CORPORATIVO
A A | A farsa das “corporações responsáveis”Exame de uma contradição. Quanto mais produzem desastres, mais as megaempresas dizem-se “conscientes”. Que relações sustentam esta hipocrisia? E como explicar o crescimento da ultradireita, em meio ao “capitalismo verde”? Por Ladislau Dowbor, em Meer. Tradução: Glauco Faria O que importa é o crescimento sustentável e equilibrado de longo prazo para todos nós. As corporações estão correndo atrás de resultados imediatos para o 1%, gerando desastres sistêmicos para a sociedade e para o mundo natural. E elas apoiam calamidades políticas se isso for de seu interesse. Não se trata de “apenas negócios”. Estamos enfrentando uma falha estrutural, e nenhuma alegação de ESG ajudará. (Ladislau Dowbor) Se a economia tem uma lei digna desse nome, é a de que as empresas preferem se fundir a competir. (The Economist, 6 de abril de 2019, p. 61) Costumávamos chamar de “catástrofe em câmera lenta”. Certamente não é mais em câmera lenta. Na tradição orwelliana de 1984 das reuniões de ódio contra Goldstein, nossas emoções foram canalizadas contra personalidades altamente visíveis no topo, os Hitlers de diferentes épocas, atualmente até mesmo os hitlerzinhos como Bolsonaro no Brasil ou Trump nos EUA. Mas Hitler chegou ao topo após as reuniões e o apoio dos gigantes corporativos do Ruhr, Krupp e outros. A IBM não teve problemas em garantir o sistema de gerenciamento dos campos de concentração alemães. Negócios. Sempre haverá demagogos prontos para se tornarem ditadores, mas a ditadura só existe em cima de um sistema de poder estruturado. Ler a história de Charles Koch construindo poder político em cima do superpoder econômico das Indústrias Koch é preocupante: o dinheiro para influência política organizada como investimento de longo prazo está mudando o que costumávamos chamar de democracia. Isso é muito mais do que uma questão Trump/Biden: trata-se de uma mudança estrutural na forma como nossas sociedades funcionam. Além dos idiotas fascistas que elegemos, temos de analisar quem os apoia. A desigualdade é um drama não apenas porque gera muito sofrimento entre os pobres. Nenhuma democracia pode sobreviver quando se chega a um cenário de desigualdade profunda. Tom Malleson afirma isso de forma muito simples: “Os super-ricos minam a democracia… Lembre-se da tremenda influência que os irmãos Koch tiveram sobre a política norte-americana – gastando centenas de milhões de dólares por meio de uma vasta rede de fundações privadas obscuras e think tanks conservadores e atuando como peças-chave na mobilização do movimento Tea Party contra os impostos. ”1 A metade mais pobre e desesperada da população acaba apoiando o populismo de extrema direita, o que podemos ver em muitos países. O oportunismo político navega livremente pela frustração e pelo desespero. Wolfgang Streeck está certo quando escreve que talvez não estejamos diante do fim do capitalismo, mas é o fim do capitalismo democrático. Muitas corporações, nos EUA, por exemplo, estão interessadas em investimentos militares. “Esses projetos podem fazer pouco sentido do ponto de vista do interesse nacional dos EUA, mas fazem muito sentido do ponto de vista do crescimento dos negócios dessas organizações e instituições dentro do competitivo mercado de segurança e guerra do setor de defesa militar dos EUA.” 2 A permanente insegurança internacional gerada, com as 750 bases militares que os EUA administram no mundo, sem falar nas vendas de armas e na submissão política de tantos países, está diretamente ligada ao gigantesco e altamente privatizado setor militar: “Os gastos ligados ao exército americano em 2024 chegarão a cerca de US$ 1,5 trilhão, aproximadamente US$ 12 mil por família”. Nenhum presidente tem o poder de reverter o processo, como vimos com a guerra do Vietnã, em que quatro presidentes sucessivos, embora convencidos de que não era possível vencê-la, continuaram a apoiá-la. Barbara Tuchman nos dá todos os detalhes sobre isso, denominando de “a marcha da insensatez”, e há uma lógica poderosa nisso. Estamos presos em uma máquina de poder que gera enormes custos, enorme sofrimento, mas também enormes lucros. Todo esse dinheiro poderia ser usado de outra forma. A voz corporativa é simplesmente mais forte. Contaminação química permanente, as PFAS [substâncias perfluoroalquiladas]? Mike Ludwig analisou a DuPont e a 3M: “Essas empresas sabiam há décadas que estavam envenenando o mundo; elas sabiam que esses produtos químicos eram incrivelmente persistentes, sabiam que estavam entrando no sangue das pessoas, sabiam que seus trabalhadores estavam ficando doentes, sabiam que esses produtos químicos estavam contaminando comunidades próximas e mentiram sobre isso por anos… Não apenas os americanos, cada pessoa está pagando o custo disso. Está em nosso sangue e na vida selvagem, está no Ártico, está em todos os lugares — e isso é puramente por causa da ganância corporativa.”3 Essas corporações têm enfrentado desafios legais nas últimas duas décadas e remunerado exércitos de advogados. Esses custos legais são incorporados aos preços que pagamos por seus produtos, e seus advogados estão pressionando para que seus pagamentos sejam dedutíveis de impostos. Poluição por plásticos? “A metade do plástico de marca era responsabilidade de apenas 56 empresas multinacionais de bens de consumo de rápido movimento, e um quarto disso era de apenas cinco empresas. A Altria e a Philip Morris International representaram 2% do lixo plástico de marca encontrado, a Danone e a Nestlé produziram 3%, a PepsiCo foi responsável por 5% das embalagens descartadas e 11% dos resíduos plásticos de marca puderam ser rastreados até a Coca-Cola… No entanto, embora muitas dessas empresas tenham tomado medidas voluntárias para melhorar seu impacto na poluição plástica, autores do estudo argumentam que elas não estão funcionando. A produção de plástico dobrou desde o início de 2000, e estudos mostram que apenas 9% do plástico está sendo reciclado.”4 O lixo plástico está em todo lugar. Podemos nós, consumidores, evitá-lo? As corporações dizem que somos nós que devemos agir com responsabilidade. David Boyd, relator da ONU, não esconde seu desespero diante de “um sistema que é absolutamente baseado na exploração das pessoas e da natureza. E, a menos que possamos mudar esse sistema fundamental, estaremos apenas remexendo as cadeiras do convés do Titanic… Nos últimos seis anos, fiquei enlouquecido com o fato de os governos simplesmente não se darem conta da história. Sabemos que o setor de tabaco mentiu com todos os dentes durante décadas. O setor de chumbo fez o mesmo. O setor de amianto fez o mesmo. O setor de plásticos fez o mesmo. O setor de pesticidas fez o mesmo. Não consigo fazer com que as pessoas pisquem um olho. É como se houvesse algo errado com nossos cérebros, pois não conseguimos entender a gravidade dessa situação. Acho que o direito a um meio ambiente saudável é, na verdade, a base de que precisamos para desfrutar de todos os outros direitos humanos. Se não tivermos um planeta Terra vivo e saudável, todos os outros direitos serão apenas palavras no papel.”5 Responsabilidade corporativa? ESG? Será que devemos ler as letras minúsculas nos produtos que compramos? Bem, os CEOs nos EUA recebem 350 vezes o salário médio dos trabalhadores. Eles se vinculam aos acionistas, que confirmam seus ganhos, se maximizarem os dividendos. Uma mão lava a outra. Falamos de democracia, mas o poder está no mundo corporativo, e o 1% governa. Monbiot está certo em seu ceticismo em relação à democracia. O orçamento federal dos EUA, o dinheiro que Biden tem que brigar pelo uso de cada bilhão, é de cerca de 6 trilhões de dólares. Larry Fink, na BlackRock, administra 10 trilhões e coloca o dinheiro onde os algoritmos mostram que os dividendos serão maximizados, no curto prazo, qualquer que seja o impacto econômico, social e ambiental. As cinco principais empresas de gestão de ativos administram quase 30 trilhões, mais do que o PIB dos EUA.6 O ESG está presente em todas as comunicações. Mas “o próprio relatório da Capgemini fornece um dado que demonstra o estado real da sustentabilidade nos negócios: ‘Os investimentos em iniciativas de sustentabilidade permaneceram estáveis entre 2022 e 2023 e representaram menos de 1% da receita total em 2023, enquanto os orçamentos de marketing foram equivalentes a 9,1% da receita anual, em média’. Em outras palavras, as empresas investem quase 10 vezes mais em marketing do que em sustentabilidade.” 7 Estamos sendo pressionados a consumir mais, e esses 9,1% para marketing estão nos preços que pagamos pelos produtos. É outra bola de neve à vista de todos, mas não à vista dos algoritmos corporativos. Estamos enfrentando grandes corporações, com impacto em escala mundial, mas com objetivos limitados. Pessoas com uma abordagem fantasiosa de Papai Noel para os negócios, ou por uma abordagem liberal, considerariam que essas são apenas maçãs podres. Mas o The Economist vai direto ao ponto, quando se refere ao “mau cheiro que paira sobre várias empresas poderosas”: A Boeing enfrenta reclamações de que vendeu aviões 737 MAX com software perigoso. Ela diz que está “tomando medidas para garantir totalmente a segurança do 737 MAX”. Foram apresentadas acusações criminais contra o Goldman Sachs na Malásia por seu papel na estruturação de uma dívida de US$ 6,5 bilhões para um fundo estatal que se envolveu em fraude. O Goldman afirma que está cooperando com os investigadores. Um júri da Califórnia acaba de concluir que a Monsanto não avisou a um cliente que seu herbicida poderia, supostamente, causar câncer. A Bayer, empresa alemã que comprou a Monsanto em junho, disse que recorrerá do veredito. O Wells Fargo, um dos maiores bancos dos Estados Unidos, admitiu ter criado 3,5 milhões de contas bancárias não autorizadas. Ele diz que está trabalhando para “reconstruir a confiança de nossas partes interessadas”. O Facebook está envolvido em escândalos; suas práticas em relação a dados foram examinadas em vários países. A empresa diz que ‘precisamos de um papel mais ativo para os governos reguladores’.8 Isso foi em 2019, antes de outros aviões da Boeing perderem uma porta ou rodas durante os voos. O OxyContin, vendido como analgésico opioide, já matou centenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos. A família Sackler, proprietária da Purdue, está sendo processada, mas o dinheiro ganho gerou fortunas para a Johnson&Johnson, AmerisourceBergen e Walmart. As empresas estão desembolsando mais de US$ 50 bilhões no total em acordos de ações judiciais nacionais. De acordo com o The Economist, com 50.000 mortes por overdose por ano e aumentando, a crise de opioides dos Estados Unidos nunca foi tão grave. Eles continuam vendendo, os grandes distribuidores ganham dinheiro com isso, pagam as multas – insignificantes em comparação com os lucros – e continuam matando pessoas sem ter que admitir culpa. Isso faz parte do admirável mundo novo dos “acordos”. 9 Trouxe aqui apenas alguns exemplos, mas eles não são maçãs podres. Elas são o sistema. Alguns devem se lembrar do esquema da Libor do qual participaram todos os grandes bancos europeus. A Bayer e outros continuam a produzir produtos químicos proibidos na Europa, pois estão autorizados a vendê-los no exterior, inclusive para o Brasil, onde o agronegócio apoiou a eleição de Bolsonaro. Portanto, está tudo bem se você estiver envenenando outras nações. A invasão GAFAM [acrônimo de Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft] de nossas mentes se expande, enquanto os governos correm atrás de possíveis regulamentações para reduzir o que Max Fisher chamou, com razão, de A Máquina do Caos. E todos eles geram dividendos extraídos pela BlackRock e por outras estruturas de gestão de ativos vistas acima. Todos eles também usam amplamente os paraísos fiscais para escapar não apenas dos impostos, mas também das informações sobre os fluxos financeiros. Temos um sistema de governança financeira corporativa global e reuniões de Bilderberg, mas nenhum governo ou regulamentação global. É uma bagunça global, que nos leva para o fundo do poço. Marjorie Kelly vai direto ao ponto: “O verdadeiro problema é o excesso de riqueza – como os oito bilionários que possuem metade da riqueza mundial. Mas a cultura de nossa economia em geral apoia, na verdade exige, a extração máxima de riqueza… O que está acontecendo é uma aspiração para cima. Os ativos financeiros se tornaram uma gigantesca ação de sucção, apertando os bolsos dos consumidores, gerando desemprego, elevando os preços das moradias a patamares inalcançáveis, criando monopólios que dificultam as empresas familiares, bloqueando nossa capacidade de enfrentar as mudanças climáticas, desestabilizando a economia com os altos e baixos do mercado de ações. E permitindo que os bilionários dominem a democracia… As empresas precisam obter lucro para sobreviver, mas a maximização desencadeia danos à sociedade e à destruição da Terra.” 10 Não se trata de Trump, nem de Bolsonaro, nem de Milei, nem de Orban, nem de tantos demagogos prontos para lamber as botas das empresas. É sobre as corporações que criam o terreno para eles. | A A |
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O que é preciso mudar no abono salarialPacote de cortes do governo atinge também um benefício consagrado na Constituição, e de grande importância para milhões de assalariados. Se é para alterá-lo, que seja para incluir as domésticas e os rurais – em sua maioria pobres e negras – excluídos injustificavelmente Por João Telésforo O pacote fiscal do governo tem recebido merecidas críticas, ao longo das últimas semanas, pela adoção de critérios mais restritivos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, sobretudo, pela limitação imposta à política de aumento real do salário mínimo. A proposta de mudança no abono salarial, por outro lado, tem sido objeto de poucas discussões. O abono consiste em um benefício a que têm direito trabalhadores com cadastro de pelo menos cinco anos no PIS/PASEP, que tenham trabalhado por pelo menos 30 dias com carteira assinada no ano-base para empregadores que contribuem para o PIS/PASEP, recebendo remuneração anual média de até dois salários mínimos mensais. Desde a Constituição de 1988, o benefício era pago no valor de um salário mínimo para todos os trabalhadores que atendessem a esses requisitos. A partir de 2015, com o ajuste fiscal de Joaquim Levy no segundo governo Dilma, o pagamento passou a ser proporcional aos meses trabalhados com carteira assinada (sob protestos, inclusive, de parte da bancada do PT, como o Senador Paulo Paim). Hoje, o trabalhador tem direito a receber 1/12 do salário mínimo de abono por cada mês com carteira assinada por empregador que contribui para o PIS/PASEP. Em 2019, o governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso, junto à reforma da Previdência, a proposta de restringir o abono aos trabalhadores que ganhassem até um salário mínimo. O ministério da Economia de Paulo Guedes alegava que a concessão do benefício a trabalhadores com renda mensal de 1 a 2 salários mínimos seria “regressiva e concentradora de renda”. Os economistas Pedro Rossi, Marco Antônio Rocha e Arthur Welle fizeram as contas, no entanto, e demonstraram que o abono salarial contribuía para a redução do índice Gini de desigualdade de renda (ver aqui). Observaram ainda que o desenho vigente, de concessão do abono para quem tinha renda de até dois salários mínimos, produzia queda da desigualdade maior do que com a limitação do benefício somente para quem tinha renda de até 1 salário mínimo. O Congresso rejeitou as regras mais duras para o abono propostas por Guedes, à época. A medida encaminhada agora pelo governo Lula gera menos injustiças: a restrição do universo de pessoas com direito ao abono será feita paulatinamente, por meio de uma regra engenhosa. A renda para fazer jus ao abono no ano que vem, de R$ 2.640,00 mensais, passará a ser reajustada pela inflação, anualmente. Conforme o salário mínimo siga crescendo acima da inflação ao longo dos próximos anos, a renda para fazer jus ao abono ficará, a cada ano, um pouco mais abaixo dos dois salários mínimos mensais – até que atinja o valor de 1,5 salário mínimo, quando voltará a ser vinculada ao salário mínimo nesse valor. O problema mais grave da proposta do governo, do ponto de vista do combate às desigualdades, não é a gradual restrição do abono a quem tenha renda de até 1,5 salário-mínimo (ainda não há estudos que tenham estimado os efeitos dessa política ao longo dos próximos anos). O problema é novamente reformar o abono salarial sem enfrentar a grave discriminação que essa política tem reproduzido ao longo de décadas: a exclusão de expressiva parte dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas e rurais que têm carteira assinada. Note-se que fazem jus ao abono apenas trabalhadores com carteira assinada, mas nem todos: apenas aqueles cujos empregadores contribuem para o PIS/PASEP. Pessoas físicas não contribuem para o PIS/PASEP. Logo, trabalhadores contratados por pessoas físicas não têm direito ao abono. De acordo com a Pnad 2023, do universo de 6,08 milhões de empregados domésticos no Brasil, 91,1% são mulheres, sendo a grande maioria mulheres negras. Estão excluídas do abono não apenas as milhões de trabalhadoras domésticas que estão na informalidade (junto ao conjunto dos trabalhadores informais), mas também o contingente minoritário de 1,4 milhão que têm carteira assinada, pois são empregadas por pessoas físicas. Outro setor em que há contingente significativo de empregados por pessoas físicas é o dos trabalhadores rurais. Cerca de 70% dos 3,6 milhões de trabalhadores assalariados rurais no Brasil são negros, e 58% estão na informalidade, de acordo com dados da PNADC citados por estudo da Oxfam de 2024, que registra ainda que a maioria dos empregadores rurais é pessoa física. Os direitos previstos na CLT não foram concedidos, inicialmente, para trabalhadores rurais e empregadas domésticas – sequer no plano formal. As lutas no campo conquistaram a igualdade de direitos somente com a Constituição de 1988. Já no caso das empregadas domésticas, essa conquista veio ainda mais tarde: com a PEC das domésticas, aprovada em 2013 (com o voto contrário do então deputado Jair Bolsonaro). Não se trata de acaso: em um país capitalista dependente, pós-escravista, profundamente racista e patriarcal, naturaliza-se a superexploração de negros e negras, assim como a espoliação dos povos indígenas; mais ainda, das mulheres negras e indígenas. No campo e no espaço doméstico, essas relações de violência e exploração sempre foram particularmente visíveis. Ao mesmo tempo, esses são também lugares de insubmissão e lutas multisseculares, frequentemente invisibilizadas. Se há reforma necessária do abono salarial, ela deve começar por medidas para reparar essa injustiça histórica, começando pela concessão do direito ao abono a trabalhadores empregados por pessoas físicas, o que beneficiaria sobretudo empregadas domésticas e trabalhadores rurais. A rigor, a exclusão desses grupos desse direito é inconstitucional, uma vez que se trata de medida discriminatória, fruto de um sistema de relações sociais racistas e patriarcais. O pensamento econômico, político e jurídico que se nega a enfrentar e transformar essa realidade é aquele que continua a operar como “espelho da Casa Grande”, conforme teorizou Juliana Araújo Lopes em seu estudo sobre a luta das trabalhadoras domésticas por direitos. Se o governo procura uma medida não apenas de impacto conjuntural, mas de significado histórico na luta por justiça social, racial e de gênero (tal qual a PEC das domésticas), este seria um momento adequado para fazer a reforma verdadeiramente necessária no abono salarial. Já há proposições legislativas nesse sentido em tramitação no Congresso Nacional: o Senado aprovou, em 2013, projeto de lei do Senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) para estender o direito ao abono salarial aos empregados de pessoas físicas, urbanas e rurais. O projeto encontra-se parado na Câmara dos Deputados (PL 6684/2013), desde então. Mais recentemente, no ano passado, o Instituto Doméstica Legal encaminhou sugestão de um projeto semelhante à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, para garantir o pagamento do abono salarial aos empregados domésticos e domésticas. A Sugestão recebeu parecer favorável do Senador Paulo Paim, e tramita como PLP 147/2023. É verdade que a concessão do abono à minoria de trabalhadoras domésticas e rurais que têm carteira assinada não resolveria o problema das milhões de outras que permanecem na informalidade. Não há dúvidas de que precisamos caminhar para uma política de renda básica universal de cidadania, de modo que o regime de proteção social não dependa de vínculo empregatício. Entretanto, seria má-fé utilizar isso como argumento para manter a regra racista atual; é imperativo superar, de imediato, a exclusão discriminatória desse direito a 1,4 milhões de trabalhadoras domésticas, além de contingente expressivo de trabalhadores rurais. Não faz tantos anos que alguns setores da esquerda opunham-se às cotas raciais para o ensino superior com a alegação de que era preciso melhorar a educação de base e universalizar o acesso às universidades – um discurso de inclusão, na aparência, utilizado como pretexto para seguir praticando a exclusão racista. Não podemos admitir a repetição desse tipo de discurso. Enquanto existir o abono, enquanto não for suplantado por uma política superior de renda básica universal, não é admissível manter a odiosa e explícita discriminação legal que trata milhões de brasileiros e brasileiras, majoritariamente negros e negras, como cidadãos de segunda classe, sacrificando-os no altar rentista da austeridade fiscal. Agradeço a Pedro Marques pelos comentários que contribuíram para aprimorar este texto, isentando-o de responsabilidade pelas opiniões aqui expostas. | A A |
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A A | Quando a democracia do cotidiano fagulhavaEntre 1980 e 2000, Brasil viveu ciclo virtuoso de políticas urbanas locais. Visavam superar as desigualdades com imaginação política e participação. Projeto propõe: resgate de memórias coletivas pode subsidiar novas lutas por cidades mais justas Por Carolina Borin, no Jornal da USP Entre o início dos anos 1980 e o final dos anos 1990, o Brasil vivenciou uma fase de inovações nas administrações municipais de várias cidades. As Prefeituras das cinco regiões do País colocaram em prática programas políticos que abrangiam temas variados e pautados numa perspectiva mais democrática de cidade, incluindo descentralização administrativa, conselhos populares, integração de transportes, tarifa social e tarifa zero, agricultura urbana, segurança alimentar, equipamentos públicos, além de iniciativas em saúde e educação. Com o objetivo de resgatar registros e memórias das inovações e experiências vivenciadas nesse período é que se originou a pesquisa de doutorado As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000, de Pedro Rossi, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design (FAU) da USP. A orientação da pesquisa é de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista e Professora Emérita da FAU. Durante a pesquisa, Rossi reuniu uma grande quantidade de materiais impressos – de cartazes, panfletos a fotografias e jornais – e audiovisuais do período que o pesquisador caracteriza como ciclo virtuoso da política urbana brasileira. Para disponibilizar esse acervo e a memória desse período, ele construiu a plataforma digital Ciclo Virtuoso, que está disponível desde o dia 3 de outubro para acesso público e gratuito. “Ao mesmo tempo em que fazia esse exercício de organizar a bibliografia e estudar para minha tese, estava gerando um repositório virtual de todo esse material que foi analisado”, comenta Rossi. “Ao invés de deixar isso numa pasta privada, no meu próprio computador, tivemos a ideia de colocar esse material em um repositório digital.” A partir desse momento, Rossi e Erminia passaram a dedicar um tempo da pesquisa à formulação dessa plataforma e compreender de que forma outros acervos virtuais estavam sendo construídos. “Esse processo me ajudou a entender que a nossa pesquisa também atende a uma demanda muito forte hoje, que é atender às políticas de memória”, complementa Rossi sobre a construção e a idealização da plataforma. “O site atual é só um um repositório inicial a partir dessas pesquisas que estamos fazendo agora, mas a ideia é que, a partir de estudos e trabalhos de outras pessoas, o repositório seja complementado, colocando-se como um memorial dos programas e do que já foi vivenciado, inclusive, para atualizar um pouco dos nossos atuais paradigmas.” A ferramenta escolhida para o desenvolvimento foi o Tainacam, um software livre feito pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília (UnB), com apoio da Universidade Federal de Goiás, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e do Instituto Brasileiro de Museus. Ele é um plugin associado ao WordPress (sistema livre e aberto de gestão de conteúdo para internet) e não tem nenhum custo de instalação ou atualização, podendo ser usado, copiado, estudado, modificado e redistribuído sem nenhuma restrição. O Tainacam é utilizado por acervos vinculados ao Ministério da Cultura e instituições associadas à USP, como o Museu do Ipiranga. Ciclo virtuoso da política urbana brasileiraComo consequência, na década de 60 os problemas urbanos se agravaram e a quantidade de habitações como cortiços e favelas aumentaram consideravelmente. Os movimentos sociais da época, muito influenciados por uma política de bem-estar social, começaram a desenhar caminhos para superar os desafios do crescimento urbano, como se observa com as políticas de Reforma de Base do presidente João Goulart. “Em 1964, aconteceu o golpe que instaurou uma ditadura que não só negou, como também reprimiu os movimentos de luta pela Reforma Urbana, pelo acesso à moradia digna e que atravessa o direito à cidade”, pontua Rossi. Apesar da repressão e da interferência das lideranças da ditadura civil-militar nas eleições municipais, algumas experiências do ciclo virtuoso são observadas ainda nos anos 70, em cidades como Lages, em Santa Catarina, e Piracicaba, em São Paulo. Em Lages, por exemplo, sob a gestão do prefeito Dirceu Carneiro, a população tinha uma participação significativa em encontros culturais, associações e programas municipais, como o de medicina comunitária. Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, as Prefeituras passaram a incorporar as práticas dos movimentos sociais na gestão. “Esses movimentos estavam superaguerridos no momento inicial dessas Prefeituras, fazendo com que a sua participação fosse muito importante na elaboração e na implementação dessas políticas, ao ponto deles executarem de maneira participativa esses programas”, diz o pesquisador. “A participação social foi uma grande chave de mudança.” “No Brasil, nesse período, existe um movimento nas cidades, na esfera do poder local e que passa a formar uma rede nacional de luta por direitos”, salienta Erminia Maricato. “Essa rede nacional faz e encaminha um projeto de Reforma Urbana para os debates de elaboração da Constituição de 1988, na qual conquistamos a inclusão de dois artigos sobre cidades pela primeira vez”, afirma. Algumas das experiências do ciclo virtuoso também vão além da redemocratização e do período do Ciclo das Prefeituras Democráticas. Algumas delas ocorreram nas primeiras décadas do século 21 em cidades como São Paulo (gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad), Araraquara (SP) e Maricá (RJ). Também se destacam os casos de João Pessoa e Conde, na Paraíba, sob as gestões de Ricardo Coutinho e Márcia Lucena. Sobre a experiência vivenciada, Erminia complementa: “É difícil de acreditar pela falta de memória coletiva deste momento”. A motivação para pesquisar esse tema nasceu justamente deste aspecto e que, segundo Rossi, dialoga com o próprio contexto atual do País. “Estamos vivendo uma escalada e retomada de uma política ultraconservadora acompanhada de um projeto de apagamento de políticas públicas que visam a superar desigualdades sociais”, afirma o pesquisador. “A tese faz um pouco essa provocação, de olhar o período democrático e participativo que tivemos nas Prefeituras e recuperar essa memória”, diz Rossi. Erminia Maricato salienta a importância de projetos como esse: “Estamos vivendo um certo presentismo, de hipervalorização do tempo presente e do imediato, mas um povo que não tem memória, não é dono do seu passado, não consegue desenhar um projeto de futuro”. O pesquisador comenta que a pesquisa não é uma tentativa de repetir o passado do ciclo virtuoso, uma vez que o contexto é totalmente outro, com uma estrutura dos movimentos sociais, quantidade de repasses e estratégias de comunicação distintas. “Recuperar essa experiência pode mostrar para as Prefeituras atuais que, enquanto as preocupações do dia a dia da população não forem atendidas o poder vai continuar concentrado nas mãos de poucos, assim como a renda perpetuando desigualdades”, comenta Rossi. “A proposta é ressaltar a importância dessa democracia do cotidiano e sinalizar caminhos para essa construção longa e coletiva de um outro futuro possível”, destaca a orientadora. Navegando na plataformaA plataforma Ciclo Virtuoso é de livre acesso e fácil uso com navegação por meio de páginas e seções. O repositório é dividido em: página inicial, acervo, mapa, vídeos e cronologia. Em todas as páginas, está presente a aba explicativa “Como Navegar?”, que explica de que maneira o usuário pode usar a plataforma. Há também o recurso de hiperlink a partir do ícone que representa uma pasta de arquivo digital, que, ao serem clicados, direcionam o usuário à coleção de documentos ou diretamente aos detalhes do item no acervo. Na página inicial apresenta-se a proposta do site e o tema abordado no projeto para contextualizar o usuário sobre o que foi o Ciclo Virtuoso das Prefeituras. Nessa página também está disponível parte dos materiais para consulta, entre eles impressos e fotografias com legendas específicas. No Acervo, é possível procurar itens por busca simples por termos; avançada, que direciona a termos e formatos mais específicos do material; ou por filtros. Estes permitem refinar a pesquisa com base em múltiplos critérios: tipo de documento, data de publicação, suporte do material, localização, gestão da Prefeitura, fase do ciclo e partido da gestão. Os resultados podem ser ordenados por categorias específicas também. A página Mapa auxilia na geolocalização das experiências documentadas, oferecendo uma visão espacial das iniciativas. Aqui podem ser aplicados os mesmos filtros que são utilizados na busca na seção Acervo. Em Vídeos, estão disponíveis os materiais audiovisuais coletados em ordem cronológica. Ao lado de cada item há uma breve explicação e contextualização. Na página Cronologia, o usuário tem acesso a linhas do tempo interativas, organizadas por décadas e segmentadas a cada dois anos, com eventos destacados em cores diferentes para facilitar a navegação. Os eventos estão categorizados por temas. Ao passar o cursor sobre os ícones ou barras, você pode visualizar mais informações e acessar conteúdos e documentos vinculados. A página está dividida em seis seções. A primeira delas é Panorama, geral do contexto histórico, com duas linhas do tempo, sendo uma do período da ditadura civil-militar e outra da Nova República – da década de 1980 até o início do século 21 –, com ênfase nas gestões municipais e seus contextos históricos. As outras cinco seções são dedicadas às gestões municipais das regiões do Brasil – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Trecho da linha do tempo Nova República (Redemocratização e Ciclo Virtuoso) e detalhe do marco da Criação do Fórum Nacional de Participação Social, no dia 1º de janeiro de 1990 – Imagens: Reprodução/Ciclo Virtuoso A pesquisa As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000 ainda está em fase de conclusão, com previsão de defesa da tese para o primeiro trimestre de 2025. A autoria da pesquisa e desenvolvimento da plataforma são de Pedro Rossi, arquiteto e urbanista, membro pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) A Produção da Casa e da Cidade, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da FAU e da Rede BrCidades. A orientação e a coordenação do projeto são de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista, Professora Emérita da FAU que foi Secretária Municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades, além de pesquisadora do INCT Produção da Casa e da Cidade e membro da Rede BrCidades. Para saber mais, acesse a plataforma neste link. Acesse também a página do LABHAB para conhecer mais projetos do Laboratório. | A A |
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A A | A reaparição dos invisíveisO trabalho assalariado não acabou — e ocupa quatro vezes mais jovens que o “empreendedorismo”. Atingidos pelos retrocessos trabalhistas, eles foram esquecidos também por parte esquerda. O VAT mostrou sua força. Mas quem são? Logo depois das eleições municipais de 2024, no calor dos debates sobre a dificuldade de candidatos e partidos à esquerda dialogarem com “as periferias” e as “classes populares”, um acontecimento chamou a atenção da mídia e do cenário político: a emergência de um movimento reivindicando o fim da escala 6X1. Chamado VAT, acrônimo de “Vida Além do Trabalho”, o movimento traz como principal bandeira o fim do regime semanal de seis dias de trabalho para um de descanso e afirma a necessidade de limitar a jornada de trabalho para que haja tempo para o lazer, a convivência com a família e amigos, os estudos e os cuidados com a saúde. Ou seja, para usufruir da vida. Tudo nesse movimento parece inusitado e improvável, porque desvela atores invisíveis, e põe em cena agendas decretadas como desatualizadas, lutas consideradas perdidas, identidades que algumas análises acadêmicas interpretam como não tendo mais apelo. E, sobretudo, contraria várias narrativas correntes a respeito das posições dos jovens no mundo do trabalho, das suas experiências, queixas e demandas, do que os toca e mobiliza. Quem se dispõe a observar com algum cuidado os protagonistas desta mobilização constata que o VAT é composto em sua grande maioria por jovens das classes populares (o que, em geral, coincide com morar “nas periferias”), trabalhadores assalariados nos setores de comércio e serviços. Essa é uma primeira dimensão do espanto, porque os diagnósticos correntes sobre os jovens no Brasil tendem a ressaltar as dimensões da inatividade, exibindo dados sobre o sempre notável número de nem nem, a evasão escolar e o desalento ou o subaproveitamento da força de trabalho nessa geração. Também porque impera um discurso de que, devido às transformações no mundo do trabalho, os jovens dessa geração estariam absolutamente distantes da experiência do trabalho assalariado, sendo todos conta-própria, autônomos, empreendedores ou aspirantes a se estabelecerem como tais. A segunda dimensão do espanto vem do fato de que uma mobilização tão significativa tenha sido provocada por “um grito de dor”, denunciando uma situação de exaustão que afeta a saúde física e mental desses jovens; que o mote da mobilização tenha sido essa identidade na dor, a necessidade de dizer “chega”, dizer “desse jeito, não”, indo na contramão do que dizem os apelos lançados à potência, resiliência, garra dos jovens, que tem fundamentado as propostas de empregabilidade e empreendedorismo. Por fim, surpreende também o fato de esses jovens se identificarem como parte “das classes trabalhadoras”, construírem suas reivindicações tomando como referência a legislação trabalhista (CLT) e levantarem, com uma importante releitura, uma bandeira que atualiza uma demanda clássica da luta por direitos do trabalho: a limitação da jornada e a defesa do descanso remunerado, contrariando uma tese corrente de que a agenda de direitos do trabalho estaria superada, uma vez que não teria apelo para as novas gerações. Quem são e o que dizem O fundador do movimento VAT, Rick Azevedo, recém-eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro, é um jovem trabalhador do setor de comércio. Atualmente com 31 anos, migrou do interior do Tocantins para a capital carioca antes de completar 18 anos, em busca de oportunidades de trabalhar e estudar.
Nesse percurso, desenvolveu uma extensa trajetória de trabalho, com ocupações variadas em empregos de baixa qualificação e remuneração, que vão de bicos de vendedor ambulante ao trabalho assalariado formal no comércio como balconista de farmácia. Como ele sempre afirma, 12 anos na esgotante escala 6×1. Ressaltando a contradição entre suas expectativas e a realidade imposta pelas funções que exerceu para sua sobrevivência, Rick expressou seu incômodo por não ter tempo para usufruir de outras dimensões da vida, como resultado desse regime de trabalho. Suas queixas foram vocalizadas inicialmente nas redes sociais, como nesse primeiro desabafo postado em 13 de setembro de 2023 no TikTok3:
O reclamo rapidamente viralizou: sua postagem desencadeou uma grande identificação, provocando inúmeros relatos de queixas semelhantes, o que ensejou a criação do VAT, com a proposição de um abaixo assinado pedindo uma modificação na CLT que impedisse a contratação na escala 6X1. Aliando a agitação nas redes com campanhas diárias nas ruas, em regiões de comércio e circulação de trabalhadores, com pequenos panfletos e muita conversa, converteram o que seriam apenas likes em um milhão de assinaturas para uma petição dirigida ao Congresso Nacional. Pouco tempo depois, o movimento se fortalece e ganha uma escala nacional ao ganhar o apoio fundamental da deputada Erika Hilton na proposição de uma Proposta de Emenda Constitucional pela transformação da jornada de trabalho. Jovens trabalhadores A história do Rick Azevedo, assim como de outras lideranças do VAT e de seus seguidores, é ilustrativa de um segmento pouco visibilizado no nosso debate político: jovens trabalhadores, que compõem a imensa maioria da juventude brasileira e um segmento expressivo das classes trabalhadoras do nosso país. Apesar das manchetes recorrentes na mídia e das conclusões dos diagnósticos preparados por instituições especializadas repisarem eternamente o problema da “inatividade e desengajamento da juventude”4, a grande maioria dos jovens brasileiros, a partir dos 18 anos, está intensamente envolvida com o mundo do trabalho. Segundo o IBGE, a taxa de participação dos jovens entre 18 e 29 anos de idade é de 74,5%, isto é, 3 em cada 4 jovens trabalha ou procura emprego, uma proporção maior do que aquela encontrada para o conjunto da população adulta5. Os tipos de ocupação abrangem tanto as velhas como as novas formas de trabalho e são, em geral, trabalhos de baixa qualificação, com jornadas intensas, salários baixos e pouca garantia de direitos e proteção. Ao contrário do que postulam certas percepções em cena, a grande maioria dos postos ocupados por jovens é de trabalho assalariado, e não de trabalho autônomo. Em 2023, três quartos (78,7%) dos jovens ocupados eram assalariados – incluídos nessa categoria os empregados com carteira assinada (47,4%), os empregados sem carteira assinada (25,7%), os militares e servidores estatutários (2,3%) e os trabalhadores domésticos (3,3%)6. Menos de um quinto (17,5%) trabalhavam por conta-própria e apenas 1,6% era empregador (duas categorias nas quais poderiam constar os autônomos e os “empreendedores”). Vale a pena assinalar que não é entre os jovens que o trabalho autônomo (ou o empreendedorismo) ganha mais adeptos. As parcelas de conta-própria e de empregadores aumentam conforme se eleva a faixa etária. No entanto, é entre os jovens que são mais presentes as situações de trabalho assalariado precário, como as informais, as atingidas pelas desregulamentações recentes, as que envolvem trabalho por tempo indeterminado, pagamento por demanda e por metas. Mesmo os postos assalariados formais disponíveis para os jovens são aqueles com maior rotatividade, mais mal pagos e com jornadas e escalas mais desfavoráveis. Em 2023 (último dado disponível), o salário médio dos jovens ocupados no trabalho principal era de R$ 1.964,00, o que corresponde a dois terços do já baixo salário médio do trabalho principal da população ocupada como um todo (R$ 2.890,00). E as jornadas de trabalho são tão intensas quanto as da população adulta: 75% dos jovens entre 14 e 29 anos ocupados trabalhava em jornadas semanais de 40 horas ou mais, quase o mesmo que entre a população adulta (76,3%). A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) não nos informa sobre a escala de trabalho semanal, ponto central da demanda do VAT, mas sabemos que essa é a que impera nos setores de comércio e serviços7, historicamente aqueles que mais absorvem a força de trabalho juvenil. A observação da distribuição por setor de atividade mostra que 38% dos jovens entre 14 e 29 anos ocupados estavam em três segmentos: nos setores de “comércio e reparação” (24,5%), “alojamento e alimentação” (7%) e “outros serviços” (6,7%). Em todos esses setores, os jovens representam mais de um terço de todos os ocupados8. Apesar de a maioria dos jovens trabalhadores vivenciarem estas relações e condições adversas, há pouca atenção voltada para essa situação, e menos ainda proposições para seu enfrentamento, tanto no plano governamental como no sindical. A maior parte da preocupação com o tema do trabalho dos jovens está centrada na questão da inatividade e do desemprego. As respostas que têm sido encaminhadas atuam apenas no plano da garantia de uma formação educacional e profissional que aumentem as suas possibilidades de conquistar melhores postos de trabalho e, mais recentemente, na substituição do trabalho assalariado por alternativas de empreendedorismo e start ups como uma forma “mais moderna” e satisfatória de inclusão produtiva para os jovens. Ou seja, há pouca ou nenhuma tentativa de interferir nas condições dos trabalhos disponíveis, de modo a proteger a saúde e os direitos dos jovens trabalhadores. Os líderes e os seguidores do VAT são jovens trabalhadores assalariados, de diferentes setores do comercio e dos serviços, precarizados, exauridos pelas intensas jornadas de trabalho, tendo sua saúde e diferentes dimensões de suas vidas afetadas pela jornada excessiva. É das tensões, conflitos e prejuízos produzidos em suas vidas por esse regime de trabalho que eles se queixam e sobre o que reivindicam mudanças. A escuta atenta às suas falas e pronunciamentos se torna imprescindível para compreender o sentido e alcance que o movimento desencadeado por eles pode ter. Em um vídeo de convocação para a manifestação ocorrida no dia 15 de novembro de 2024, Priscila Araujo Kashimira, uma jovem trabalhadora do telemarketing e liderança do VAT em São Paulo, conclama:
Priscila menciona explicitamente a juventude como classe trabalhadora explorada e desumanizada. Numa entrevista, relatando o seu trabalho como operadora do telemarketing e apontando que situações similares ocorrem entre os “trabalhadores de shopping”, disse: “o trabalhador é tratado como máquina e quando acaba, até a gente lembrar que é um ser humano…”10. Ela, assim como muitos outros integrantes do VAT, acentua as dificuldades de conciliar o trabalho com a vida familiar. Falam das mulheres com filhos pequenos (muitos cartazes em suas mobilizações dizem “quero ver meu filho crescer”), e falam também, como filhos, da experiência de suas mães, com quem não puderam realmente conviver pelo trabalho intenso delas. Todos os relatos, reclamos e depoimentos dos jovens nas redes sociais revelam a insatisfação profunda com as condições dos trabalhos disponíveis – revolta centrada na extensão da jornada, que resulta na impossibilidade de viver as outras esferas da vida. Falando da própria experiência, eles tocaram muitos outros trabalhadores, inclusive os que “não são CLT”, os informais e aqueles por “conta-própria”, que também enfrentam escalas desumanas, às vezes piores, como a 10×1 e até mesmo de 14×1, que têm ocorrido em certos setores do comércio, e a de 7×0, que se tornou frequente entre os autônomos que supostamente detém a autonomia sobre seu próprio tempo de trabalho11. O movimento desencadeado pelo VAT tem impacto especial porque vocaliza demandas de uma experiência geracional singular mas, ao mesmo tempo, catalisa uma insatisfação generalizada e reivindica direitos que dizem respeito a todos os trabalhadores. É significativo que a pauta dos direitos do trabalho e a volta da “classe trabalhadora” ao centro dos acontecimentos tenham surgido da atuação de segmentos invisíveis e desprezados, de trabalhadores assalariados de baixa qualificação dos setores de comércio e serviços, fragmentados e dispersos em pequenas unidades de trabalho, com baixa organização sindical, na sua maioria jovens, negros, moradores das periferias; e que sua representação política no congresso tenha sido empunhada por uma mulher trans, também negra e com origem periférica. A reivindicação pela limitação da jornada de trabalho a no máximo cinco dias por semana atualiza, assim, a demanda histórica de amplos segmentos das classes trabalhadoras pelo descanso remunerado e se coloca como uma das agendas mais significativas da conjuntura, disparando outras ações (como a greve da Pepsico) e trazendo novamente a luta pelos direitos do trabalho para o centro dos acontecimentos. Como dizem seus integrantes, é uma luta contra a precarização, contra a exploração, o sucateamento e a desumanização dos trabalhadores; é uma luta pelo “direito humano e a dignidade”12 levantada pelos trabalhadores da base mais explorada do mercado de trabalho: “este país jamais se sustentará sem a classe trabalhadora da base. Somos a maioria, e a nossa mobilização está apenas começando. | A A |
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