OPINIÃO




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IA: o Olho do Mestre definirá o que é normal?

    

Filósofo Matteo Pasquinelli reflete sobre papel da inteligência artificial no trabalho e na saúde. Alerta: sem mudanças políticas e sociais, servirá de instrumento para potencializar poder de vigilância e controle – e estabelecer o que é desviante, anormal ou patológico

Matteo Pasquinelli em entrevista a Leandro Modolo

Há mais de cinco anos, eu lia O Manifesto Nooscópio: Inteligência Artificial como Instrumento de Extrativismo do Conhecimento, de Matteo Pasquinelli e Vladan Joler. A conjuntura ainda era outra, a IA ainda não tinha ganhado o peso de marketing como atualmente e tampouco tínhamos que lidar com a intrusão das LLMs e cia em nossas vidas. Naquela altura o texto me impactou pela capacidade de síntese e tato crítico, além do cuidado artístico que o compõem. Então achei por bem correr para traduzi-lo – enquanto ainda faziam sentido ações como essas. De lá para cá tenho tentado acompanhar toda a produção de Pasquinelli e, a despeito das discordâncias aqui ou acolá, a riqueza do seu trabalho me encanta sempre mais.

Pasquinelli é professor de filosofia da ciência no Department of Philosophy and Cultural Heritage da Ca’ Foscari University, onde coordena o projeto ERC AIMODELS. Sua trajetória acadêmica inclui passagens pelo Pratt Institute em Nova York e pela Universidade de Artes e Design de Karlsruhe, onde ajudou a fundar o grupo de pesquisa em Inteligência Artificial e Filosofia da Mídia (KIM).

Há menos de dois anos, ele publicou The Eye of the Master: A Social History of Artificial Intelligence [“O olho do mestre: uma história social da inteligência artificial”, em tradução direta], traduzido em mais de dez idiomas – mas ainda sem versão em português. De leitura densa e recheado de controvérsias excelentes, a tese fundamental do autor desafia a visão dominante da IA como imitação da inteligência “cerebral” ou “mental”. Ele argumenta que o código interno da IA é moldado pela inteligência do trabalho e das relações sociais, não pela replicação de processos cognitivos humanos. E o “olho do mestre” refere-se a expressão marxiana descrita em O Capital para se referir ao processo de vigilância e controle do capitalista sobre seus trabalhadores. O ‘olho’ representa o monitoramento granular e crescente de cada aspecto do processo de trabalho, sobretudo dos padrões de comportamento de associação e cooperação entre trabalhadores/as – do trabalho coletivo.

Para aqueles e aquelas que se interessam por filosofia, história, economia, política e cultura das novas tecnologias, trata-se de um do melhores das últimas décadas. Para aqueles e aquelas que desejam e lutam por um sociedade pós-capitalista, é simplesmente imprescindível. E enquanto não o temos em nossas livrarias, vale um aperitivo: uma entrevista com o autor, que você lê a seguir.

Eu me impactei muito lendo The Eye of the Master, sobretudo porque ele coloca na mesa uma controvérsia das mais ricas e profícuas: você defende que o verdadeiro modelo para “invenção” da IA não é mente humana, mas as relações de trabalho — especialmente a divisão social do trabalho. Por favor, nos conte mais sobre isso. A IA não é uma tecnologia que reproduz a “inteligência” humana? Ela não “aprende” tal como os seres humanos?

A IA não é uma manifestação de racionalidade abstrata ou superinteligência, como sugerem certas narrativas populares. Ela é, antes, um diagrama do trabalho cooperativo. E, na minha perspectiva, todo trabalho é, por definição, cooperativo. Quando atendo um telefone, por exemplo, estou cooperando com outra pessoa do outro lado de uma infraestrutura de comunicação que só existe graças à contribuição de centenas de outros trabalhadores. Quando atribuo significado a uma imagem ou signo, isso é feito em negociação contínua com toda uma coletividade humana, com gerações que me antecederam.

Modelos de IA capturam e codificam precisamente essa complexa rede de relações sociais, transformando-a em uma representação estatística sofisticada — um espaço multidimensional de dados que podemos considerar como uma espécie de “trabalho artificial”, ou mesmo “trabalho alienado”, no sentido de um conhecimento e de uma cultura coletivos que foram extraídos, apropriados e privatizados em plataformas proprietárias.

Matematicamente falando, a IA funciona com base em médias estatísticas: ela opera sobre representações numéricas da cultura humana, organizadas em arquivos digitais — os chamados conjuntos de dados de treinamento. Sistemas como o ChatGPT processam grandes volumes desses dados (textos, imagens e outros formatos) para gerar previsões e classificações a partir dos valores médios extraídos desse conhecimento coletivo. Ou seja, a IA mecaniza a “inteligência média” de uma sociedade em determinado tempo e contexto, e não reflete qualquer tipo de inteligência humana individual.


Apesar disso, utilizamos termos antropomórficos para nos referirmos à IA porque essa sempre foi uma estratégia recorrente da automação industrial. Mas o aprendizado de máquina não tem qualquer relação com o aprendizado humano. Não é como o de uma criança. Há, sim, projetos que tentam replicar o aprendizado infantil em sistemas computacionais, mas considero essa ambição profundamente colonial. Como mostram Kalindi Vora e Neda Atanasoski em Surrogate Humanity, a automação sempre foi construída sobre a invisibilização do trabalho de mulheres, pessoas escravizadas, servos e outros sujeitos historicamente marginalizados. O sonho da automação — especialmente no Ocidente — é, desde o início, o de extrair a humanidade dos humanos e transferi-la para as máquinas. Como um vampiro, as tecnologias automatizadas substituem trabalhadores, ao mesmo tempo que exploram e instrumentalizam características humanas com outros propósitos.

Assim, pensar a IA a partir da divisão social do trabalho nos obriga a reconhecer que ela tem menos a ver com inteligência e mais com extração, mecanização e alienação do trabalho e conhecimento coletivo.

É por isso que você começa o livro com o motorista de caminhão como exemplo de um trabalho também intelectual ou cognitivo, não apenas um trabalhador manual? Na sua argumentação, a IA recoloca a antiga e importante questão da dicotomia entre cabeça e mão, trabalho intelectual e manual. Como o sr. vê tudo isso?

Começo o livro com o exemplo do motorista de caminhão justamente como uma provocação a essa separação tradicional entre trabalho manual e intelectual. Costumamos pensar que nossas mãos não produzem inteligência abstrata, que o pensamento nasce separado da ação, como se existisse uma oposição essencial entre teoria e prática, entre especulação e ofício. Mas essa dicotomia é, na verdade, insustentável. A teoria emerge da prática; o ofício nasce das nossas relações sociais e da experiência concreta. Atividades consideradas manuais estão impregnadas de capacidades cognitivas, de raciocínio abstrato e de cooperação – e o trabalho dos caminhoneiros é um exemplo eloquente disso.

Gramsci já dizia: “Todos os seres humanos são intelectuais”. Não se pode falar de “não-intelectuais” porque não há atividade humana que esteja dissociada do intelecto. O que é sintomático – e também triste – é que só agora, com o avanço da IA, estamos redescobrindo o valor cognitivo dos saberes manuais, artesanais, técnicos e projetuais.

Neste sentido, sempre considerei o dualismo corpo-mente profundamente problemático. Concreto e abstrato estão sempre em relação dialética. Mesmo a percepção do corpo passa por um mapeamento cerebral contínuo. O tato per se, por exemplo, é em parte uma ilusão – algo que tanto a filosofia budista antiga quanto a neurologia contemporânea mostram. Assim também é com as ideias: elas se formam a partir de nossos movimentos corporais, das interações espaciais e sociais que vivemos.

Por isso, defendo que a distinção entre trabalho manual e intelectual está superada. O trabalho manual é, também, uma atividade intelectual – e não é preciso ser filósofo para reconhecer isso. Aliás, o próprio trabalho “mental”, historicamente, sempre envolveu as mãos. Cálculo manual, por exemplo, é feito com os dedos antes de se tornar abstração interna. A palavra “manipulação” – que usamos hoje até para descrever operações simbólicas e mentais – vem do latim manipulatio, ou seja, “movimento feito com a mão”. Isso mostra como o pensar e o fazer estiveram sempre ligados. A IA apenas nos obriga a encarar esse fato com mais clareza.

Agora ficou mais claro. É nesse sentido que você fala da lógica que organiza o trabalho, as relações de trabalho e, sobretudo, a divisão social do trabalho?

Se observarmos a história da ciência e da tecnologia, veremos que a própria concepção de ferramentas e máquinas está profundamente enraizada na maneira como o trabalho foi sendo dividido. A divisão do trabalho foi responsável tanto pelo surgimento de ferramentas pré-históricas quanto pelo desenvolvimento das primeiras máquinas industriais, que, por sua vez, inspiraram o nascimento de novas disciplinas científicas — como a termodinâmica. Essa ciência sequer existia antes das máquinas a vapor, e estas só surgiram quando a economia industrial passou a organizar o trabalho de forma mais intensiva e produtiva.

Hoje, essa lógica segue operando sob novas formas. O trabalho do condutor na economia de plataforma — a pessoa que nos entrega comida ou nos transporta pela cidade — é mediado por algoritmos que coordenam e controlam sua atividade. Na chamada economia gig, as aplicações digitais não apenas acompanham os nossos movimentos e relações sociais nas cidades, como também reorganizam a divisão do trabalho com base nesses rastros de dados. Essa reorganização não foi fruto de uma abstração teórica, mas de uma prática concreta: motoristas de táxi, munidos de smartphones, deixavam vestígios digitais em centros de dados. Um dia, alguém olhou para esses vestígios — para esses diagramas abstratos — e percebeu que poderia rentabilizá-los, automatizando ainda mais o processo.

Esse olhar organizador, baseado na extração e reorganização do trabalho humano, está no núcleo da inteligência artificial contemporânea. É isso que chamo de “olho do mestre” — uma expressão oriunda da revolução industrial, mas que continua extremamente atual para descrever como a lógica da divisão social do trabalho persiste, mesmo sob as formas tecnológicas mais recentes.

Nesse sentido, com o trabalho humano no centro da análise, estamos vivendo uma nova rodada do “fim do trabalho”? Como o você compreende a dita “nova revolução industrial”?

Se colocarmos o trabalho humano no centro da análise e deixarmos de lado o termo enganoso “inteligência” para focar na composição material das plataformas de IA, percebemos que o cenário que se desenha é bem distinto da ideia de “automação total” e “desemprego tecnológico”. O que emerge, em vez disso, é uma forma de automação orientada não para a substituição integral dos trabalhadores, mas para a decomposição e automação de microtarefas modulares.

Tomemos como exemplo o ChatGPT: trata-se de um sistema instalado em um único data center — digamos, em Utah, nos Estados Unidos — que atende milhões de usuários conectados de seus lares ou escritórios ao redor do mundo. O que está em jogo aqui não é apenas a inteligência do sistema, mas a constituição de um monopólio global sobre o trabalho em rede, o que revela uma forma distribuída e centralizada de automação laboral.

Nesse modelo, o trabalhador não é simplesmente descartado: ele é reconfigurado como um metatrabalhador, uma espécie de ciborgue, se quisermos usar essa imagem aplicada ao trabalho, operando na interseção entre capacidades humanas e tarefas automatizadas. Cada microtarefa, isoladamente, pode parecer uma extensão das capacidades do trabalhador, mas, na prática, esgota sua energia e soma novas formas de estresse às já conhecidas alienações do trabalho digital ou em plataformas.

O uso da IA, como o ChatGPT, representa assim uma faca de dois gumes: se por um lado oferece ferramentas de produtividade, por outro impõe um novo regime de pressão. A expectativa é que os trabalhadores desempenhem suas funções com mais rapidez — não para terem mais tempo livre, mas para serem cobrados por ainda mais velocidade. O conhecimento e a experiência humana deixam de ser valorizados em si mesmos, passando a ser medidos em termos de eficiência imposta por padrões automatizados.

O verdadeiro paradoxo da IA, portanto, é que ela não elimina os trabalhadores, mas os multiplica em sua forma mais precária. Em vez de encerrar o trabalho, ela o fragmenta, gerando subemprego e forçando os trabalhadores a atuarem de maneira mais esporádica, instável e pulverizada. Em um contexto global de estagnação e precarização, o que se desenha com essa chamada “nova revolução industrial” é uma intensificação do trabalho — não o seu fim.

Então, afinal, como você define inteligência artificial?

A resposta mais direta é que a inteligência artificial é uma técnica de reconhecimento de padrões — uma forma de extrair padrões a partir de qualquer coisa. Essa técnica se baseia no que se chama de análise multidimensional, e é fundamental entender que a revolução atual da IA está profundamente ligada à história da produção de imagens e às transformações que essa história sofreu ao longo do tempo.

No início, por exemplo, as imagens eram pinturas sem perspectiva. Depois, com a aplicação da trigonometria no antigo Oriente Médio, surgiu a perspectiva moderna, que introduziu um ponto de vista. Mais tarde vieram a Camera Obscura, a fotografia analógica e o cinema, todos capazes de reproduzir imagens de forma mecânica. Em determinado momento, com o surgimento das imagens digitais, o campo visual passou a ser convertido em uma grade de números — um dado fundamental para a lógica da IA.

Nas décadas de 1950 e 1960, os ciberneticistas começaram a investigar como o reconhecimento de imagens poderia ser automatizado. Com forte apoio financeiro do setor militar nos Estados Unidos, esses pesquisadores buscaram desenvolver técnicas para reconhecer imagens com base em valores numéricos. Inicialmente, tentaram fazer isso em duas dimensões, mas sem sucesso.

O grande avanço que possibilitou a IA atual ocorreu quando se deixou de tratar imagens como mapeamentos bidimensionais e passou-se a trabalhá-las em um espaço multidimensional. Para ilustrar: se pegarmos uma imagem de 20 por 20 pixels — algo comum nos computadores dos anos 1950 —, ela pode ser representada como um único ponto em um espaço de 400 dimensões. Isso mesmo: 400 dimensões. Nesse espaço, o reconhecimento de padrões funciona da seguinte forma: imagens semelhantes ocupam regiões próximas entre si, enquanto imagens diferentes ficam afastadas em outras regiões. É possível, então, aplicar técnicas geométricas para separar e navegar por esse espaço — e foi assim que se resolveu o problema do reconhecimento de imagens.

Diferentemente da mente humana, que não consegue operar naturalmente em espaços multidimensionais e precisa recorrer a equações, o computador é capaz de fazê-lo com facilidade. Mesmo sendo “cego” — ou seja, sem saber se os números que manipula se referem a uma imagem ou a qualquer outro dado —, ele consegue navegar nesses mundos multidimensionais com uma eficiência superior à da cognição humana.

Portanto, inteligência artificial, nesse sentido, não é uma simulação de mente, mas um sistema computacional altamente eficaz de manipulação matemática de padrões em espaços de múltiplas dimensões.

Mas… E o caso dos LLMs [Large Language Models] como o ChatGPT?

Os LLMs como o ChatGPT são um desdobramento direto disso, quando em 2012 Geoffrey Hinton e seus alunos aplicaram com sucesso essas técnicas ao reconhecimento de imagens complexas. A inovação veio ao perceber que essas mesmas técnicas poderiam ser aplicadas ao texto — como é feito no ChatGPT —, o que provocou uma verdadeira revolução na linguística. Isso porque também as palavras podem ser organizadas em agrupamentos dentro de um espaço multidimensional.

Esse espaço multidimensional, por sua vez, torna-se multimodal: os vetores numéricos que o compõem podem representar simultaneamente palavras, imagens, sons. E há um outro aspecto crucial nessa arquitetura, que é sua capacidade generativa. Com grandes conjuntos de dados de treinamento — como, por exemplo, uma coleção de pinturas de um museu —, o sistema não apenas reconhece padrões, mas é capaz de produzir novas combinações e variações desses padrões.

Portanto, no caso dos LLMs, a inteligência artificial aparece como uma técnica voltada para projetar culturas humanas em um espaço multidimensional e operar dentro dele, tanto para identificar regularidades quanto para gerar artefatos inéditos.

Focando um pouco mais no campo da saúde, estamos assistindo um acelerado processo de “digitalização” de parte considerável dos serviços de saúde. O que inclui a prestação de serviços de saúde por agentes maquínicos, cibernéticos. Agentes que, como sabemos, são máquinas estatísticas treinadas com padrões para reproduzir padrões. Na saúde, porém, um determinado padrão é sinônimo de norma e normal, e a definição do que é normal implica diretamente o enquadramento do que é anormal e do que é patológico. O que abre um caixa de problemas. Em primeiro momento, o que vem ao debate é a questão do viés, seja ele rascista, sexista, elitista etc. Mas, sabemos também, definir a fronteira entre normal e anormal é uma fonte de poder decisiva – os Estados-nacionais, por sinal, sempre dependeram dessa fonte para manter sua forma política de dominação. Como encara isso?

O poder normalizador da inteligência artificial, especialmente em contextos como a saúde, é profundamente enraizado em tradições estatísticas que remontam ao final do século XIX. Técnicas como correlação, desvio-padrão, regressão logística e análise fatorial já eram utilizadas para discriminar e controlar comportamentos sociais, e é justamente essa vocação normalizadora que reaparece na IA contemporânea. Muitos estudiosos já destacaram essa continuidade, mas acredito que o problema do viés vai ainda mais fundo.

A IA, como a conhecemos hoje, participa de um processo histórico mais amplo de discriminação. Antes de substituir trabalhadores, ela os mede, avalia e reorganiza com base em métricas que impõem novas hierarquias sociais e uma nova divisão do trabalho. Assim, o viés de classe, gênero e raça que a IA amplifica não deve ser visto como um defeito técnico a ser corrigido, mas como uma característica estrutural de sua lógica de automação. É preciso questionar o sentido profundo das políticas que buscam “corrigir” o viés algorítmico: em geral, elas se propõem a garantir representações justas das diversas identidades sociais, mas deixam intacta a própria lógica que hierarquiza habilidades mentais e manuais como critério de valor e qualificação.

Portanto, o impacto da IA não se limita à reprodução de categorias sociais excludentes — ele estrutura uma divisão implícita de saber e trabalho. Modelos como o ChatGPT, por exemplo, não são apenas ferramentas de automação do trabalho intelectual. Eles representam uma média estatística da inteligência coletiva, e essa média está se consolidando como um novo critério normativo: uma métrica social da inteligência e da competência profissional. É essa transformação — a estatística se tornando medida tácita do valor humano — que constitui o viés invisível da IA, raramente percebido. Qual é o trabalhador normal em tempo de IA?

Esse poder normativo é agravado pelo fato de que o poder de definir o “normal” — historicamente exercido por instituições estatais como hospitais, universidades ou escolas — agora migrou para plataformas corporativas globais, sustentadas por data centers e algoritmos proprietários. Como destaco em meu livro, não é acidental que a primeira rede neural, o Perceptron de Frank Rosenblatt, tenha sido concebida com base na psicometria — uma disciplina normativa voltada à mensuração da cognição humana, como nos testes de QI. Tratou-se de automatização dos princípios da psicometria, enquanto ferramenta estatística de classificação. Dito de outro modo, uma disciplina institucional como a psicometria, com uma forte dimensão normativa em relação à psique humana, tornou-se um princípio central do projeto de automação mais bem-sucedido, a IA. Foi transfigurada em motor técnico do projeto mais avançado de automação.

Visto por esse ângulo, a história da IA é também a história da mensuração das habilidades intelectuais e, inevitavelmente, da deficiência. Essa leitura certamente dialoga com a tradição dos estudos foucaultianos e da epistemologia crítica da ciência e da tecnologia. Mas talvez possamos ir além. Se revisitarmos hoje “Capitalismo e Esquizofrenia”, de Deleuze e Guattari — com sua concepção de inconsciente maquínico —, talvez seja possível enxergar a IA como algo mais do que um sistema de controle: como um aparato corporativo de alucinação, projetado para colonizar nosso inconsciente e organizar, segundo sua lógica própria, o que é desviante, anormal ou patológico.

Assustado prefiro voltar ao seu livro e a seu trabalho em geral (risos de nervoso)… Suas contribuições me parece caminhar para uma forma pensamento que abre um terreno enorme de novos levantamentos, interpretações e análises muito promissor. Como você interpreta a atual direção da sua pesquisa?

De certo modo, meu livro trata da pré-história da inteligência artificial. Ele encerra sua análise por volta da década de 1960, com o objetivo de esclarecer como essas máquinas e algoritmos foram inicialmente concebidos. Isso me permitiu investigar que tipo de “fósseis cognitivos” herdamos do conexionismo e como eles ainda informam a forma atual da IA. O foco ali está, sobretudo, na gênese dos sistemas visuais de inteligência artificial — uma linhagem da qual os modelos contemporâneos de linguagem, como os LLMs (incluindo o GPT), também descendem, mesmo que indiretamente.

A direção atual da minha pesquisa, no entanto, se desloca desse paradigma visual. Com o projeto ERC AIMODELS, iniciado em Nice em janeiro de 2024, passo a abordar mais diretamente a questão da linguagem — e, em especial, sua formalização como uma condição fundamental para o surgimento das tecnologias da informação e da IA. O que está em jogo agora é investigar como a linguagem foi central para as formas de produção e organização do trabalho no pós-fordismo, muito antes da chegada da IA como ferramenta para automatizar o trabalho linguístico.

Em outras palavras, o que tento fazer é propor uma interpretação da IA como uma forma de automação da linguística — se me permitem usar esse termo —, sempre ancorada nos contextos sociais e econômicos em que essa transformação se dá. Não se trata, portanto, de entender a inteligência artificial como um mero avanço técnico isolado, mas como uma tecnologia profundamente enredada nas formas históricas do trabalho e da linguagem.

Não consigo deixar de perguntar: como o sr. compreende o futuro das sociedades com a presença da IA?

Vejo esse futuro de forma contraditória e em disputa. Por um lado, há efeitos positivos inegáveis. A inteligência artificial está nos levando a redescobrir as capacidades dos nossos próprios corpos para produzir conhecimento e abstrações culturais. Isso é significativo, mas traz consigo uma reconfiguração: teremos uma nova composição social entre trabalho manual e mental, o que implica uma reorganização da sociedade baseada em novas hierarquias.

Em nível mais localizado, a IA pode trazer impactos positivos concretos, desde que esteja submetida a uma supervisão humana rigorosa. Nas humanidades digitais, por exemplo, o uso de estatísticas tem possibilitado novas formas de compreender a história da arte, do design, da moda — mapeando estilos e permitindo uma visão hiperestatística sobre os artefatos culturais. Na medicina, também, a modelagem estatística pode ser extremamente útil para identificar padrões de sintomas, desde que o método científico seja respeitado e o ser humano permaneça no centro do processo. Enfim, há uma longa lista de aplicações promissoras — mas elas dependem de condições muito específicas.

Mas, o que me preocupa profundamente é o modelo atual: uma economia do conhecimento organizada de forma oligárquica e sustentada por uma divisão do trabalho altamente hierarquizada. Sem uma transformação estrutural nesse modelo — sem uma revolução na economia e na forma como organizamos o trabalho —, não acredito que a IA, por si só, venha a produzir mudanças sociais positivas. A tecnologia pode ampliar capacidades, mas sem mudança política e social, ela tende apenas a reforçar as desigualdades, dominações e explorações existentes.

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Marx compartilharia memes?

    Tóxico!, dizem sobre o algoritmo das redes sociais. Ele não mascara o real, mas dissolve o desejo de compreendê-lo. Uma mais-valia cognitiva, talvez avaliasse o filósofo alemão. Poderia a gargalhada viral ser arma política, se munida de crítica e esperança? É algo a se pensar (ou disputar)…

Vivemos num tempo em que até o delírio se tornou programável. O nonsense é produto. O absurdo, mercadoria. O brain rot — essa estética viral do vazio — não é uma simples excentricidade da juventude conectada, mas um sintoma gritante de um tempo doente. Um tempo em que o riso já não liberta, apenas lubrifica a engrenagem.

O nome é sugestivo: apodrecimento cerebral. Mas não é o cérebro que apodrece — é a nossa capacidade de viver o mundo com sentido. O brain rot é a estética da alienação digital: o nonsense domesticado, transformado em trilha sonora de uma sociedade que já desistiu de se entender. Aquilo que poderia ser subversivo — o absurdo, o desajuste, a gargalhada — foi capturado. Monetizado. Algoritmizado.

Marx nos ensinou a reconhecer a alienação no trabalho. Mas hoje, alienamo-nos no descanso, no consumo, no riso. Rimos do absurdo sem perceber que o absurdo somos nós. Que rimos do espelho.


A sociedade do espetáculo, descrita por Guy Debord, foi além da imagem que substitui a realidade. Agora, a imagem já não representa nada — e mesmo assim seguimos olhando. O brain rot é o espetáculo do vazio: conteúdo sem conteúdo, que vende nossa atenção como produto bruto. Cada vídeo de seis segundos é uma unidade de tempo vendida ao capital. Não se trata de distração — é projeto.

O espetáculo já não encena a realidade: ele a dissolve. Debord advertia que, no capitalismo avançado, a vida concreta é substituída por representações espetaculares que não apenas ocultam a verdade, mas fabricam uma nova realidade alienada, onde tudo que era vivido diretamente se tornou representação. Mas o brain rot dá um passo além: já não há sequer representação — há somente repetição, saturação, ruído. A imagem não oculta o real, ela anula o próprio desejo de realidade.

Nesse novo estágio do espetáculo, o valor de troca impera sobre qualquer sentido. A mercadoria imagética, desprovida de conteúdo, circula porque captura cliques, dados, rastros. O nonsense viral, aparentemente gratuito, é a forma-mercadoria adaptada ao tempo da fadiga cognitiva. O que se vende não é o vídeo, mas o rastro que ele deixa, o segundo de atenção arrancado da mente entorpecida. A alienação deixa de ser apenas condição do trabalhador na produção e se torna forma cotidiana de percepção — um modo de existir mediado por fluxos incessantes de signos vazios.

O sujeito, nesse contexto, não é apenas espectador, mas também produtor involuntário de valor. A rolagem infinita, os likes, os comentários — tudo é trabalho não remunerado, convertido em lucro para as plataformas. A alienação é completa: não só nos afastamos do produto do nosso trabalho, mas da própria experiência sensível.

brain rot é, assim, a superação cínica do espetáculo: já não há promessa de verdade, nem desejo de sentido. Só ruído que engaja.

Esse projeto é o de uma nova forma de ideologia: não mais a que mascara a realidade, mas a que dissolve o próprio desejo de compreendê-la. O algoritmo não impõe um conteúdo, ele modela a forma de nossa percepção — e, com isso, captura nossa capacidade de negar. Trata-se de uma alienação de segunda ordem, em que o sujeito já não se reconhece como sujeito, mas como fluxo, dado, reação.

Atenção é campo de batalha. E o cansaço é sua principal arma. O esgotamento cognitivo não é um efeito colateral do digital — é sua política. Uma subjetividade exausta não protesta. Não organiza assembleia. Não escreve panfleto. Somente desliza o dedo em tela fria, rindo de um peixe que dança salsa ou de um padre que dubla funk. O brain rot é a nova censura: aquela que não proíbe, apenas entorpece.


No início de 2025, o Italian Brain Rot emergiu como ápice desse delírio algorítmico. Memes absurdos gerados por inteligência artificial, com criaturas híbridas e nomes pseudo-italianos como Tralalero TralalaBallerina Cappuccina ou Chimpanzini Bananini, tomaram as telas com trilhas sonoras caóticas, vozes robotizadas e estética saturada. A lógica: nada precisa fazer sentido, contanto que continue sendo consumido. O absurdo, aqui, não mais provoca — apenas distrai. O nonsense não é rebeldia, é anestesia.

Italian Brainrot não é uma piada aleatória. É a forma mais recente de uma estética do esgotamento: uma sobrecarga sensorial que não apenas diverte, mas atordoa. A lógica é simples — e perversa: quanto mais fragmentado e insensato o conteúdo, mais fácil capturar a atenção cansada. Trata-se de uma estratégia refinada de distração contínua, onde o nonsense vira ferramenta de alienação.

O que parecia apenas humor nonsense revela, na verdade, a face pós-irônica de uma cultura saturada, onde o nonsense é a norma e o excesso é estilo. Essa estética alimenta o espetáculo do nada: vídeos sem contexto, imagens que não dizem nada, sons que não comunicam, mas que circulam — e vendem. O que está em jogo não é apenas o tempo roubado, mas a destruição da nossa sensibilidade histórica e crítica.

No centro desse processo está a economia da atenção, forma contemporânea de exploração que transforma mais ainda a mente humana em mercadoria. A atenção, que antes mediava o conhecimento e a experiência, torna-se agora força de trabalho capturada, medida e monetizada. O algoritmo extrai lucro da fadiga: quanto mais o sujeito se esgota diante das telas, mais tempo de engajamento é convertido em dados e lucro. Trata-se de uma forma de “mais-valia cognitiva”, em que o tempo de vida psíquica é subsumido ao capital.

O esgotamento não é um subproduto, mas uma condição necessária para o funcionamento do capitalismo digital. O cansaço crônico da subjetividade é o terreno fértil onde prosperam a despolitização, o conformismo e o automatismo do consumo. O brain rot, nesse sentido, é a estética funcional da ideologia dominante: não exige crença nem adesão, apenas passividade.

Sob sua aparência divertida, o brain rot — e sua vertente italiana — representa um novo estágio da alienação: um esvaziamento contínuo da experiência, em que o riso não vem da inteligência, mas do cansaço. E é justamente esse cansaço o que o algoritmo deseja. Não se trata de erro ou excesso. É um refinado regime de produção e dominação. É projeto.

Mas há resistências.

Brecht compreendeu o poder do riso. Para ele, a comédia não era fuga, mas arma. Seu teatro não buscava empatia, mas estranhamento. O público não devia se identificar, mas se desconcertar. O riso, ali, não era alívio: era ruptura. Rir, sim — mas rir com consciência. Rir da miséria social para combatê-la. Rir do opressor para expô-lo. Rir do absurdo, mas com o punho cerrado. Brecht reivindicava o riso que ilumina — o riso que pensa, que incomoda, que desperta.

Hoje, essa lição é urgente. Não se trata de demonizar o meme, mas de disputar sua forma. Mesmo a gargalhada viral pode ser arma, se munida de crítica. Até o delírio pode ser politizado. É preciso resgatar a força do riso dialético, aquele que desestabiliza a ordem sensível, que nos convida a ver — e mudar — o mundo.

brain rot só existe porque o real se tornou insuportável. Combatê-lo não é renegar a cultura digital, mas enfrentar as formas sociais que a moldam. Não é calar os memes, mas revirá-los, esvaziá-los de alienação e enchê-los de sentido novo. O problema não está nas imagens que circulam, mas nas estruturas que determinam o que pode circular, o que pode ser visto, pensado, sentido.

A crítica do presente exige, portanto, que voltemos a pensar a cultura não como espelho deformado da realidade, mas como campo de disputa sobre o sensível. A alienação contemporânea não opera apenas na fábrica, mas na tela; não somente no trabalho, mas no lazer. Precisamos retomar a arte como arma — não de distração, mas de desalienação.

Precisamos reconstruir o sensível. Precisamos de arte que cure e denuncie. De ironia que fira a mentira. De imagens que não apenas nos distraiam, mas nos devolvam a nós mesmos. Precisamos de silêncio também — e de pensamento lento. De tempo que não seja cronômetro de produção, mas solo fértil de insurgência.

Desligar pode ser um ato político. Reaprender a pensar, um gesto de rebeldia. E rir, sim — mas do jeito que Brecht ensinou: rindo com raiva, com lucidez, com esperança. Rindo para não nos tornarmos cúmplices do espetáculo do nada.

Porque até sonhar, hoje, exige coragem.

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Pressão por Comissão Indígena da Verdade ganha fôlego com COP30

“O meu pai sofreu muito na ditadura”, desabafa Douglas Krenak. “Foi construída uma escola para que o povo não falasse mais a nossa língua e aprendesse, forçado, a falar português. Um dia, ele não foi para a escola, um soldado foi atrás e encontrou meu pai pescando na beira do rio. Esse soldado pegou meu pai, amarrou ele com corda na sela do cavalo e arrastou ele, uma criança, para toda a comunidade ver”, conta a liderança indígena, como relata a repórter Isabel Seta, que fez a cobertura da 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena no país, que se encerra nesta sexta-feira (11). 

A decisão do Tribunal Federal Regional da 6ª Região desta terça-feira (8) confirma a condenação em primeira instância do Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak durante a ditadura militar e a determinação de que a União, a Funai e o governo de Minas Gerais façam um pedido público de desculpas aos Krenak. Também exige que a Funai conclua a demarcação da Terra Indígena Sete Salões, no Vale do Rio Doce, em seis meses e que faça a recuperação ambiental das áreas degradadas.

 Uma vitória histórica para os povos indígenas comemorada no ATL, onde foi anunciada no mesmo dia pela advogada indígena Maíra Pankararu. “É possível, sim, demarcar terras indígenas através da justiça de transição”, disse a advogada, fazendo referência ao processo de investigação, responsabilização e reparação pelos crimes da ditadura.
Essa é a segunda vitória dos Krenak, como frisou Maíra ao comunicar a decisão da Justiça. Como membro da Comissão da Anistia, ela foi a primeira integrante indígena a relatar um pedido coletivo de reparação, em abril de 2024, após conseguir modificar o regimento interno que só previa indenizações individuais. Além dos Krenak, também os Guarani-Kaiowá obtiveram anistia coletiva no ano passado. 

Durante a ditadura, os povos indígenas foram deslocados de seus territórios, destituídos de suas práticas culturais (até as línguas nativas foram proibidas), submetidos à prisão, trabalhos forçados e sevícias em centros de detenção em Minas Gerais: a Fazenda Guarani, em Carmésia, e o Reformatório Krenak, em Resplendor onde o pai de Douglas Krenak foi torturado. 

O requerimento do procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais Edmundo Antonio Dias Netto por anistia política foi feito em março de 2015, na sequência da publicação do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em dezembro de 2014. Em entrevista à repórter Alice Maciel à época do julgamento, o procurador explicou que “o relatório reforçou o conjunto probatório das violações”, fortalecendo tanto o pedido da Comissão da Anistia quanto o julgamento que condenou o Estado brasileiro na Justiça.

Ao contabilizar ao menos 8.350 vítimas indígenas durante a ditadura, a CNV também abriu caminho da justiça de transição para os povos originários, processo que está em andamento através de uma iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), do Instituto de Políticas Relacionais e do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas da Universidade de Brasília. O projeto “Justiça de Transição para Povos Indígenas” já reuniu 2 milhões de páginas de documentos e treinou pesquisadores indígenas para percorrer os territórios e levantar casos de violações, ouvir depoimentos de vítimas e familiares e sensibilizar os povos para a memória e reparação. 

Há muitos casos ainda não apurados de violações, não apenas pelo Estado, mas também por empresas como a Paranapanema S.A, que explorou trabalho análogo à escravidão de indígenas na Amazônia nos anos 1970, como revelou a Agência Pública em 2023.

Em setembro do ano passado, também foi criado o fórum “Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas”, coordenado pelo Ministério Público Federal, pela Apib e seus parceiros. Um dos objetivos do fórum é propor a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, que provavelmente será lançada durante a COP30, aproveitando a visibilidade internacional do evento. 

Seria de bom tom para o governo brasileiro, que até lá efetuasse esse pedido público de desculpas aos Krenak e concluísse a demarcação da TI Sete Salões, ainda paralisada por ações de fazendeiros e mineradoras. 

Aliás, vale lembrar que os Krenak, já no século 21, foram vítimas da mineradora Vale, com o rompimento da barragem em Mariana (MG), em 2015, que devastou o território. Vale e Paranapanema também poderiam aproveitar a COP30 para se desculpar publicamente. Afinal, as violações contra os indígenas continuam a ser cometidas, mesmo com o reconhecimento internacional do papel essencial dos povos originários para o futuro do planeta, que sofre com a lentidão dos governos e o descaso das empresas, sempre prontas a posar de “verdes” enquanto continuam a destruição. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

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Favela do Moinho: gestão Tarcísio faz lembrar Odete Roitman

Moro no centro de São Paulo, próximo ao “Minhocão”, a excrescência arquitetônica criada pelo ex-prefeito Paulo Maluf, que separou definitivamente o bairro de Campos Elíseos, agora em processo de gentrificação, de bairros há muito valorizados como Santa Cecília e Higienópolis. 

Aqui também vive boa parte dos quase 100 mil moradores de rua da capital mais rica do país, reflexo de políticas públicas elitistas, equivocadas ou simplesmente ausentes. 

Para ficar em um número: o déficit habitacional em São Paulo ultrapassa 400 mil moradias, de acordo com o Censo de 2022, que também apontou quase 590 mil imóveis vazios na capital paulista. Há método no caos aparente. 

Quando cruzo a avenida embaixo do viaduto, sinto o constrangimento de invadir moradias daqueles que, com muito pouco, conseguem criar um lar onde vivem crianças, idosos e até animais de estimação. Às vezes, surge um vazio ainda mais triste, provocado por operações da prefeitura que retiram pertences, colchões, cobertores para “higienizar” a cidade que escolhe quem acolher. 

No ano passado, durante a inauguração do Parque Princesa Isabel – parte do megaprojeto de Tarcísio de Freitas para mudança da sede administrativa do governo –, o vice-governador Felício Ramuth disse que o governo pretende “devolver o centro da cidade para o cidadão de bem” e transformá-lo no “espaço mais vigiado e seguro” da capital. 

 Os cidadãos do “mal”, na declaração cristalina de Ramuth, são os pobres que ousam viver no centro, como sabe a camareira Simone Ferreira, moradora de uma das cinco quadras que serão demolidas para dar lugar ao projeto do governo estadual, uma parceria público privada de 4 bilhões de reais.
“Neste lugar, para eles, só tem bandido, pessoas que não prestam. É um preconceito racial. E agora vem o governador dizer que vai desapropriar esse lugar para colocar a classe média”, explicou Simone ao Intercept, depois de ser expulsa de sua casa com um papel na mão que seria a garantia de uma unidade habitacional no CDHU, ainda em construção.

A mesma promessa foi feita aos moradores da Favela do Moinho, alvo principal do ódio higienista de diversos prefeitos e governadores paulistas. Dessa vez, a expulsão vem pra valer, e dará espaço para um parque que compõe a planejada esplanada chique de Tarcísio e de seus sócios privados na especulação imobiliária. 

Nos próximos dias, cerca de 900 famílias deixarão paulatinamente suas casas na favela do Moinho sem saber como irão viver com um auxílio aluguel de 800 reais (valor irrisório até para alugar um barraco em São Paulo) até que os conjuntos habitacionais fiquem prontos – sem prazo definido. 

No centro só há moradia planejada para 100 famílias, as demais não sabem nem onde irão viver. Obviamente, para o governador, quanto mais longe do centro, melhor. 

A reivindicação dos moradores da favela do Moinho era a regularização da área em que estão há décadas, que recentemente conseguiu ser atendida, ainda que precariamente, pelos serviços de água e luz. Ou pelo menos, que o acordo com o governo fosse feito chave-a-chave: eles sairiam de casa somente com a chave da nova moradia em mãos.

A vitória da gestão Tarcísio contra os “não-cidadãos” veio na sequência de operações policiais violentas na favela a pretexto de prender os traficantes da cracolândia, que fica ali perto. A última agressão policial ocorreu no último dia 15, quando o protesto dos moradores foi reprimido com bombas. 

Com isso, boa parte dos moradores foi vencida pelo medo de ser despejada e ficar sem nada e aderiu à proposta habitacional do governo apesar das incertezas que a cercam.

O governo diz que 86% dos moradores aceitaram deixar suas casas em troca de uma carta de crédito de 250 mil reais para comprar outro imóvel, que será pago em parcelas correspondentes a 20% da renda familiar. Uma despesa, além das taxas de condomínio, que eles não sabem se serão capazes de pagar, e que pode se estender por 30 anos. 

Mais: para obter o imóvel – com metragem que varia de 20 a 40m², é preciso ter renda superior a um salário mínimo, o que exclui uma boa parcela dos moradores, que chegaram a relatar terem sido orientados a mentir no cadastro para não ficarem fora do programa. Ou seja, o valor das parcelas pode representar bem mais do que os 20% prometidos. 

Isso, se conseguirem a moradia, porque, não custa repetir, a maioria das unidades não foi sequer construída – o que pode demorar anos enquanto a PPP segue em ritmo frenético de eleições no ano que vem, provavelmente com Tarcísio candidato a presidente. 

Como sabem os políticos, fazer obra dá dinheiro público pra muita gente que tem bons lugares para morar. Inclusive no centro. Desde “que não tenham um bando de mendigos na porta tentando nos agarrar”, como dizia Odete Roitman, a vilã da novela global “Vale Tudo”, ainda hoje símbolo de uma elite egoísta e corrupta, servida por governantes de olho em seus próprios benefícios.

Trinta e sete anos depois da primeira versão da novela, que coincidiu com a promulgação da Constituição Cidadã, o país da desigualdade, que o centro paulistano tão bem espelha, continua a mostrar sua cara.


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

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O paradoxo da segurança

Há um ditado popular que diz que o Brasil não é para amadores. Em nenhum outro campo essa máxima faz tanto sentido quanto na segurança pública. Enquanto o governo federal publica um decreto tentando conter a letalidade policial, as armas de fogo – instrumento de mais de 70% dos homicídios no país – ficam de fora da lista do “imposto do pecado”. Um paradoxo que resume bem a complexidade do debate sobre segurança no país.

O recém-publicado Decreto 12.341/2024 estabelece diretrizes nacionais para o uso da força policial. Uma medida necessária e urgente, embora tímida, especialmente quando olhamos os números: em 2024, apenas nas quatro regiões metropolitanas monitoradas pelo Fogo Cruzado, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Belém, registramos 6.768 tiroteios — uma média assustadora de 18 por dia. Mas o dado que mais chama atenção é que 29% desses episódios envolveram forças policiais.

São cinco pessoas baleadas por dia em ações policiais, como a que feriu Juliana Rangel, atingida por agentes da PRF na véspera do último Natal, dia seguinte à publicação do decreto. O caso de Juliana não é isolado. Nossa experiência com dados mostra que a violência policial não se resume aos casos em que as vítimas morrem. Cada disparo, cada operação mal planejada, cada abordagem truculenta deixa marcas profundas nas comunidades. São traumas que os números nem sempre conseguem captar, mas que perpetuam um ciclo vicioso de violência.

A medida determina, entre outros pontos, que armas de fogo não podem ser utilizadas contra pessoas desarmadas em fuga ou contra veículos que desrespeitam bloqueios policiais. Parece óbvio, não? Mas a realidade nos mostra que não é.

E aqui vale um destaque importante: o Fogo Cruzado é a única organização que realiza o mapeamento sistemático de disparos de arma de fogo em ações policiais, incluindo um indicador específico para perseguições policiais. Em 2024, registramos 142 pessoas baleadas durante perseguições, que envolviam a polícia — casos que muitas vezes sequer entram nas estatísticas oficiais. São dados que mostram a urgência de regras claras para o uso da força.

Enquanto o decreto tenta estabelecer limites para o uso da força, a decisão de não incluir armas de fogo na lista do Imposto Seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, caminha na direção oposta. Em um cenário onde carros, bebidas e cigarros terão aumento significativo nos preços, as armas de fogo seguirão mais acessíveis. É como se o governo dissesse: “carro é artigo para poucos, arma não”.

A reação de alguns governadores ao decreto também merece atenção. Chamam de “chantagem” o fato do governo federal condicionar o repasse de recursos à adequação aos padrões internacionais de uso da força. Na administração pública, condicionar repasses ao cumprimento de normas é prática corriqueira e necessária. Afinal, que gestor responsável continuaria enviando recursos para práticas que violam acordos?

O caso da Bahia é emblemático dessa contradição. Enquanto o governo estadual celebra uma suposta redução nos números de letalidade violenta, convenientemente exclui dessa conta as mortes em ações e operações policiais. Uma matemática criativa que tenta mascarar um dado alarmante: a polícia baiana é a que mais mata no Brasil. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública - Ministério da Justiça (Sinesp — MJ), somente em 2024 foram 1.557 mortes por intervenção policial. É como fazer regime contando só as calorias que nos interessam — o resultado final não reflete a realidade.

São muitos aspectos de um mesmo tema, segurança pública, e eles parecem desconectados, certo? Governadores, governo federal, decretos, impostos, afinal como tudo isso se relaciona? Na verdade, essa sensação de falta de alinhamento e direção é o que melhor resume o cenário. Não temos uma política clara, diretrizes nacionais, articulação de governos para lidar com um dos principais problemas nacionais: o altíssimo número de pessoas mortas por armas de fogo todos os anos.

O decreto é um primeiro passo importante, mas faltam critérios claros para sua implementação e monitoramento. Como será avaliada a adesão dos estados? Quais serão os indicadores de sucesso? São perguntas que precisam ser respondidas para que a mudança não fique apenas no papel. Mas é importante também lembrar que uma política de segurança efetiva precisa ser ampla e ter diretrizes e objetivos claros. Isso é o que a população espera há algumas décadas.

Um abraço,

Iris Rosa
Pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado


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