REPORTAGENS ESPECIAIS

 



A

A

Do manicômio psiquiátrico à vida em liberdade

    

País acumula 1.750 internos em hospitais de custódia. Muitos perdem contato com a família e a sociedade. A saga de João sugere que é possível superar o ciclo de abandono, e convida a refletir sobre a importância das ações antimanicomiais para assegurar uma vida digna

Por José Alberto Roza Júnior

A história de João ecoa a de muitos outros moradores de hospitais psiquiátricos e Hospitais de Custódia/Tratamento (HCTP) que entraram pela porta da frente e lá permaneceram por muitos anos. Alguns ainda estão lá. São 24 anos de promulgação da Lei 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica brasileira, que buscava garantir o direito ao tratamento humanizado e à reinserção social de pessoas com transtornos mentais, além de estabelecer diretrizes para os HCTPs, buscando alternativas para que indivíduos que cometeram crimes não sejam apenas excluídos, mas recebam tratamento adequado e tenham a chance de retornar à sociedade. Mais recentemente, em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reforçou esse compromisso, instituindo uma política antimanicomial para o Judiciário, com o objetivo de garantir os direitos das pessoas com deficiência/transtornos mentais no sistema penal e nas medidas de segurança. A Resolução CNJ 487/2023 determinou, no prazo de 1 ano, o fechamento de unidades penais com características asilares, mas, até o momento, poucos estados cumpriram integralmente a medida. São Paulo, por exemplo, onde se concentra grande parte dos internos (51,3%), solicitou o adiamento do prazo. No Brasil, o total de pessoas em HCTPs é de cerca de 1750 internos. Um dos principais obstáculos é a dificuldade em encontrar responsáveis para cuidar desses pacientes, que muitas vezes perderam o contato com suas famílias e a sociedade, ou moradias, como o Serviço Residencial Terapêutico (SRT), destinadas a egressos de hospitais psiquiátricos com internação de longa duração.

Mas há histórias que tentam romper esse ciclo de abandono – e que mostram, também, os efeitos persistentes da lógica manicomial, mesmo quando há afeto e presença. É o caso de João, cuja trajetória também é marcada pela esperança, narrada por seu irmão, Marcos. Em um sábado à tarde, encontrei Marcos visitando seu irmão João, um dos moradores de um SRT de São Paulo. A lógica manicomial do descaso o fez ser transferido, sem muito critério, de um HCTP para um Hospital Psiquiátrico e, por isso, pôde sair de lá e ir morar em um SRT. Para preservar suas identidades, os nomes estão alterados. O que quero mostrar é que, mesmo quando a família não abandona, a lógica do isolamento psiquiátrico pode criar um muro de distanciamento.


João passou 27 anos de sua vida em hospitais psiquiátricos/HCTPs. Marcos nunca se afastou, assim como o pai deles. “Meu pai morreu tentando tirar ele daqueles lugares”, conta Marcos, com a voz embargada pela emoção.

Quando João completou 20 anos, começou a apresentar comportamentos “diferentes”. Nessa mesma época, trabalhava como office boy no mesmo escritório que seu pai, Gerônimo. Mas um dia, a chefia chamou Gerônimo para informar que João seria desligado: ele se recusava a sair para atividades externas, falava sobre homens que o perseguiam e se envolvia em confusões. Em um episódio, invadiu uma reunião, gritando que o café estava envenenado para matar seu chefe. Após a demissão, João se fechou em casa. “Chorava dias e dias, ficava no quarto sem tomar banho”, lembra Marcos. Um dia, Marcos recebeu uma ligação urgente: João havia atacado sua prima com uma faca. Sua mãe tentou conter e desmaiou ao ver toda a cena. Ambas ficaram feridas. Desesperado, tentou se matar. A justiça determinou sua internação em um hospital de custódia, o antigo manicômio judiciário.

Durante onze anos, Gerônimo visitou o filho aos sábados, levando café e bolo feito por Maria, sua esposa. Mas um dia, ouviu a sentença final: João jamais sairia dali. “Esquizofrênico e com medida de segurança, a justiça o manteria lá”, lamenta Marcos. Dois meses depois, Gerônimo descobriu um câncer. Antes de morrer, pediu a Marcos que continuasse as visitas, levando o bolo de cenoura preferido de João. Marcos cumpriu a promessa.

Marcos descobriu que João havia sido transferido para outro hospital, mas em uma cidade no interior de São Paulo. As transferências sem sentido, por discussões entre internos ou mesmo por superlotação, revelam a lógica manicomial do descaso no cuidado, uma história de horror nos longos anos de manicômios no Brasil. E, ao acaso/descaso, a transferência não foi para outro HCTP e sim para um Hospital Psiquiátrico. As visitas continuaram, agora mensais. As idas foram se espaçando com o tempo. Marcos se casou dois anos após a morte de seu pai, seguiu sua vida. Perguntou se João não poderia ir morar com ele, seria mais fácil que dirigir 300 km para visitá-lo. A resposta foi categórica: ele nunca será libertado. “Até quando eu aguentaria a promessa feita a meu pai? Já tinham se passado treze anos desde o primeiro hospital!”, conta emocionado.

Em 2009, vinte anos após o surto psicótico que feriu sua mãe e prima, Marcos soube que João seria transferido novamente, desta vez para um hospital psiquiátrico em São Paulo. A equipe do hospital contou sobre a Lei 10.216/01; agora, João poderia viver com sua família. Marcos fez um acordo com a equipe do hospital. “Eu o visitava mensalmente, depois ficou difícil com a distância. Eu posso vir todos os sábados. Minha esposa faleceu. Moro sozinho. Não tenho quem fique com ele em casa. Cuidem dele aqui.”

Após sete anos, surgiu a oportunidade de João morar em uma residência terapêutica. Aos 62 anos, sua vida recomeçaria fora dos muros que, por tanto tempo, definiram sua existência. Gerônimo se alegraria em saber que o filho teria de novo uma casa. João retornou à cidade em uma tarde de segunda-feira. E, naquele sábado, ao conhecer Marcos, em sua primeira visita ao irmão, fui recebido por perguntas que ecoavam seu sofrimento: quem seria o vilão numa história marcada por tantas atrocidades? Haveria, de fato, um culpado? Qual o papel do Estado no destino dos pacientes psiquiátricos? E por que uma lei que promete mudanças só surge agora? Essas inquietações, lançadas com a voz embargada e lágrimas correndo pelo rosto de um senhor de setenta anos, tornaram-se também minhas. Enquanto tentava explicar os caminhos e limites da Reforma Psiquiátrica, buscava, ao mesmo tempo, acolher a dor de Marcos – uma dor que é também coletiva.

Naquele dia, nossa conversa esmiuçou as pequenas questões que se revelam monumentais no início da jornada de reintegração. João agora desfruta de um guarda-roupa próprio, uma cama só sua, seus pertences organizados e roupas lavadas com o cuidado que merece. Começa, também, a lidar com as novidades de uma vida com mais autonomia: os gastos com o barbeiro semanal, o táxi para consultas e os passeios que vislumbra. O início dessa nova etapa, no entanto, escancara os desafios de desaprender hábitos arraigados por anos de internação.


Há, por exemplo, a insistência em levar para o quarto o prato usado, os restos de comida escondidos, os chinelos sob o travesseiro – resquícios de um passado manicomial que teimam em ressurgir. Como lidar com essas manifestações? Talvez a resposta esteja em reafirmar, a cada gesto, que a Residência Terapêutica é, antes de tudo, um espaço de resgate: a reconstrução paciente de uma subjetividade que lhe foi negada por tanto tempo. Apesar do foco na perspectiva de Marcos, é possível vislumbrar a experiência de João. Ele sorri e interage com os outros moradores da residência, demonstra entusiasmo ao ir à padaria e à banca de revistas. Contudo, a adaptação não é isenta de desafios. Por vezes, João se mostra perplexo diante da modernidade, como ao observar pessoas utilizando telefones celulares, expressando: “Isso é muito louco!”. Em momentos de crise, o passado o assombra, manifestando o desejo de retornar à empresa onde trabalhou ou à casa de sua família. A ausência da mãe também o aflige, levando-o às lágrimas e a questionando por que ela não o visita.

É fundamental ressaltar que casos como o de João representam a realidade de muitos indivíduos com transtornos mentais que, em momentos de crise, cometeram atos infracionais ou crimes. Longe de serem representativos da totalidade dos pacientes em HCTPs, os casos de violência que ocasionalmente chegam à mídia acabam por estigmatizar toda uma população que, em sua maioria, necessita de cuidado, compreensão e oportunidades de reinserção social. É preciso desmistificar a perigosa generalização que associa transtorno mental à violência, reconhecendo que a imensa maioria dessas pessoas, como João, não apresenta traços de psicopatia ou periculosidade inerente.

Há mais de um século, pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei são excluídas da sociedade, privadas de seus direitos e submetidas a tratamentos inadequados, muitas vezes mais prejudiciais do que benéficos. Essa realidade evidencia a necessidade urgente de combater o estigma, promover o diálogo entre saúde e justiça e criar políticas públicas que respeitem os direitos humanos e priorizem o cuidado adequado dessa população.

E, como essa história ainda está sendo escrita, resta a certeza de que João poderá, enfim, viver plenamente em um lar – em sua nova casa, a Residência Terapêutica. Marcos, ao compartilhar comigo essa trajetória de lutas e a memória constante do pai, sorri com a esperança renovada: “Agora, João pode voltar a ser um cidadão!”.

Este artigo é uma homenagem ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio. A data nos lembra da importância de lutar por uma sociedade mais justa e inclusiva, onde as pessoas com transtornos mentais tenham seus direitos garantidos e possam viver com dignidade e liberdade.

José Alberto Roza Júnior é Psicólogo Clínico. Professor. Doutor em Psicologia/Saúde Mental (USP). Atuou por mais de 15 anos em serviços de Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A


    Mulheres eram forçadas a engravidar em fazendas de reprodução de escravizados


Mulheres eram forçadas a engravidar continuamente, enquanto homens eram colocados na posição de “reprodutores”. Os bebês ficavam pouco tempo com a mãe e logo eram negociados pelos senhores de escravos como mercadoria. 

A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center


Um dos aspectos menos conhecidos da escravidão no Brasil é também um de seus lados mais sombrios: a reprodução sistemática de pessoas escravizadas. Mulheres eram forçadas a engravidar continuamente, enquanto homens (os mais fortes e saudáveis) eram colocados na posição de “reprodutores”. Os bebês ficavam pouco tempo com a mãe e logo eram negociados pelos senhores de escravos como mercadoria. Exatamente como funciona hoje uma fazenda de criação de gado.


O tema é pouco conhecido no país porque não há muitos documentos históricos – em parte por causa da destruição de arquivos ligados à escravidão no fim do regime, e em outra medida por ser uma atividade ilegal, feita às escondidas. As informações que se tem sobre o assunto baseiam-se principalmente em relatos orais e no que sobrou de censos e controles de natalidade das fazendas.


O pesquisador e jornalista Laurentino Gomes, autor de uma trilogia de livros sobre a escravidão brasileira, encontrou ao menos duas fazendas que serviam como espaço de reprodução de escravizados. Uma delas fica em Remígio, na Paraíba, e a outra em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Ele acredita que havia muitas outras espalhadas pelo interior do país, mas que acabaram desaparecendo aos olhos dos historiadores. “Essa é uma prática muito camuflada no Brasil, muito dissimulada, mas que permeou todo o sistema escravista”, afirma.



Localizada na região de Campina Grande, a segunda maior cidade da Paraíba, a fazenda de Remígio é conhecida até hoje pelos moradores do entorno como “a maternidade”. Lá era o lugar em que as escravizadas de Francisco Jorge Torres, um português que se mudou para o Brasil no início do século 19 e fez fortuna com a criação e venda de pessoas, iam para dar à luz os bebês que depois seriam comercializados por ele. Pelo menos cem crianças tiveram esse destino. Além de servir para a reprodução de pessoas, o local funcionava também como fazenda de criação de gado e curtume.


Ainda hoje é possível ver as ruínas do que, naquela época, era uma casa de pedra com paredes grossas, apenas uma porta de entrada e saída e uma janela gradeada, onde as escravizadas faziam o parto e passavam os primeiros dias – o único momento em que podiam ficar junto com os filhos. Pequenos buracos na parede serviam para os capitães do mato ouvirem o que estava acontecendo dentro, para identificar quando um bebê nascia e evitar que a mãe escondesse a criança para tentar fugir com ela depois.


A

A

AGÊNCIA PÚBLICA

Portal Membro desde 25/08/2017

Segmento: Notícias

Premiações: 

 





A

A


‘Ainda estou aqui’: Como advogada, Eunice Paiva deixou legado para o direito indígena


    No último 7 de novembro, a advogada Maíra Pankararu, primeira indígena a participar da Comissão de Anistia, saiu emocionada da estreia de Ainda estou aqui. “Fico muito agradecida, porque ainda são poucos os que discutem o que foi a ditadura para nós, povos indígenas”, disse Pankararu à Agência Pública. 

O filme recém-indicado ao Globo de Ouro e que, há poucos dias, se tornou a maior bilheteria do cinema brasileiro no pós-pandemia, conta a busca de Eunice Paiva pelo reconhecimento do assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, pela ditadura militar. Mas, entre as várias batalhas que marcaram a trajetória de Eunice, o filme do diretor Walter Salles destaca também sua atuação como uma das raras advogadas na época especializadas em direito indígena. 

Entre 1964 e 1985, período definido por Pankararu como um “banho de sangue” para os povos indígenas, o governo militar perseguiu, expulsou milhares de suas terras e colocou dezenas em campos de trabalho forçado e prisões. 

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período – “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O número, aterrador, se refere a apenas dez povos estudados pela CNV – são 305 no Brasil. Desaparecidos e mortos políticos, caso de Rubens Paiva, foram 434, conforme a CNV. 

“A gente ainda não tem noção sobre o que aconteceu com os povos indígenas na ditadura”, afirma Pankararu. 

Foi nessa época brutal que Eunice se especializou na defesa jurídica dos povos indígenas, assinando pareceres judiciais, buscando indenizações e demarcações de terras, publicando artigos e livros e contribuindo para as discussões que resultariam no capítulo “Dos índios” da Constituição Federal de 1988. 

“Eunice é de uma expressão tão grande que é impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista humanitário”, afirmou o líder, ativista e escritor Ailton Krenak em entrevista à CBN. 

O foco de Ainda estou aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é a batalha de Eunice para que o governo ditatorial reconhecesse o que fez com seu marido, levado por policiais à paisana em janeiro de 1971 para nunca mais retornar. 

Mas, ao mencionar a dedicação posterior dela ao direito indígena, o longa abre um caminho para que outra memória coletiva seja também recuperada. 

“O direito à memória e à verdade é o direito à nossa identidade, o direito de sanarmos as nossas feridas e esses traumas que se tornaram intergeracionais”, resume Daiara Tukano.  Artista e mestre em direitos humanos, Tukano também viu no filme um convite para que as pessoas se somem à luta dos povos indígenas e conheçam as histórias daqueles que Eunice defendeu – entre eles, os Pataxó, da Bahia; os Zoró, do norte de Mato Grosso; os Kayapó, do Xingu; e os Yanomami, de Roraima.


A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período da ditadura militar


Eunice e a causa indígena

Dois anos depois de Rubens Paiva ter desaparecido nos porões do DOI-Codi, no Rio de Janeiro, Eunice voltou para São Paulo com a família e entrou na Faculdade de Direito. Os estudos lhe deram mais ferramentas para buscar justiça para o seu e para outros casos de desaparecidos políticos, lutar pela redemocratização do país e entrar na causa indígena.

“A minha mãe tinha uma vida incrível, porque ela ficou viúva aos 41 [anos], com cinco filhos, se formou em direito e virou uma militante muito intensa com relação à anistia, redemocratização, Diretas-Já, Constituinte. Ela começou com o direito de família, mas depois se especializou em direito indígena. Ela era uma das pouquíssimas especialistas em demarcações de terras indígenas e passou a ser requisitada”, contou Marcelo, filho de Eunice e Rubens, em entrevista a Drauzio Varella, em 2016, meses após ter lançado o livro.  

Em 1987, ela foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá) , organização não governamental que colaborou para a criação de vários projetos de saúde, educação e política para povos indígenas, na qual atuou até 2001.

No final da década de 1980, Eunice trabalhou também no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que geria, no Brasil, os recursos de uma organização fundada pelo músico Sting – convertido definitivamente à causa indígena após ter feito uma turnê mundial ao lado do líder Raoni Metuktire para angariar fundos para a demarcação da Terra Indígena Menkragnoti, dos Kayapó, no Xingu, homologada em 1993.


Eunice foi uma das fundadoras das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente

Antes disso, ainda na ditadura, Eunice participou da Comissão Pró-Índio de São Paulo, grupo fundado por antropólogos em 1978 como reação à tentativa do governo militar de alterar a lei para separar os indígenas em dois grupos: aqueles que seguiam suas “tradições” e, portanto, ainda precisavam ser “tutelados” pelo Estado; e aqueles que tinham se “emancipado” por terem se “aculturado”. 

A divisão arbitrária não passava de uma manobra para retirar do segundo grupo o direito à terra – reconhecido desde o tempo do Brasil Colônia e protegido pelas constituições desde 1934. A estratégia não passou despercebida. 

“Essa questão de ‘emancipar’ os índios, que era o termo usado, mobilizou a sociedade civil de um modo incrível, porque foi, digamos, o modo de expressar resistência e repúdio à ditadura no fim da década de 1970, quando a oposição estava muito subjugada”, lembra a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das fundadoras da Comissão Pró-Índio e referência em antropologia no país.

A demarcação de terras indígenas se tornou uma palavra de ordem, estampada até em adesivos colados nos automóveis de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, contou a antropóloga. 

Naquela época, o ordenamento jurídico do país considerava os indígenas como “relativamente capazes” (mesmo status das mulheres casadas). Assim, eles não podiam fazer negócios, celebrar contratos e entrar com ações judiciais, prerrogativas reservadas ao “tutor” – representado, primeiro, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967. 

Funai militarizada e a disputa pela terra

Só que a própria Funai, militarizada, era “o inimigo dos indígenas”, explica Carneiro da Cunha, retratada no filme ao lado de Eunice em uma cena de uma aula ministrada por elas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “Isso fazia com que, na realidade, eles não tivessem acesso à Justiça de forma autônoma.”

Em 1983, as duas assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo denunciando como a Funai havia agravado o conflito fundiário enfrentado pelos Pataxó do sul da Bahia. Pressionado pelo governo estadual, o órgão que deveria defender os indígenas atuou para remover e dividir a população, deixando-a exposta à violência da Polícia Militar e de fazendeiros.


Reprodução do artigo no jornal Folha de São Paulo

“Nesta situação, a quem recorrer?”, questionam. “Sejamos claros: a Funai, supondo mesmo que quisesse cumprir seu papel, está atrelada a um sistema no qual os direitos indígenas são a última das preocupações.” 

A Comissão Pró-Índio de São Paulo era justamente uma entidade a que os indígenas podiam recorrer, uma organização “para-raio” de conflitos, como define Márcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e presidente da Funai entre 1995 e 1996. 

“Indígenas que sofriam processos complicados de violência, tomada de terras, recorriam à Comissão [Pró-Índio] para ter algum tipo de apoio, nem que fosse no plano da denúncia desses fatos. Era um período em que havia pouca gente com formação que pudesse ajudar”, conta.

Eunice era uma dessas pessoas, assim como os juristas Dalmo Dallari (1931-2022), referência em teoria do estado, e Carlos Marés, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Na época, eles desempenhavam o papel que mais tarde seria delegado ao Ministério Público Federal (MPF) pela Constituição de 1988.

“Quando você vê alguém falando que o Ministério Público denunciou, entrou com ação, fez não sei o quê, a Eunice Paiva já fazia isso antes do Ministério Público existir”, disse Krenak à CBN. 

Em 1986, Eunice escreveu um parecer fundamental para a demarcação da Terra Indígena Zoró, reconhecida no ano seguinte. Contatados oficialmente em 1977, os Zoró viram sua população se reduzir drasticamente após uma série de surtos epidêmicos trazidos pelos invasores que seguiam o asfaltamento da BR-364 (entre Cuiabá e Porto Velho). 

“Os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos intransponíveis e que não podem ser negociados, inexistindo qualquer impugnação válida capaz de anular, restringir, extinguir ou modificar os direitos da comunidade Zoró sobre a terra que é seu habitat natural”, escreveu Eunice como avaliadora do impacto do Programa Polonoroeste para os indígenas.

A pavimentação da rodovia entre as capitais de Mato Grosso e de Rondônia foi uma das principais ações do Polonoroeste, criado pelo governo João Figueiredo em 1981, financiado por empréstimos de milhões do Banco Mundial e devastador para os povos indígenas dos dois estados. 

Ditadura: grandes obras e violência

Com seus programas de “integração” e grandes obras de infraestrutura, como as rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, a ditadura exacerbou a opressão, em todos os níveis, contra os indígenas, deixando um legado de violações nunca reparado. 

Na raiz dessa violência, que também se perpetua até hoje, estava o direito à terra, classificado por Eunice como o “mais valioso” para os indígenas. Em um livro de 1985, escrito com a antropóloga Carmen Junqueira, ela lembra que o Estatuto do Índio, de 1973, havia dado cinco anos para a Funai demarcar todas as terras indígenas. O prazo havia se esgotado sem que as áreas demarcadas atingissem um terço do total. 

“Parece-me que o problema da terra, no Brasil, hoje, é um problema crucial. Observamos uma verdadeira corrida para o oeste, no sentido da ocupação do território, estimulada, inclusive, pelo próprio governo, no sentido da defesa desses territórios contra eventuais invasores estrangeiros. Enfim, essas coisas que os militares muito enfatizaram”, disse ela durante uma reunião da Comissão Pró-Índio em 1986. 

“Acho que o problema da terra, indígena ou não, deveria ser tratado de forma harmoniosa, estabelecendo quais são os direitos indígenas e os outros organismos se adequarem a isto. E não o contrário. A adequação tem sido feita com prejuízo dos direitos das terrasindígenas”, afirmou. 

No livro O Estado contra o índio, publicado em 1985, Eunice e Carmen se debruçam sobre décadas de documentos estatais para reconstituir todo o tratamento dado, ao longo da história legislativa brasileira, aos indígenas e ao direito deles à terra. Na obra, elas criticam a política indigenista e denunciam as seguidas violações de direitos humanos. 

Para as autoras, um dos sintomas da “discriminação racial” e “violação aos direitos humanos” enfrentadas pelos indígenas estava na falta de apuração e solução dos crimes cometidos contra as comunidades. Elas listam, então, 15 assassinatos entre 1975 e 1983 que ficaram “sem solução”. Entre eles o do líder guarani Marçal de Souza, que chegou a participar de reunião da Comissão Pró-Índio e foi morto por pistoleiros em Campestre, em Antônio João, no Mato Grosso do Sul. 

Em um desses prolongamentos da história, até hoje fazendeiros disputam áreas indígenas no estado, em um conflito fundiário violento que, há anos, deixa mortos e feridos. Recentemente, em setembro, também em Antônio João, o jovem Neri Guarani Kaiowá foi morto a tiros durante uma ação da Polícia Militar contra a retomada dos indígenas em uma fazenda, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). 


O caminho para a Constituição de 1988

Para Manuela Carneiro da Cunha, o trabalho realizado pela Comissão Pró-Índio deixou um “enorme legado” para a pesquisa acadêmica e para a formulação jurídica dos artigos da Constituição de 1988

“Essas pessoas que tomaram o front nesse período [da ditadura] tinham que tirar leite de pedra para conseguir fazer a defesa dos povos indígenas com os instrumentos precários que existiam”, afirma Santilli. 

Para Manuela Carneiro da Cunha, esse trabalho realizado pela Comissão Pró-Índio deixou um “enorme legado” para a pesquisa acadêmica e para a formulação jurídica dos artigos da Constituição de 1988 – como o revolucionário texto do artigo 231, que sacramentou o conceito de “direito originário”, recuperado pelo trabalho do grupo. 

Os advogados que atuavam na Comissão Pró-Índio foram importantes também em uma das grandes batalhas da Constituinte: o debate sobre mineração em terras indígenas. Segundo Ailton Krenak, advogados como Eunice, Dalmo Dallari e Carlos Marés aconselharam as lideranças envolvidas nas discussões a impedir a autorização ao garimpo no texto constitucional. 

Eunice já conhecia o problema por sua atuação como advogada da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), área invadida por milhares de garimpeiros no final da década de 1980, estimulados pelas seguidas investidas do governo e de parlamentares para autorizar a exploração de cassiterita na região. O chamado “ouro negro”, usado na fabricação de vidros e de latas e, atualmente, até de telas de celulares, ainda hoje é extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami.  

Além de preparar o caldo jurídico para a Constituinte, a Comissão Pró-Índio de São Paulo também teve um papel relevante ao reunir líderes indígenas que se tornaram referências para o movimento indígena, como o próprio Krenak, Raoni, Marcos Terena, Álvaro Tukano, entre outros.

“Eles foram apoiadores importantes ao promover esses encontros das lideranças que construiriam as propostas para os nossos direitos na Constituinte, a presença indígena dentro dos espaços democráticos do país”, diz Daiara Tukano, filha de Álvaro. Na história pessoal da família da artista, Eunice é lembrada também por ter assinado um parecer para que o cartório de Pinheiros, em São Paulo, aceitasse registrar Daiara como Daiara Hori, em uma época em que nomes indígenas não eram aceitos. 

A representação indígena era uma das preocupações da advogada, que já em 1985 apontava como “defeito grave” na concepção da Funai a ausência de indígenas nos quadros do órgão. 

Quase 40 anos depois, ela provavelmente ficaria satisfeita em ver Joenia Wapichana na presidência do órgão. Além de um movimento indígena fortalecido, representado juridicamente por suas próprias organizações, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

“Tem agora um movimento indígena tanto de mulheres quanto de homens que é nacional, e isso é de extrema importância”, afirma Manuela Carneiro da Cunha.

“Lembrar da Eunice também é agradecer e celebrar o trabalho de todos aqueles que foram nossos parceiros e continuam de pé do nosso lado”, diz Daiara. “Eu fiquei muito tocada que ela resolveu virar advogada para construir justiça em um momento em que a maior parte da nossa população não tinha condições para isso. Hoje nós temos nossos advogados, nossos professores, nossos doutores, mas precisamos que todos conheçam essa parte da história, que é uma história coletiva, a história de um país.” 

Maíra Pankararu faz coro: “A memória dessas violências não é uma memória só dos povos que as sofreram. É uma memória da sociedade brasileira, que precisa entender o que foi a ditadura para os povos indígenas, para daí entender o que de fato foi a ditadura como um todo”.

Edição: Giovana Girardi


A

A

AGÊNCIA PÚBLICA

Portal Membro desde 25/08/2017

Segmento: Notícias

Premiações: 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SAÚDE

COTIDIANO

OPINIÃO