixo dos dois salários mínimos mensais – até que atinja o valor de 1,5 salário mínimo, quando voltará a ser vinculada ao salário mínimo nesse valor.

O problema mais grave da proposta do governo, do ponto de vista do combate às desigualdades, não é a gradual restrição do abono a quem tenha renda de até 1,5 salário-mínimo (ainda não há estudos que tenham estimado os efeitos dessa política ao longo dos próximos anos). O problema é novamente reformar o abono salarial sem enfrentar a grave discriminação que essa política tem reproduzido ao longo de décadas: a exclusão de expressiva parte dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas e rurais que têm carteira assinada.

Note-se que fazem jus ao abono apenas trabalhadores com carteira assinada, mas nem todos: apenas aqueles cujos empregadores contribuem para o PIS/PASEP. Pessoas físicas não contribuem para o PIS/PASEP. Logo, trabalhadores contratados por pessoas físicas não têm direito ao abono.

De acordo com a Pnad 2023, do universo de 6,08 milhões de empregados domésticos no Brasil, 91,1% são mulheres, sendo a grande maioria mulheres negras. Estão excluídas do abono não apenas as milhões de trabalhadoras domésticas que estão na informalidade (junto ao conjunto dos trabalhadores informais), mas também o contingente minoritário de 1,4 milhão que têm carteira assinada, pois são empregadas por pessoas físicas.

Outro setor em que há contingente significativo de empregados por pessoas físicas é o dos trabalhadores rurais. Cerca de 70% dos 3,6 milhões de trabalhadores assalariados rurais no Brasil são negros, e 58% estão na informalidade, de acordo com dados da PNADC citados por estudo da Oxfam de 2024, que registra ainda que a maioria dos empregadores rurais é pessoa física.

Os direitos previstos na CLT não foram concedidos, inicialmente, para trabalhadores rurais e empregadas domésticas – sequer no plano formal. As lutas no campo conquistaram a igualdade de direitos somente com a Constituição de 1988. Já no caso das empregadas domésticas, essa conquista veio ainda mais tarde: com a PEC das domésticas, aprovada em 2013 (com o voto contrário do então deputado Jair Bolsonaro).


Não se trata de acaso: em um país capitalista dependente, pós-escravista, profundamente racista e patriarcal, naturaliza-se a superexploração de negros e negras, assim como a espoliação dos povos indígenas; mais ainda, das mulheres negras e indígenas. No campo e no espaço doméstico, essas relações de violência e exploração sempre foram particularmente visíveis. Ao mesmo tempo, esses são também lugares de insubmissão e lutas multisseculares, frequentemente invisibilizadas.

Se há reforma necessária do abono salarial, ela deve começar por medidas para reparar essa injustiça histórica, começando pela concessão do direito ao abono a trabalhadores empregados por pessoas físicas, o que beneficiaria sobretudo empregadas domésticas e trabalhadores rurais. A rigor, a exclusão desses grupos desse direito é inconstitucional, uma vez que se trata de medida discriminatória, fruto de um sistema de relações sociais racistas e patriarcais. O pensamento econômico, político e jurídico que se nega a enfrentar e transformar essa realidade é aquele que continua a operar como “espelho da Casa Grande”, conforme teorizou Juliana Araújo Lopes em seu estudo sobre a luta das trabalhadoras domésticas por direitos.

Se o governo procura uma medida não apenas de impacto conjuntural, mas de significado histórico na luta por justiça social, racial e de gênero (tal qual a PEC das domésticas), este seria um momento adequado para fazer a reforma verdadeiramente necessária no abono salarial. Já há proposições legislativas nesse sentido em tramitação no Congresso Nacional: o Senado aprovou, em 2013, projeto de lei do Senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) para estender o direito ao abono salarial aos empregados de pessoas físicas, urbanas e rurais. O projeto encontra-se parado na Câmara dos Deputados (PL 6684/2013), desde então. Mais recentemente, no ano passado, o Instituto Doméstica Legal encaminhou sugestão de um projeto semelhante à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, para garantir o pagamento do abono salarial aos empregados domésticos e domésticas. A Sugestão recebeu parecer favorável do Senador Paulo Paim, e tramita como PLP 147/2023.

É verdade que a concessão do abono à minoria de trabalhadoras domésticas e rurais que têm carteira assinada não resolveria o problema das milhões de outras que permanecem na informalidade. Não há dúvidas de que precisamos caminhar para uma política de renda básica universal de cidadania, de modo que o regime de proteção social não dependa de vínculo empregatício. Entretanto, seria má-fé utilizar isso como argumento para manter a regra racista atual; é imperativo superar, de imediato, a exclusão discriminatória desse direito a 1,4 milhões de trabalhadoras domésticas, além de contingente expressivo de trabalhadores rurais.

Não faz tantos anos que alguns setores da esquerda opunham-se às cotas raciais para o ensino superior com a alegação de que era preciso melhorar a educação de base e universalizar o acesso às universidades – um discurso de inclusão, na aparência, utilizado como pretexto para seguir praticando a exclusão racista. Não podemos admitir a repetição desse tipo de discurso. Enquanto existir o abono, enquanto não for suplantado por uma política superior de renda básica universal, não é admissível manter a odiosa e explícita discriminação legal que trata milhões de brasileiros e brasileiras, majoritariamente negros e negras, como cidadãos de segunda classe, sacrificando-os no altar rentista da austeridade fiscal.

Agradeço a Pedro Marques pelos comentários que contribuíram para aprimorar este texto, isentando-o de responsabilidade pelas opiniões aqui expostas.


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Quando a democracia do cotidiano fagulhava

Entre 1980 e 2000, Brasil viveu ciclo virtuoso de políticas urbanas locais. Visavam superar as desigualdades com imaginação política e participação. Projeto propõe: resgate de memórias coletivas pode subsidiar novas lutas por cidades mais justas

Por Carolina Borin, no Jornal da USP

Entre o início dos anos 1980 e o final dos anos 1990, o Brasil vivenciou uma fase de inovações nas administrações municipais de várias cidades. As Prefeituras das cinco regiões do País colocaram em prática programas políticos que abrangiam temas variados e pautados numa perspectiva mais democrática de cidade, incluindo descentralização administrativa, conselhos populares, integração de transportes, tarifa social e tarifa zero, agricultura urbana, segurança alimentar, equipamentos públicos, além de iniciativas em saúde e educação.

Com o objetivo de resgatar registros e memórias das inovações e experiências vivenciadas nesse período é que se originou a pesquisa de doutorado As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000, de Pedro Rossi, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design (FAU) da USP. A orientação da pesquisa é de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista e Professora Emérita da FAU. 


Durante a pesquisa, Rossi reuniu uma grande quantidade de materiais impressos – de cartazes, panfletos a fotografias e jornais – e audiovisuais do período que o pesquisador caracteriza como ciclo virtuoso da política urbana brasileira. Para disponibilizar esse acervo e a memória desse período, ele construiu a plataforma digital Ciclo Virtuoso, que está disponível desde o dia 3 de outubro para acesso público e gratuito.

“Ao mesmo tempo em que fazia esse exercício de organizar a bibliografia e estudar para minha tese, estava gerando um repositório virtual de todo esse material que foi analisado”, comenta Rossi. “Ao invés de deixar isso numa pasta privada, no meu próprio computador, tivemos a ideia de colocar esse material em um repositório digital.” A partir desse momento, Rossi e Erminia passaram a dedicar um tempo da pesquisa à formulação dessa plataforma e compreender de que forma outros acervos virtuais estavam sendo construídos. 

“Esse processo me ajudou a entender que a nossa pesquisa também atende a uma demanda muito forte hoje, que é atender às políticas de memória”, complementa Rossi sobre a construção e a idealização da plataforma. “O site atual é só um um repositório inicial a partir dessas pesquisas que estamos fazendo agora, mas a ideia é que, a partir de estudos e trabalhos de outras pessoas, o repositório seja complementado, colocando-se como um memorial dos programas e do que já foi vivenciado, inclusive, para atualizar um pouco dos nossos atuais paradigmas.”

A ferramenta escolhida para o desenvolvimento foi o Tainacam, um software livre feito pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília (UnB), com apoio da Universidade Federal de Goiás, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e do Instituto Brasileiro de Museus. Ele é um plugin associado ao WordPress (sistema livre e aberto de gestão de conteúdo para internet) e não tem nenhum custo de instalação ou atualização, podendo ser usado, copiado, estudado, modificado e redistribuído sem nenhuma restrição. O Tainacam é utilizado por acervos vinculados ao Ministério da Cultura e instituições associadas à USP, como o Museu do Ipiranga.

Ciclo virtuoso da política urbana brasileira

Como consequência, na década de 60 os problemas urbanos se agravaram e a quantidade de habitações como cortiços e favelas aumentaram consideravelmente. Os movimentos sociais da época, muito influenciados por uma política de bem-estar social, começaram a desenhar caminhos para superar os desafios do crescimento urbano, como se observa com as políticas de Reforma de Base do presidente João Goulart. “Em 1964, aconteceu o golpe que instaurou uma ditadura que não só negou, como também reprimiu os movimentos de luta pela Reforma Urbana, pelo acesso à moradia digna e que atravessa o direito à cidade”, pontua Rossi.

Apesar da repressão e da interferência das lideranças da ditadura civil-militar nas eleições municipais, algumas experiências do ciclo virtuoso são observadas ainda nos anos 70, em cidades como Lages, em Santa Catarina, e Piracicaba, em São Paulo. Em Lages, por exemplo, sob a gestão do prefeito Dirceu Carneiro, a população tinha uma participação significativa em encontros culturais, associações e programas municipais, como o de medicina comunitária.

Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, as Prefeituras passaram a incorporar as práticas dos movimentos sociais na gestão. “Esses movimentos estavam superaguerridos no momento inicial dessas Prefeituras, fazendo com que a sua participação fosse muito importante na elaboração e na implementação dessas políticas, ao ponto deles executarem de maneira participativa esses programas”, diz o pesquisador. “A participação social foi uma grande chave de mudança.”


“No Brasil, nesse período, existe um movimento nas cidades, na esfera do poder local e que passa a formar uma rede nacional de luta por direitos”, salienta Erminia Maricato. “Essa rede nacional faz e encaminha um projeto de Reforma Urbana para os debates de elaboração da Constituição de 1988, na qual conquistamos a inclusão de dois artigos sobre cidades pela primeira vez”, afirma. 

Algumas das experiências do ciclo virtuoso também vão além da redemocratização e do período do Ciclo das Prefeituras Democráticas. Algumas delas ocorreram nas primeiras décadas do século 21 em cidades como São Paulo (gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad), Araraquara (SP) e Maricá (RJ). Também se destacam os casos de João Pessoa e Conde, na Paraíba, sob as gestões de Ricardo Coutinho e Márcia Lucena.

Cartaz do projeto Goiânia Viva, uma iniciativa de participação cidadã promovida pela Prefeitura Municipal de Goiânia durante a gestão de Darci Accorsi (1993-1996) – Imagem: Centro Sérgio Buarque de Holanda, Fundação Perseu Abramo (CSBH/FPA)/Ciclo Virtuoso

Sobre a experiência vivenciada, Erminia complementa: “É difícil de acreditar pela falta de memória coletiva deste momento”. A motivação para pesquisar esse tema nasceu justamente deste aspecto e que, segundo Rossi, dialoga com o próprio contexto atual do País. “Estamos vivendo uma escalada e retomada de uma política ultraconservadora acompanhada de um projeto de apagamento de políticas públicas que visam a superar desigualdades sociais”, afirma o pesquisador. 

“A tese faz um pouco essa provocação, de olhar o período democrático e participativo que tivemos nas Prefeituras e recuperar essa memória”, diz Rossi. Erminia Maricato salienta a importância de projetos como esse: “Estamos vivendo um certo presentismo, de hipervalorização do tempo presente e do imediato, mas um povo que não tem memória, não é dono do seu passado, não consegue desenhar um projeto de futuro”. 

O pesquisador comenta que a pesquisa não é uma tentativa de repetir o passado do ciclo virtuoso, uma vez que o contexto é totalmente outro, com uma estrutura dos movimentos sociais, quantidade de repasses e estratégias de comunicação distintas. “Recuperar essa experiência pode mostrar para as Prefeituras atuais que, enquanto as preocupações do dia a dia da população não forem atendidas o poder vai continuar concentrado nas mãos de poucos, assim como a renda perpetuando desigualdades”, comenta Rossi. “A proposta é ressaltar a importância dessa democracia do cotidiano e sinalizar caminhos para essa construção longa e coletiva de um outro futuro possível”, destaca a orientadora.

Navegando na plataforma

A plataforma Ciclo Virtuoso é de livre acesso e fácil uso com navegação por meio de páginas e seções. O repositório é dividido em: página inicial, acervo, mapa, vídeos e cronologia. Em todas as páginas, está presente a aba explicativa “Como Navegar?”, que explica de que maneira o usuário pode usar a plataforma. Há também o recurso de hiperlink a partir do ícone que representa uma pasta de arquivo digital, que, ao serem clicados, direcionam o usuário à coleção de documentos ou diretamente aos detalhes do item no acervo. 

Na página inicial apresenta-se a proposta do site e o tema abordado no projeto para contextualizar o usuário sobre o que foi o Ciclo Virtuoso das Prefeituras. Nessa página também está disponível parte dos materiais para consulta, entre eles impressos e fotografias com legendas específicas.


Trecho da página inicial da plataforma Ciclo Virtuoso com folheto informativo da Prefeitura de Diadema, livreto informativo da Prefeitura de Londrina e das Prefeituras de Vitória e Belém- Imagem: Reprodução/Ciclo Virtuoso

No Acervo, é possível procurar itens por busca simples por termos; avançada, que direciona a termos e formatos mais específicos do material; ou por filtros. Estes permitem refinar a pesquisa com base em múltiplos critérios: tipo de documento, data de publicação, suporte do material, localização, gestão da Prefeitura, fase do ciclo e partido da gestão. Os resultados podem ser ordenados por categorias específicas também. 

A página Mapa auxilia na geolocalização das experiências documentadas, oferecendo uma visão espacial das iniciativas. Aqui podem ser aplicados os mesmos filtros que são utilizados na busca na seção Acervo. 

Em Vídeos, estão disponíveis os materiais audiovisuais coletados em ordem cronológica. Ao lado de cada item há uma breve explicação e contextualização. 

Na página Cronologia, o usuário tem acesso a linhas do tempo interativas, organizadas por décadas e segmentadas a cada dois anos, com eventos destacados em cores diferentes para facilitar a navegação. Os eventos estão categorizados por temas. Ao passar o cursor sobre os ícones ou barras, você pode visualizar mais informações e acessar conteúdos e documentos vinculados.

A página está dividida em seis seções. A primeira delas é Panorama, geral do contexto histórico, com duas linhas do tempo, sendo uma do período da ditadura civil-militar e outra da Nova República – da década de 1980 até o início do século 21 –, com ênfase nas gestões municipais e seus contextos históricos. As outras cinco seções são dedicadas às gestões municipais das regiões do Brasil – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.

Trecho da linha do tempo Nova República (Redemocratização e Ciclo Virtuoso) e detalhe do marco da Criação do Fórum Nacional de Participação Social, no dia 1º de janeiro de 1990 – Imagens: Reprodução/Ciclo Virtuoso

A pesquisa As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000 ainda está em fase de conclusão, com previsão de defesa da tese para o primeiro trimestre de 2025. 

A autoria da pesquisa e desenvolvimento da plataforma são de Pedro Rossi, arquiteto e urbanista, membro pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) A Produção da Casa e da Cidade, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da FAU e da Rede BrCidades. A orientação e a coordenação do projeto são de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista, Professora Emérita da FAU que foi Secretária Municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades, além de pesquisadora do INCT Produção da Casa e da Cidade e membro da Rede BrCidades.

Para saber mais, acesse a plataforma neste link. Acesse também a página do LABHAB para conhecer mais projetos do Laboratório.

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A reaparição dos invisíveis

O trabalho assalariado não acabou — e ocupa quatro vezes mais jovens que o “empreendedorismo”. Atingidos pelos retrocessos trabalhistas, eles foram esquecidos também por parte esquerda. O VAT mostrou sua força. Mas quem são?

Logo depois das eleições municipais de 2024, no calor dos debates sobre a dificuldade de candidatos e partidos à esquerda dialogarem com “as periferias” e as “classes populares”, um acontecimento chamou a atenção da mídia e do cenário político: a emergência de um movimento reivindicando o fim da escala 6X1. Chamado VAT, acrônimo de “Vida Além do Trabalho”, o movimento traz como principal bandeira o fim do regime semanal de seis dias de trabalho para um de descanso e afirma a necessidade de limitar a jornada de trabalho para que haja tempo para o lazer, a convivência com a família e amigos, os estudos e os cuidados com a saúde. Ou seja, para usufruir da vida.


Tudo nesse movimento parece inusitado e improvável, porque desvela atores invisíveis, e põe em cena agendas decretadas como desatualizadas, lutas consideradas perdidas, identidades que algumas análises acadêmicas interpretam como não tendo mais apelo. E, sobretudo, contraria várias narrativas correntes a respeito das posições dos jovens no mundo do trabalho, das suas experiências, queixas e demandas, do que os toca e mobiliza.

Quem se dispõe a observar com algum cuidado os protagonistas desta mobilização constata que o VAT é composto em sua grande maioria por jovens das classes populares (o que, em geral, coincide com morar “nas periferias”), trabalhadores assalariados nos setores de comércio e serviços. Essa é uma primeira dimensão do espanto, porque os diagnósticos correntes sobre os jovens no Brasil tendem a ressaltar as dimensões da inatividade, exibindo dados sobre o sempre notável número de nem nem, a evasão escolar e o desalento ou o subaproveitamento da força de trabalho nessa geração. Também porque impera um discurso de que, devido às transformações no mundo do trabalho, os jovens dessa geração estariam absolutamente distantes da experiência do trabalho assalariado, sendo todos conta-própria, autônomos, empreendedores ou aspirantes a se estabelecerem como tais.

A segunda dimensão do espanto vem do fato de que uma mobilização tão significativa tenha sido provocada por “um grito de dor”, denunciando uma situação de exaustão que afeta a saúde física e mental desses jovens; que o mote da mobilização tenha sido essa identidade na dor, a necessidade de dizer “chega”, dizer “desse jeito, não”, indo na contramão do que dizem os apelos lançados à potência, resiliência, garra dos jovens, que tem fundamentado as propostas de empregabilidade e empreendedorismo.

Por fim, surpreende também o fato de esses jovens se identificarem como parte “das classes trabalhadoras”, construírem suas reivindicações tomando como referência a legislação trabalhista (CLT) e levantarem, com uma importante releitura, uma bandeira que atualiza uma demanda clássica da luta por direitos do trabalho: a limitação da jornada e a defesa do descanso remunerado, contrariando uma tese corrente de que a agenda de direitos do trabalho estaria superada, uma vez que não teria apelo para as novas gerações.

Quem são e o que dizem

O fundador do movimento VAT, Rick Azevedo, recém-eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro, é um jovem trabalhador do setor de comércio. Atualmente com 31 anos, migrou do interior do Tocantins para a capital carioca antes de completar 18 anos, em busca de oportunidades de trabalhar e estudar.

Saí do interior de Tocantins em 2010 em busca de um futuro melhor, mas a realidade se mostrou desafiadora. Cheguei à capital com a esperança de me formar, iniciando cursos em enfermagem, marketing e jornalismo. No entanto, a necessidade de conciliar estudo e trabalho, a falta de dinheiro e, principalmente, a exaustiva escala 6×1 me impediram de concluir a faculdade.”2

Nesse percurso, desenvolveu uma extensa trajetória de trabalho, com ocupações variadas em empregos de baixa qualificação e remuneração, que vão de bicos de vendedor ambulante ao trabalho assalariado formal no comércio como balconista de farmácia. Como ele sempre afirma, 12 anos na esgotante escala 6×1.


Ressaltando a contradição entre suas expectativas e a realidade imposta pelas funções que exerceu para sua sobrevivência, Rick expressou seu incômodo por não ter tempo para usufruir de outras dimensões da vida, como resultado desse regime de trabalho. Suas queixas foram vocalizadas inicialmente nas redes sociais, como nesse primeiro desabafo postado em 13 de setembro de 2023 no TikTok3:

eu estou revoltado. eu estou querendo saber, alguém tem essa informação para me dar? quando é que nós da classe trabalhadora vamos fazer uma revolução no país contra essa escala 6X1?!? é uma escravidão moderna, moderna não, ultrapassada.”

O reclamo rapidamente viralizou: sua postagem desencadeou uma grande identificação, provocando inúmeros relatos de queixas semelhantes, o que ensejou a criação do VAT, com a proposição de um abaixo assinado pedindo uma modificação na CLT que impedisse a contratação na escala 6X1. Aliando a agitação nas redes com campanhas diárias nas ruas, em regiões de comércio e circulação de trabalhadores, com pequenos panfletos e muita conversa, converteram o que seriam apenas likes em um milhão de assinaturas para uma petição dirigida ao Congresso Nacional. Pouco tempo depois, o movimento se fortalece e ganha uma escala nacional ao ganhar o apoio fundamental da deputada Erika Hilton na proposição de uma Proposta de Emenda Constitucional pela transformação da jornada de trabalho.

Jovens trabalhadores

A história do Rick Azevedo, assim como de outras lideranças do VAT e de seus seguidores, é ilustrativa de um segmento pouco visibilizado no nosso debate político: jovens trabalhadores, que compõem a imensa maioria da juventude brasileira e um segmento expressivo das classes trabalhadoras do nosso país. Apesar das manchetes recorrentes na mídia e das conclusões dos diagnósticos preparados por instituições especializadas repisarem eternamente o problema da “inatividade e desengajamento da juventude”4, a grande maioria dos jovens brasileiros, a partir dos 18 anos, está intensamente envolvida com o mundo do trabalho.

Segundo o IBGE, a taxa de participação dos jovens entre 18 e 29 anos de idade é de 74,5%, isto é, 3 em cada 4 jovens trabalha ou procura emprego, uma proporção maior do que aquela encontrada para o conjunto da população adulta5. Os tipos de ocupação abrangem tanto as velhas como as novas formas de trabalho e são, em geral, trabalhos de baixa qualificação, com jornadas intensas, salários baixos e pouca garantia de direitos e proteção.

Ao contrário do que postulam certas percepções em cena, a grande maioria dos postos ocupados por jovens é de trabalho assalariado, e não de trabalho autônomo. Em 2023, três quartos (78,7%) dos jovens ocupados eram assalariados – incluídos nessa categoria os empregados com carteira assinada (47,4%), os empregados sem carteira assinada (25,7%), os militares e servidores estatutários (2,3%) e os trabalhadores domésticos (3,3%)6. Menos de um quinto (17,5%) trabalhavam por conta-própria e apenas 1,6% era empregador (duas categorias nas quais poderiam constar os autônomos e os “empreendedores”). Vale a pena assinalar que não é entre os jovens que o trabalho autônomo (ou o empreendedorismo) ganha mais adeptos. As parcelas de conta-própria e de empregadores aumentam conforme se eleva a faixa etária.

No entanto, é entre os jovens que são mais presentes as situações de trabalho assalariado precário, como as informais, as atingidas pelas desregulamentações recentes, as que envolvem trabalho por tempo indeterminado, pagamento por demanda e por metas. Mesmo os postos assalariados formais disponíveis para os jovens são aqueles com maior rotatividade, mais mal pagos e com jornadas e escalas mais desfavoráveis.

Em 2023 (último dado disponível), o salário médio dos jovens ocupados no trabalho principal era de R$ 1.964,00, o que corresponde a dois terços do já baixo salário médio do trabalho principal da população ocupada como um todo (R$ 2.890,00). E as jornadas de trabalho são tão intensas quanto as da população adulta: 75% dos jovens entre 14 e 29 anos ocupados trabalhava em jornadas semanais de 40 horas ou mais, quase o mesmo que entre a população adulta (76,3%). A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) não nos informa sobre a escala de trabalho semanal, ponto central da demanda do VAT, mas sabemos que essa é a que impera nos setores de comércio e serviços7, historicamente aqueles que mais absorvem a força de trabalho juvenil. A observação da distribuição por setor de atividade mostra que 38% dos jovens entre 14 e 29 anos ocupados estavam em três segmentos: nos setores de “comércio e reparação” (24,5%), “alojamento e alimentação” (7%) e “outros serviços” (6,7%). Em todos esses setores, os jovens representam mais de um terço de todos os ocupados8.

Apesar de a maioria dos jovens trabalhadores vivenciarem estas relações e condições adversas, há pouca atenção voltada para essa situação, e menos ainda proposições para seu enfrentamento, tanto no plano governamental como no sindical. A maior parte da preocupação com o tema do trabalho dos jovens está centrada na questão da inatividade e do desemprego. As respostas que têm sido encaminhadas atuam apenas no plano da garantia de uma formação educacional e profissional que aumentem as suas possibilidades de conquistar melhores postos de trabalho e, mais recentemente, na substituição do trabalho assalariado por alternativas de empreendedorismo e start ups como uma forma “mais moderna” e satisfatória de inclusão produtiva para os jovens. Ou seja, há pouca ou nenhuma tentativa de interferir nas condições dos trabalhos disponíveis, de modo a proteger a saúde e os direitos dos jovens trabalhadores.

Os líderes e os seguidores do VAT são jovens trabalhadores assalariados, de diferentes setores do comercio e dos serviços, precarizados, exauridos pelas intensas jornadas de trabalho, tendo sua saúde e diferentes dimensões de suas vidas afetadas pela jornada excessiva. É das tensões, conflitos e prejuízos produzidos em suas vidas por esse regime de trabalho que eles se queixam e sobre o que reivindicam mudanças.

A escuta atenta às suas falas e pronunciamentos se torna imprescindível para compreender o sentido e alcance que o movimento desencadeado por eles pode ter. Em um vídeo de convocação para a manifestação ocorrida no dia 15 de novembro de 2024, Priscila Araujo Kashimira, uma jovem trabalhadora do telemarketing e liderança do VAT em São Paulo, conclama:

Chega! Chega de não ter vida, chega de não poder ter amigos, de não poder ter saúde. A gente está se matando, a gente está se acabando com remédios, a gente não consegue hoje ter uma família, a gente não consegue cuidar da nossa família. Vamos acabar com esse resquício da escravidão e lutar contra a escala 6X1”9

Priscila menciona explicitamente a juventude como classe trabalhadora explorada e desumanizada. Numa entrevista, relatando o seu trabalho como operadora do telemarketing e apontando que situações similares ocorrem entre os “trabalhadores de shopping”, disse: “o trabalhador é tratado como máquina e quando acaba, até a gente lembrar que é um ser humano…”10.

Ela, assim como muitos outros integrantes do VAT, acentua as dificuldades de conciliar o trabalho com a vida familiar. Falam das mulheres com filhos pequenos (muitos cartazes em suas mobilizações dizem “quero ver meu filho crescer”), e falam também, como filhos, da experiência de suas mães, com quem não puderam realmente conviver pelo trabalho intenso delas. Todos os relatos, reclamos e depoimentos dos jovens nas redes sociais revelam a insatisfação profunda com as condições dos trabalhos disponíveis – revolta centrada na extensão da jornada, que resulta na impossibilidade de viver as outras esferas da vida.

Falando da própria experiência, eles tocaram muitos outros trabalhadores, inclusive os que “não são CLT”, os informais e aqueles por “conta-própria”, que também enfrentam escalas desumanas, às vezes piores, como a 10×1 e até mesmo de 14×1, que têm ocorrido em certos setores do comércio, e a de 7×0, que se tornou frequente entre os autônomos que supostamente detém a autonomia sobre seu próprio tempo de trabalho11.

O movimento desencadeado pelo VAT tem impacto especial porque vocaliza demandas de uma experiência geracional singular mas, ao mesmo tempo, catalisa uma insatisfação generalizada e reivindica direitos que dizem respeito a todos os trabalhadores. É significativo que a pauta dos direitos do trabalho e a volta da “classe trabalhadora” ao centro dos acontecimentos tenham surgido da atuação de segmentos invisíveis e desprezados, de trabalhadores assalariados de baixa qualificação dos setores de comércio e serviços, fragmentados e dispersos em pequenas unidades de trabalho, com baixa organização sindical, na sua maioria jovens, negros, moradores das periferias; e que sua representação política no congresso tenha sido empunhada por uma mulher trans, também negra e com origem periférica.

A reivindicação pela limitação da jornada de trabalho a no máximo cinco dias por semana atualiza, assim, a demanda histórica de amplos segmentos das classes trabalhadoras pelo descanso remunerado e se coloca como uma das agendas mais significativas da conjuntura, disparando outras ações (como a greve da Pepsico) e trazendo novamente a luta pelos direitos do trabalho para o centro dos acontecimentos. Como dizem seus integrantes, é uma luta contra a precarização, contra a exploração, o sucateamento e a desumanização dos trabalhadores; é uma luta pelo “direito humano e a dignidade”12 levantada pelos trabalhadores da base mais explorada do mercado de trabalho: “este país jamais se sustentará sem a classe trabalhadora da base. Somos a maioria, e a nossa mobilização está apenas começando.

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