REPORTAGENS ESPECIAIS

 




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Por uma saúde enraizada na Amazônia

    Entre omissões institucionais e práticas de resistência, estudo revela como modelo biomédico de atendimento marginaliza saberes tradicionais e amplia desigualdades. Como o SUS pode construir pontes com as comunidades dos territórios amazônicos?

A realização da COP-30, em Belém do Pará, recoloca a Amazônia no centro das discussões globais sobre clima e preservação ambiental. A maior floresta tropical do planeta não é apenas decisiva para o equilíbrio climático, mas também abriga povos indígenas e comunidades tradicionais que têm sido, historicamente, os mais eficazes guardiões do território. Ao proteger a floresta, esses grupos preservam conhecimentos agrícolas, pesqueiros e medicinais ancestrais que oferecem alternativas concretas à degradação ambiental. No entanto, a relação entre saúde, floresta e saberes tradicionais ainda recebe pouca atenção no debate público e nas políticas do SUS, especialmente no campo da Atenção Especializada.

Às vésperas da COP-30, torna-se urgente refletir sobre como a saúde se conecta com a floresta e de que maneira os sistemas formais de cuidado dialogam — ou deixam de dialogar — com conhecimentos produzidos ao longo de séculos por povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos amazônicos. Essa reflexão não é apenas conceitual: ela pode revelar caminhos para superar limitações históricas da política de saúde brasileira, especialmente nas regiões mais vulnerabilizadas.

Um estudo conduzido pelo Observatório de Políticas Públicas de Saúde/SUS, do Laboratório de Saúde Coletiva (LASCOL), da Unifesp, em parceria com o Ministério da Saúde, chamado “Cartografia da Atenção Especializada no Brasil”, investigou a situação da Atenção Especializada Ambulatorial e buscou identificar práticas inovadoras de cuidado. Os pesquisadores de campo trabalharam em parceria com usuários, gestores e trabalhadores da saúde na construção do conhecimento que visa apoiar a implementação da Política Nacional de Atenção Especializada (PNAES), instituída em 2023. Por meio de encontros presenciais, registros em diários cartográficos (que revelam percepções, afetos e dinâmicas locais) e de produtos gravados, como entrevistas, seminários e rodas de conversa, foi possível construir um retrato vivo e situado dos desafios da Atenção Especializada no SUS em todo o Brasil.

Ao analisar os nove estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), a pesquisa revelou disputas profundas sobre o que é saúde, como se define doença e quais práticas são consideradas legítimas. Essas divergências moldam tanto a formulação das políticas quanto a experiência concreta de quem busca atendimento.

A política de saúde na região carrega um apagamento sistemático dos saberes tradicionais, pois o modelo biomédico-hospitalocêntrico frequentemente desautoriza epistemologias e práticas que não se enquadram em seu referencial técnico-científico. Na prática, isso significa que, à medida que gestores e profissionais de saúde reforçam o conhecimento biomédico como saber dominante na produção do cuidado, acabam por descartar os itinerários terapêuticos próprios das populações racializadas, periféricas, indígenas, ribeirinhas, quilombolas e migrantes. 

Além disso, marcadores sociais como raça, etnia, gênero e território não são incorporados como critérios estruturantes da Atenção Especializada, de acordo com os achados da pesquisa de campo. Essa ausência reforça uma racionalidade biopolítica que governa pela escassez e administra a exclusão como política pública.

Práticas inovadoras

Os relatos de usuários evidenciam esse cenário: “a senha é a nova forma de dizer não” é uma frase que resume a percepção de que o acesso é controlado por dispositivos administrativos opacos, como filas e cadastros, que transformam pessoas em números e demandas abstratas. Para muitos, a doença não é apenas sofrimento físico, mas também experiência de abandono institucional, descaso histórico e negação do direito ao cuidado.

Essa política de saúde opera simultaneamente como campo de ausência e de invenção coletiva. De um lado, o Estado regula por fragmentar redes e silenciar sujeitos; de outro, comunidades constroem redes vivas de cuidado, modos ético-afetivos de existir e resistir no SUS. A efetivação de uma Atenção Especializada equitativa e territorializada exige deslocar-se de uma racionalidade meramente gerencial para uma política do cuidado que reconheça territórios e saberes como tecnologias legítimas.

A pesquisa também identificou experiências insurgentes que apontam para caminhos de transformação. Conselhos de saúde, coletivos locais, movimentos negros, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+ e organizações de mulheres atuam em diversas frentes: denúncia de racismo institucional, machismo estrutural e exclusão territorial na organização da política de cuidado.

Nos Conselhos de Saúde, propõem-se protocolos específicos, inclusão de marcadores sociais e criação de agendas locais de equidade, defendendo populações vulnerabilizadas nos espaços de pactuação intergestores. ONGs, lideranças comunitárias e associações religiosas têm atuado como pontes entre os territórios e os serviços especializados, sobretudo facilitando o transporte e acolhimento cultural, apoiando mediações linguísticas e organizando agendas comunitárias de cuidado e produzindo diagnósticos e dados sobre desigualdade de acesso – especialmente em territórios negros, indígenas e ribeirinhos.


No imaginário dos usuários, saúde é mais do que acesso a procedimentos: é vínculo, presença e reconhecimento. A espera prolongada, a judicialização como último recurso e a necessidade de “conhecer alguém lá dentro” para obter atendimento revelam a lógica de um sistema que, em vez de universal, é seletivo e tecnocrático. Esse padrão não apenas limita o acesso, mas reforça desigualdades históricas, especialmente na Amazônia, onde as condições geográficas, culturais e socioeconômicas tornam o cuidado mais complexo.

Gestão pela ausência do Estado

O estudo também evidencia que, nos estados amazônicos, há uma desconexão entre diferentes níveis de gestão e entre Atenção Primária e Atenção Especializada, resultando em incomunicabilidade institucional e rupturas nos itinerários terapêuticos. Por exemplo: o hospital não comunica com a Unidade Básica de Saúde, que não comunica com os serviços de Urgência e Emergência. Essa fragmentação é agravada pela “gestão pela ausência” — estratégia na qual o poder público se retira da pactuação e do financiamento, naturalizando a precarização como efeito inevitável da falta de recursos.

Essa racionalidade transforma a clínica em protocolo, o sofrimento em estatística e o corpo em dado administrativo. Governa-se pela escassez, substituindo o direito universal ao cuidado por deferimentos técnicos que decidem quem será atendido, quando e como. Na prática, isso significa que a saúde pública se estrutura sobre a exclusão silenciosa, enquanto os sujeitos demandam reconhecimento, escuta e reparação histórica.

Diante da COP-30, a questão central que emerge é: como integrar os saberes da floresta à produção do cuidado especializado para, simultaneamente, proteger a saúde das populações e a integridade ambiental? A hegemonia do saber biomédico, sem diálogo com conhecimentos tradicionais, reduz a capacidade de resposta do sistema de saúde e ignora soluções já presentes nos territórios.

Práticas insurgentes mostram que é possível construir políticas públicas “com” e não apenas “para” os usuários, valorizando a experiência vivida como critério de legitimidade e investindo em formação intercultural. Reconhecer a legitimidade dos saberes tradicionais na Atenção Especializada não é concessão simbólica: é passo essencial para redes de cuidado mais justas, potentes e enraizadas na realidade amazônica.

A COP-30, ao trazer a Amazônia para o centro das discussões internacionais, oferece uma oportunidade para repensar a política de saúde na região, enfrentando a desconexão entre cuidado e território e abrindo espaço para um diálogo efetivo entre ciência e saberes ancestrais. Iniciativas populares, ainda que pontuais, revelam potências para uma política pública de saúde que reconheça os saberes tradicionais como parte legítima da rede de cuidados especializados.

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OUTRAS PALAVRAS

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Há 50 anos, o Vietnã vencia o Império

    Outras Palavras publica série de textos sobre um acontecimento crucial do século XX. Análises abrangem a luta contra potências coloniais e os caminhos trilhados pela revolução até hoje. Parte um: a vitória sobre a dominação francesa, em 1954

“A própria existência do Vietnã como um país independente e a sobrevivência dos vietnamitas como um povo diferente devem ser vistas como um milagre, para o qual muitos historiadores tentaram, inutilmente, encontrar uma explicação satisfatória” (Joseph Buttinger, historiador austríaco) [1].

“A guerra do Vietnã é um fenômeno típico do século XX: em meio a um cenário de violência total, a miséria e a grandeza humana formam uma unidade indivisível. Nem toda a bibliografia sobre o conflito conseguirá dar a inteira dimensão do padecimento de um povo que ‘fez a história’, sobretudo porque o Terceiro Mundo é atualmente o centro dinâmico da história. Milhões de pessoas simples mobilizaram-se para enfrentar a mais sofisticada tecnologia de morte já criada, e venceram” (Paulo Fagundes Visentini) [2].


“Ação militar sem política é como árvore sem raízes (Ho Chi Minh)” [3].

Saigon foi o epicentro do mundo naquele 30 de abril de 1975. No final da manhã, tanques do Exército de Libertação Nacional irromperam o portão principal do palácio presidencial e soldados hastearam a bandeira que simbolizava a reunificação do Vietnã. Uma nova história estaria para ser contada, pondo fim ao conflito que movimentou corações e mentes ao longo de boa parte da Guerra Fria. Mas como compreender um embate ferrenho, traumático e mortífero que durou três décadas – e que envolveu alternância de agressores imperialistas (França e Estados Unidos), releituras estratégicas, movimentos desencadeados pela confrontação capitalismo versus comunismo (ou EUA versus União Soviética) e a genialidade de duas figuras vietnamitas?

Talvez uma das melhores formas de análise esteja no enquadramento do evento em uma dimensão híbrida, na qual um conjunto considerável de variáveis se sobrepõem e, às vezes de forma contraditória, se entrelaçam. Desse modo, é razoável pensá-lo como uma mola, cujos agentes propulsores reflitam as duas questões principais daquele contexto: a própria Guerra Fria, lançada pelo presidente Harry Truman em 1947, e os inúmeros movimentos de libertação nacional que se espalhavam sobretudo pelas colônias afroasiáticas. Em consonância com o latente desejo (e projeto) pela independência vietnamita, o foco revolucionário emanado no Vietnã acabou se transformando em uma espécie de guerra civil entre o Norte e o Sul, já que os deliberados instintos capitalistas hegemônicos não aceitavam a sua capitulação naquela fachada do Sudeste Asiático, fator que levou à cooptação de elites sul-vietnamitas em prol dos interesses imperialistas. Não é à toa que os comunistas do Norte, liderados por Ho Chi Minh, sempre trataram os sul-vietnamitas que aderiram à causa alheia como “marionetes” ou “fantoches”.

Quanto à conjuntura delineada pela Guerra Fria, o conflito acabou envolvendo direta e/ou indiretamente a República Popular da China (após 1949), a União Soviética, a Coreia do Norte (após 1953) e Cuba, aliados pró-Hanói; Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Filipinas, Tailândia e Taiwan, aliados pró-Saigon; além dos vizinhos Laos e Camboja, parte da Indochina francesa que também acabou obtendo a sua independência. Mas é preciso ir além. Como bem analisou Eric Hobsbawm, o envolvimento estadunidense numa “guerra condenada, contra a qual seus aliados, os neutros e até a URSS os tinham avisado, é quase impossível compreender, a não ser como parte daquela densa nuvem de incompreensão, confusão e paranoia dentro da qual os principais atores da Guerra Fria tateavam o caminho”. E continua, lembrando que o evento “dividiu e desmoralizou a nação, em meio a cenas televisadas de motins e manifestações contra a guerra; destruiu um presidente americano; levou a uma derrota e retirada universalmente previstas após dez anos (1965-75); e, o que interessa mais, demonstrou o isolamento dos EUA” [4].

Entretanto, a análise ainda requer a inserção de dois elementos entranhados no conflito, como será visto no capítulo 2: a adoção de uma articulada e eficiente estratégia de guerrilha, desafiadora a qualquer tipo de guerra convencional, e a questão agrária, tão bem compreendida e trabalhada pelas forças revolucionárias, variáveis nevrálgicas para compreender a vitória do Vietnã pela representatividade da guerra como expressão nacional de uma revolução social, como nos explica Visentini [5].

“É correto que o povo vietnamita possuía larga tradição de resistência nacional e foi capaz de sacrifícios sobre-humanos. Mas isso é insuficiente para conduzir à vitória uma pequena nação camponesa contra uma superpotência militar, industrial e tecnológica. Sem um processo de transformação social que liberasse as potencialidades contidas na maioria da população e uma organização política à altura de tão complexa tarefa histórica, pouco poderia ter sido feito” [6].

Também não é possível falar sobre o conturbado e traumático processo de independência vietnamita sem a devida referência a duas figuras extremamente relevantes. A primeira delas é Ho Chi Minh (foto 1), tido como o pai da pátria. Nascido em 19 de maio de 1890 com o nome de Nguyen Sinh Cung, na aldeia de Kim Lien, norte do protetorado francês de Anam, ainda na adolescência desenvolveu um sentimento contra a administração francesa da Indochina [7]. Aos 19 anos, foi expulso da escola por distribuir jornais anticolonialistas e, dois anos mais tarde, embarcou na tripulação de um navio mercante francês como ajudante de cozinha e viajou pelo mundo – com uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro. No retorno, ficou na França e buscou, sem êxito, a independência vietnamita na Conferência de Versalhes, em 1919, que reorganizou o sistema internacional após o fim da Primeira Grande Guerra.


Foto 1: Homenagem a Ho Chi Minh em mural de pastilha colorida. Fonte: Pavilhão nacional ao lado do Rio Ben Hai (10 jan. 2024)

Em 1920, filiou-se ao Partido Comunista Francês (PCF) e assistiu ao Congresso do Partido Socialista Francês realizado em Tours. Contatos com a esquerda francesa, o estudo de economia política e o cotidiano com a desigualdade social de uma sociedade hierárquica e industrializada no coração da Europa ampliaram as suas perspectivas e moldaram um pensamento revolucionário. Tornou-se jornalista profissional e passou a escrever para periódicos de esquerda sobre a exploração vietnamita pelos franceses. Entre 1923 e 1924, ficou em Moscou, onde participou do V Congresso da Internacional Comunista como delegado do PCF e estudou na Universidade dos Trabalhadores Orientais, tendo contato com os métodos revolucionários defendidos por Lênin.

Por suas qualidades de liderança, começou a receber ajuda monetária de Moscou e a viajar constantemente para Paris. Em 1926, fundou a Associação da Juventude Revolucionária Vietnamita em Cantão, na China. Em 1930, organizou o Partido Comunista do Vietnã (PCV) em um encontro secreto em Hong Kong, rebatizado Partido Comunista da Indochina (PCI) um ano mais tarde, quando traçou os objetivos da organização com a elaboração de um plano revolucionário para derrubar o regime francês na Indochina. Ademais, foi nomeado pela União Soviética como chefe do Departamento Comunista do Comintern para o Extremo Oriente, ou seja, o embaixador oficial de Moscou perante os movimentos comunistas em todo o Sudeste Asiático.

Preso pela polícia colonial britânica de Hong Kong, ficou detido entre 1931 e 1932, mas transferido para um hospital penitenciário por causa de uma tuberculose. Solto, viajou para Cingapura, onde foi detido novamente e enviado a Hong Kong. Em 1933, a imprensa britânica noticiou a morte de Ho no cárcere, mas ele havia conseguido escapar clandestinamente com a ajuda de um inglês anti-imperialista. A polícia secreta francesa convenceu-se de seu desaparecimento. Ledo engano: o vietnamita retornara a Moscou. Com habilidade e mesmo à distância, continuou trabalhando nas atividades do PCI, além de ter sido enviado ao sul da China em meio à guerra civil naquele país. Foi lá, em um campo de treinamento militar, que conheceu Vo Nguyen Giap, que se tornaria seu grande companheiro de luta.

Detido pela terceira vez, e com a saúde abalada, convenceu-se de que o movimento revolucionário em gestação dependeria do fim e das consequências da Segunda Guerra. Solto, retornou ao Vietnã, onde ficou sediado em Bac Bo, uma zona de cavernas não muito distante da fronteira com a China. Viu-se isolado e sem suporte material – sem contato com Mao Tsé-Tung, envolvido na guerra contra os japoneses, e com as lideranças soviéticas, empenhadas em derrotar o nazismo na Europa. Em 1941 fundou o Viet Minh, grande e dinâmico movimento de libertação nacional. Entre 1941 e 1942, foi preso novamente, agora na China governada pelo Kuomitang de Chiang-Kai Shek, pois entrara no país disfarçado de repórter chinês.

Solto por consentir ajudar no trabalho da Liga Revolucionária do Vietnã, mesmo que contrariado, retornou ao Vietnã em março de 1944 para se juntar novamente ao movimento que fundara três anos antes. Em agosto de 1945, com a saída dos japoneses, o Viet Minh tomou o poder, e Ho Chi Minh declarou a independência da República Democrática do Vietnã, tornando-se seu primeiro presidente. Os franceses reocuparam a sua colônia e foram derrotados em 1954, mas os Estados Unidos, irredutíveis com um Vietnã comunista, entraram diretamente na guerra contra o Viet Minh desde então. A partir de 19 de dezembro de 1954, Ho Chi Minh, como presidente e líder do país, passou a viver em uma casa simples de estilo vietnamita adjacente a uma outra casa de alvenaria que foi transformada na sede da presidência, em um lindo complexo ornado por um lago e um amplo bosque tropical, na zona norte de Hanói. Foi ali que ele assinou o decreto que instituiu a Constituição da República Democrática do Vietnã, em 1º de janeiro de 1960.

Na década de 1960, Ho Chi Minh desempenhou um papel primordial, embora mais distante da frente de batalha por causa da idade. Com mensagens enviadas para todo o país, seu carisma, sabedoria e senso de oportunidade mantiveram o espírito nacionalista entre grande parte da população vietnamita, não deixando apagar a chama revolucionária que tomou conta da Indochina desde o advento do Viet Minh – e ampliada com a fundação da Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul (FNL), em dezembro de 1960. Ademais, direcionou grande parte de sua energia ao futuro do país, elaborando e estimulando políticas públicas centradas na implantação de um sistema de ensino universal. Assim, edificou um conjunto de valores e ideias capazes de introduzir na mentalidade da sociedade um processo de desenvolvimento ancorado na educação, juntamente com outros quatro pilares (virtude, corpo, mente e espírito) para servir o movimento revolucionário e trabalhar na construção da nação.

Fotos 2-4 – Ho Chi Minh em seu esforço moral, simbólico e espiritual pela reunificação do Vietnã. Fonte: Memorial Ho Chi Minh (10 jan. 2024)

10 maio 1958.
Maio 1956.
20 out. 1960.

Foi nessas circunstâncias que Ho Chi Minh também entrelaçou a luta anti-imperialista com o contexto mundial da Guerra Fria, buscando convencer a opinião pública internacional a condenar a brutal agressão estadunidense ao Vietnã, tida como imoral, covarde e injusta. Viajou pelo mundo (visitou 29 países desde que seu tornou presidente) e recebeu jornalistas, diplomatas e políticos no Vietnã do Norte para mostrar in loco a extensão dos bombardeios inimigos e a consequente destruição de alvos civis. Ho Chi Minh não viveu para ver o fim da guerra, e a reunificação do país sob o nome de República Socialista do Vietnã, declarada oficialmente em 2 de julho de 1976. O grande pai da pátria veio a falecer em pleno conflito, em 2 de setembro de 1969, em Hanói, de ataque cardíaco, aos 79 anos. Declarado luto oficial, as forças revolucionárias realizaram um cessar-fogo de três dias para reverenciar o grande líder. Ho Chi Minh deixou um testamento defendendo o prosseguimento do conflito até a vitória final e conclamando a reunificação do movimento comunista internacional.

Convicto da libertação vietnamita, três anos antes de sua morte Ho Chi Minh havia afirmado, em uma entrevista: “Quando a vitória chegar, nosso povo reconstruirá o país” [8]. A cidade de Saigon foi rebatizada com o nome de Ho Chi Minh, e seu corpo jaz embalsamado em um lindo mausoléu situado na capital vietnamita. A sua figura é onipresente em todo o país: nas cédulas, nos cartazes pelas ruas, nos livros escolares. Museus, estátuas, bustos e quadros referenciam o principal artífice da independência nacional. A mensagem estampada no jardim adjacente ao seu mausoléu sintetiza o espírito devocional de sua liderança e carisma: “O grande presidente Ho Chi Minh vive para sempre em nossa trajetória.”

A outra figura é o já citado general Vo Nguyen Giap (foto 5). Nascido na comuna de Loc Thuy, província de Quang Binh, em 25 de agosto de 1911, atuou como membro do Politburo, secretário da Comissão Militar Central, deputado, primeiro-ministro, ministro da Defesa, comandante-em-chefe do Exército Popular do Vietnã e membro da Assembleia Nacional. Chamado pelo povo vietnamita de “general do povo” e “irmão mais velho do Exército Popular do Vietnã”, foi o braço direito de Ho Chi Minh e o principal estrategista militar das forças revolucionárias que lutaram contra o imperialismo, cuja expertise foi reconhecida até mesmo pelos ocidentais. É tido como o grande responsável pela concepção do exército do Viet Minh, dotando-o com três organizações distintas, embora complementares: regulares, regionais e populares. Deixou a vida pública em 1991 e veio a falecer em 4 de outubro de 2013, aos 102 anos.

Foto 5: Homenagem a Vo Nguyen Giap em mural de pastilha colorida. Fonte: Pavilhão nacional ao lado do Rio Ben Hai (10 jan. 2024)

Esta série, composta por seis capítulos, busca compreender o conflito na perspectiva vietnamita, no que for possível, ajustando a lente para a visão do país que resistiu, enfrentou e expulsou o imperialismo de seu território. No atual mundo dos símbolos e das narrativas não é pouca coisa, primeiramente, se atentar para o fato de que, no Vietnã, as crianças aprendem na escola que o fenômeno histórico, a partir de 1954, foi a “Guerra Americana”, e não a “Guerra do Vietnã”, como determinado pela historiografia ocidental. Assim, não se trata simplesmente de adotar uma leitura político-governamental ou “chapa-branca” deste conflito de envergadura, mas de praticar um esforço dialético para buscar um outro ângulo de um evento que, como já dito, movimentou corações e mentes ao longo de boa parte da Guerra Fria.

Além da leitura de algumas obras escritas no Brasil a respeito, a série conta com farto material coletado em duas visitas ao Vietnã (2020 e 2023-2024), totalizando 41 dias de viagem pelo país, de norte a sul [9]. Um privilégio e uma grande oportunidade para mergulhar nos traumas e nas virtudes de um povo que merece o respeito e a admiração de qualquer ser humano de espírito mais elevado.

O primeiro capítulo mostra um panorama da formação e práxis dos movimentos de libertação nacional que culminaram com o rompimento dos grilhões imperialistas franceses em 1954. O segundo retrata a entrada direta dos EUA na guerra e discute, entre outros pontos, os embates na chamada Zona Desmilitarizada (DMZ) e a relevância estratégica da Trilha Ho Chi Minh, ponto-chave de ligação física (e espiritual) entre o norte e o sul do país. O terceiro explicita, em números e imagens, a brutalidade da agressão estadunidense, que despejou centenas de milhares de bombas e de toneladas de armas químicas em quase todas as partes do Vietnã, causando um trauma que perdura até hoje. O quarto é dedicado ao importantíssimo e fundamental papel da mulher vietnamita no conflito, caracterizado pelo “Movimento das Três Responsabilidades”, baseado na produção, combate e família como suporte do norte à luta no sul. O quinto retrata os dois últimos anos da guerra, da retirada do apoio militar dos Estados Unidos à queda de Saigon, em 30 de abril de 1975, destacando a estratégia desenhada para a ofensiva final que culminou com a tomada do palácio presidencial na capital sul-vietnamita e a proclamação da República Socialista do Vietnã, em 1976. O sexto e último capítulo busca mostrar, em linhas gerais, os caminhos trilhados após o êxito da revolução, com idas e vindas, erros e acertos, avanços e percalços.

A nação, reunificada, mergulhou em um profundo e hercúleo trabalho de reconstrução, em meio aos traumas, contradições (inclusive com seus vizinhos China, Laos e Camboja) e feridas abertas por três décadas de resistência e conflito armado. Mas a inserção no comércio internacional e as reformas econômicas adotadas pelo Partido Comunista desde 1986, batizadas de Doi Moi (renovação), têm resultado em altas taxas de crescimento e implantação de infraestrutura em meio a um processo planejado, em pleno andamento, de urbanização e modernização ao estilo chinês – mas resguardando as peculiaridades socioculturais e as potencialidades do país. E, obviamente, gerando as suas próprias contradições.

De 1990 a 2022, o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) do Vietnã foi de 6,7% ao ano, bem acima dos 2,9% da média mundial e dos 2,1% do Brasil. Entre 1992 e 2020, a população do país cresceu 38,5% (de 69,8 milhões para 96,7 milhões), enquanto o número de pessoas na pobreza extrema (renda diária inferior a USD 2,15, em valores de 2017, ajustados pela Paridade do Poder de Compra) e a taxa de pobreza diminuíram, respectivamente, de 31,5 milhões para 600 mil e de 45,1% para 0,7% [10]. Atualmente, o Vietnã recebe turistas de todas as partes do mundo interessados não apenas em sua história recente, mas também em sua rica cultura, vilas e cidades antigas (Hoi An, Hue), centros urbanos dinâmicos (Hanói, Ho Chi Minh, Danang) e belezas naturais estonteantes (praias, baías de águas cristalinas pontilhadas por formações rochosas, cavernas, montanhas, vales fluviais entremeados por imensos arrozais).

Para alguns analistas, o Vietnã entrou no século XXI na condição de “tigre asiático de terceira geração” [11]. Foi nesse espírito que Lê Mai, ex-vice-ministro das Relações Exteriores, cunhou uma frase famosa, no início dos anos 1990, que simbolizou, em certa medida, uma superação parcial do passado conflituoso. “O Vietnã não é uma guerra, é um país” [12]. E como ficou o inconsciente coletivo da sociedade vietnamita após a guerra? Questão demasiado complexa, mas, como disse um rapaz perto dos 30 anos, guia de turismo em Ho Chi Minh, ao ser perguntado sobre esse sentimento: “Nós perdoamos, mas jamais esqueceremos.”


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Capítulo 1 | Da Indochina francesa ao Acordo de Genebra (1858-1954)

O saguão principal do belíssimo prédio do Correio Central de Ho Chi Minh, maior cidade do Vietnã, ostenta 10 relógios, cinco de cada lado, pendurados em paredes ornadas por pinturas de mapas das linhas telegráficas do Delta do Mekong e da então cidade de Saigon e arredores. Cada um indica o horário de lugares em diferentes continentes: Europa (Paris, Londres e Moscou); Américas (Washington e Califórnia); África (Pretória); Oceania (Canberra) e Ásia (Beijing, Tóquio e Seul). Esta preciosidade decorativa do portentoso prédio em estilo art déco, construído em meados do século XIX quando a cidade de Ho Chi Minh ainda se chamava Saigon, claramente denota a divisão mundial imposta pelos imperialismos europeus daquele contexto. Afinal, o Vietnã, como parte da Indochina (juntamente com Laos e Camboja), compunha uma peça fundamental na rede comercial do imperialismo francês como fornecedor de matérias-primas baratas em situação geográfica privilegiada, com larga faixa litorânea entre a China e a Índia.

Até a fundação da República Democrática do Vietnã (RDV), em 2 de setembro de 1945, foi um longo período de resistência do povo vietnamita desde que forças imperialistas francesas invadiram o país, em 1858, com apoio do Império Espanhol. Várias revoltas eclodiram durante a segunda metade do século XIX, seguidas de movimentos de resistência no início do século XX impetrados por jornalistas, advogados e intelectuais que reivindicavam liberdade de imprensa e democracia, muitas vezes com atentados, e culminando com a fundação do Partido Nacionalista do Vietnã, ocorrido na capital Hanói, em 1927. Entretanto, a ausência de uma ideologia que pudesse agregar forças e de uma liderança competente só foram supridas em um movimento revolucionário pela fundação do Partido Comunista do Vietnã (PCV), concretizado em fevereiro de 1930 – e, curiosamente, em Hong Kong –, com a presença ilustre de Ho Chi Minh. A tarefa era hercúlea, mas em dois anos o PCV – que seria renomeado como Partido Comunista da Indochina, mas que de certa forma se confundia com o PCV por causa da relevância das ações de resistência em solo vietnamita – foi capaz de estruturar a sua organização partidária em comitês e de infiltrar a sua ideologia e a luta anti-imperialista pelas zonas rurais ostentando o entrelaçamento da foice e do martelo como símbolo principal.

Em 1935, a jornalista francesa Andrée Viollis publicou o livro SOS Indochina, escrito a partir de suas observações da visita oficial que fizera ao Vietnã quatro anos antes. Naquela oportunidade, Viollis também conversou com muitos presos políticos e acabou oferecendo um relato devastador da realidade do cotidiano na colônia francesa, que enfrentava a resistência com brutal repressão e sessões frequentes de tortura.

Em julho de 1936, a Conferência do Comitê Central do PCV foi realizada para estabelecer a Frente Unificada Anti-imperialista da Indochina com a coalização de todas as forças patrióticas, progressistas e democráticas e a introdução de formas públicas, secretas, legais e ilegais na luta pelos direitos de liberdade, pelos meios de sobrevivência e pela democracia, seja no âmbito parlamentar, por meio da imprensa ou nas zonas rurais. A impressão maciça de livros e jornais – Bao Ban Dan (jornal Amigos do Povo), Bao Dan Tien (jornal Avanço Popular) e Nhanh Lua (jornal Galho Ascendente) são alguns exemplos – foi extremamente relevante para auxiliar a organização de um movimento de vanguarda com ações revolucionárias. Entre 1936 e 1939, o movimento democrático se espalhou pelo país, forçando os colonialistas franceses a realizarem concessões para algumas demandas nas quais as massas estavam engajadas, tornando-se uma força política revolucionária. Este foi o segundo exercício partidário para preparar todas as forças para a Revolução de Agosto de 1945.

Simultaneamente, emergiam os movimentos que pegariam em armas para derrubar o inimigo. Empunhando martelos, foices, lanças e poucas armas de fogo, os Guardas Vermelhos foram a primeira força armada do PCV, que tinha no horizonte a defesa do povo e do governo revolucionário, mantendo a sua segurança ao mesmo tempo em que combatia as tropas francesas. Seus membros foram recrutados de várias instituições, como Agricultores Vermelhos, Libertação das Mulheres e Liga da Juventude Comunista, e eram organizados em esquadrões e pelotões sob as diretrizes do partido.

Munida com bombas, granadas de cimento, lanças e armas de fogo rudimentares e formada rapidamente em 1939 em muitas comunas, fábricas e firmas (cada uma com seus próprios esquadrões e pelotões) do sul do país, a Guerrilha Nam Ky foi fundamental em muitas áreas rurais e lugares próximos de Saigon, evitando com que os franceses desmantelassem as bases de resistência. O Exército de Salvação Nacional foi uma escolta guerrilheira que operou na base de Bac Son-Vu Nhai entre fevereiro de 1941 e maio de 1945 em três pelotões, totalizando 103 membros. Pela superação de toda sorte de dificuldades, tornou-se a principal força na luta contra o inimigo, proteção das bases revolucionárias e incremento de movimentos revolucionários locais.

O movimento Viet Minh (1941-1945) personifica a construção de uma solidariedade nacional

Um fato novo seria crucial para o destino do Vietnã: a invasão japonesa do Sudeste Asiático, em setembro de 1940, acarretando o enfraquecimento gradativo das forças francesas em toda a Indochina. Em maio de 1941, o 8º Comitê do PCV, sediado em Pac Bo (foto 1), indicou como tarefa prioritária para a libertação nacional o estabelecimento da Aliança do Vietnã pela Independência (popularmente chamada de Viet Minh), cujo objetivo seria juntar todas as forças patrióticas para a construção de uma solidariedade nacional em prol da independência. Até março de 1945, o Viet Minh construiu forças políticas, forças armadas e bases revolucionárias, além de preparar revoltas armadas menores para direcionar rebeliões mais amplas de tomada de poder. Entraram em circulação novas publicações de apelo revolucionário, como os jornais O Vietnã IndependenteHistória do nosso PaísA Bandeira da LibertaçãoA Perseguição do Inimigo e A Salvação Nacional (foto 2), além de panfletos de convocação à luta armada (foto 3).

Foto 1 – Local do 8º Comitê do PCV, que idealizou o movimento Viet Minh (maio de 1941)
Foto 2 – Jornal “A Salvação Nacional”, edição da primavera de 1945. Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

Em 22 de dezembro de 1944, foi criada a Unidade de Propagação do Exército de Libertação, mediante criteriosa seleção de soldados leais de grupos guerrilheiros e de outros que estavam treinando no exterior. Comandada pelo general Vo Nguyen Giap, a ideia era combinar forças políticas e militares para facilitar as operações com apoio popular nas investidas contra o inimigo, em um estilo de luta com ações rápidas, secretas e inesperadas. Imediatamente após a sua fundação, atacou e destruiu as bases inimigas Phai Khat e Na Ngan em Cao Bang, ampliando consideravelmente as suas forças em várias companhias.

Foto 3 – Convocação do Viet Minh para retomada da luta armada (1945). Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

Entre 1944 e 1945, tanto as forças japonesas quanto as francesas obrigaram o povo vietnamita, como esforço de guerra, a substituir plantações de arroz por plantas fibrosas e oleaginosas, como juta, cânhamo, algodão e rícino para utilização como matéria-prima de alimentação e combustível. Como resultado, mais de dois milhões de pessoas morreram de fome. Revoltado com a situação, o PCV propôs o slogan “Destrua celeiros para solucionar a fome” e lançou o movimento de salvação nacional contra o fascismo japonês. Respondendo ao chamado, vietnamitas em todo o país se rebelaram para destruir celeiros japoneses, minimizando rapidamente a questão da fome, pois a produção de arroz seria reativada para fins domésticos.

Com o estágio final da Segunda Guerra Mundial, as condições para a tomada do poder cresceram entre o final de 1944 e o início de 1945 como consequência do enfraquecimento do Eixo no enfrentamento aos Aliados. Em 9 de março de 1945, o Japão destituiu o governo francês, abrindo a oportunidade para o Partido Comunista da Indochina convocar compatriotas por todo o país a se engajar no que chamou de “grande movimento de salvação nacional contra os fascistas japoneses”. Identificado como inimigo da Indochina, emergiram vários movimentos contra a presença japonesa.

No mesmo mês foi formada a Guerrilha Ba To, organizada pelo Partido Comunista da Indochina para operar no combate aos japoneses na Trilha Truong Son, que reunia uma vasta rede de caminhos entre florestas e montanhas para conectar o norte ao sul do Vietnã, muitas vezes penetrando nos vizinhos Laos e Camboja [1]. Chegou a contar com aproximadamente duas mil tropas, sendo a principal força de apoio aos movimentos populares de retomada do poder na província de Quang Ngai. No final de abril, um grande número de comunas, distritos e cidades havia sido libertado. Em maio de 1945, uma ofensiva da Unidade de Propagação do Exército de Libertação na cidade de Thai Nguyen demarcou o início de revoltas gerais para a tomada de poder em todo o país. Sua junção com o Exército de Salvação Nacional e outras forças deu origem ao Exército de Libertação do Vietnã. A base de Tan Trao (província de Tuyen Quang) foi escolhida como a capital da Zona de Libertação, onde Ho Chi Minh se estabeleceu e trabalharia durante todo o período de resistência contra o colonialismo francês, até 1954, com importantes decisões para a consecução da Revolução Vietnamita.

Com a rendição japonesa em 12 de agosto, várias rebeliões ocorreram por todo o país e, no dia seguinte, a Conferência Nacional do PCV decidiu estabelecer um governo provisório liderado por Ho Chi Minh e editar a ordem militar nº 1, conclamando uma revolta geral para tomar o poder em todo o Vietnã. Após o ato, o Congresso Nacional foi instalado e aprovou as dez principais políticas para a frente do Viet Minh, dentre as quais o Comitê de Liberação Nacional, o governo provisório comandado por Ho Chi Minh e as bandeiras e hino do Vietnã. Em 16 de agosto, o Exército de Libertação marchou a partir de Tan Trao, iniciando uma série de revoltas para a tomada do poder.

Foto 4 – Pintura alusiva à festa de reunificação do Vietnã. Fonte: Museu de Can Tho (30 jan. 2020)

No dia 19, dezenas de milhares de pessoas em Hanói saíram as ruas e, muitas delas armadas, ocuparam as representações do Japão e da França (foto 4). Ao longo de duas semanas revoltas se sucederam em várias cidades – como em Hue e Saigon –, estrangulando a ocupação japonesa e o regime colonial. Em 30 de agosto, o imperador Bao Dai anunciou a sua abdicação [2]. Era o fim do feudalismo e do colonialismo no Vietnã. Em 2 de setembro de 1945, na Praça Ba Dinh, em Hanói, o presidente Ho Chi Minh, em nome do governo provisório, leu a Declaração de Independência, documento que marca o nascimento da República Democrática do Vietnã (foto 5).

Foto 5 – Leitura da Declaração de Independência na Praça Ba Dinh, em 2 de setembro de 1945. Fonte: Museu de Can Tho (30 jan. 2020)

No dia seguinte houve a primeira reunião do governo provisório, na qual Ho Chi Minh propôs que fosse organizada uma eleição geral para a composição da Assembleia Nacional e de um governo eleito.

Para salvar o país e resguardar a independência nacional: nova ofensiva contra o imperialismo francês (1945-1954)

A República Democrática do Vietnã, declarada em 2 de setembro de 1945, foi resultado do sucesso de monumental empreitada revolucionária, mas nasceu em um ambiente de muitas dificuldades: economia arrasada, baixíssimo orçamento, campos desertos, fome crescente e alta taxa de analfabetismo. O governo provisório liderado pelo presidente Ho Chi Minh formulou muitas políticas para estabelecer o governo revolucionário do nível central ao local, gradualmente restaurar a economia do país, ampliar o Exército e erradicar o analfabetismo. Uma ampla campanha nacional de mobilização pelo voto foi colocada em execução para mobilizar os cidadãos a gozar de seu direito a escolher o novo governo.

Ademais, o imperialismo europeu não estava preparado para acatar a declaração de independência do Vietnã, cuja mensagem ecoara pela Ásia e África. Tropas britânicas assumiram o comando do país – a França estava reorganizando as suas Forças Armadas após a ocupação nazista – e sufocaram a independência recém-proclamada. Nesse contexto, cabe destacar que o governo precisou negociar com muitas forças militares estrangeiras que haviam adentrado o Vietnã. Do paralelo 16 ao norte, constavam cerca de 200 mil homens enviados por Chiang-Kai Shek, então presidente da República da China, com o pretexto de auxiliar os Aliados a derrotar o Japão. Do paralelo 16 ao sul, havia 60 mil soldados japoneses, além de 20 mil tropas britânicas que facilitaram o reingresso de forças francesas – que abriram fogo em Saigon em 23 de setembro de 1945, fato que deu início a uma segunda invasão do Vietnã. Diante de muitos inimigos e com o destino nacional em risco, o governo provisório desenvolveu flexibilidade, inteligência e determinação com as forças estrangeiras para proteger o seu novo status de independência nacional.

Um acordo firmado em março de 1946 entre Ho Chi Minh e o representante francês Jean Sainteny “acatava a substituição dos chineses pelos franceses em troca do reconhecimento, pela França, do Estado livre do Vietnã, no seio da Federação Indochinesa e da União Francesa” [3]. Estava livre, mas não independente, pois o governo francês recusava-se a utilizar a expressão Doc Lap (independência em vietnamita). “Da mesma forma, não quiseram reconhecer de maneira explícita a unidade dos três Ky, como era chamado o conjunto de áreas que compreendia Tonkin, Anã e Conchinchina, outra reivindicação dos tonquineses, considerando que a sorte da Conchinchina, colônia francesa, não podia ser decidida sem intervenção legislativa e autodeterminação local” [4].

Também é preciso ressaltar que a guerra de resistência vietnamita foi travada em simultâneo com a construção do país, transformando-se em uma condição nevrálgica para a vitória militar. Embalados pelo slogan “Emulação patriótica”, o incremento da produção e a implantação de uma economia de autossuficiência sempre foram ações trabalhadas pelo Partido Comunista do Vietnã (PCV), que buscou o desenvolvimento agrícola, industrial, do sistema de transportes, dos correios e financeiro (com a própria emissão de moeda) como suportes materiais à resistência e estabilização das finanças.

O setor cultural também foi extremamente relevante ao longo da guerra de resistência. Com o slogan “Tudo pela vitória”, houve o desenvolvimento de várias atividades, como a organização de exibições, performances e impressão de livros, que buscavam sempre projetar aos vietnamitas a combinação de um sentimento nacional, popular e científico. O campo educacional focou no combate à erradicação do analfabetismo, em todo o país, pelo movimento de “Educação popular”. O partido e o governo não apenas criaram um novo sistema educacional, mas enviaram gestores e estudantes para aprender no exterior e introduzir progressos intelectuais para a reconstrução da nação. Também foram abertos cursos livres para montar um quadro médico em Viet Bac e nas zonas liberadas, atendendo a demandas militares e civis.

Após um grande apelo de mobilização nacional, uma sucessão de batalhas para encurralar as forças francesas

Em 6 de janeiro de 1946, ocorreu a eleição geral, que contou com 90% de participação para a escolha dos 333 deputados e do governo oficial, sob o comando de Ho Chi Minh. No centro e no norte do país a população ainda elegeu os Conselhos Populares nos níveis de província e comuna pelos princípios do sufrágio universal, e os Comitês Administrativos também foram estabelecidos em todos os níveis. Em 9 de novembro de 1946, a Assembleia Nacional aprovou a primeira Constituição da República Democrática do Vietnã, afirmando o direito do povo vietnamita à liberdade e à democracia.

Com a intenção de se impor e dominar o Vietnã mais uma vez, o imperialismo francês incrementou sabotagens para invalidar tratados assinados e exigiu a rendição do povo vietnamita. Recusou-se a implementar os acordos assinados em 6 de março de 1946 e a Convenção Temporária de 14 de setembro do mesmo ano, e estabeleceu, contra os interesses vietnamitas, a “Cochinchina autônoma” no sul do país. Em novembro, as tropas francesas, vindas do desembarque em Danang, atacaram Haiphong e Lang Son, no norte, além de, na capital Hanói, provocar massacre de civis nas ruas Yen Ninh e Hang Bun e atacar o Ministério das Finanças. Em 18 de dezembro, enviaram um ultimato exigindo a dispersão das forças armadas do Vietnã. Em caso contrário, haveria novas ações militares na manhã do dia 20, um domingo.

Em situação de emergência, o PCV decidiu lançar a Resistência Nacional, assinada pelo ministro da Defesa com ordens para que vários campos de batalha fossem abertos em todo o país de forma simultânea às 20h do dia seguinte (sábado, dia 19). No cair da tarde do sábado, Ho Chi Minh conclamou o “Chamamento pela defesa nacional” e apelou para alguma forma de resistência nacional, declarando que “quantas mais concessões forem feitas, mais longe irão os franceses colonialistas”. Para o grande líder vietnamita, “tudo deve ser sacrificado para que não se perca o nosso país, e não retornemos a ser escravos”, exigindo um “grande movimento nacional de resistência de todas as pessoas, de muitas maneiras, por quanto tempo que seja, e no espírito de autor-resiliência” [5].

Depois de frustradas tentativas de conciliação e concessões com a França para resguardar a independência nacional, todas as forças em Hanói abriram fogo pelo Dia Nacional de Resistência, respondendo ao apelo de Ho Chi Minh. Era o início de um autodeclarado movimento de resistência nacional, na qual as Forças Armadas vietnamitas e grupos civis surpreenderam e atacaram o exército francês em várias cidades do país. Na capital Hanói, foram necessários dois meses de luta ininterrupta para evitar que as forças francesas tomassem o poder, com a instalação de inúmeras barricadas pelas vias públicas e o uso intensivo dos “soldados suicidas”, que se jogavam nos tanques franceses com uma bomba em punho (foto 6). A partir desse momento, foram acionadas as forças de resistência para proporcionar o retorno seguro do Comitê Central do PCV e do governo à base de Viet Bac e para a movimentação de armazéns, fábricas e maquinário de combate para os campos de batalha rumo a uma guerra de resistência de longo prazo.

Em outubro de 1947, os franceses empreenderam a marcha Lea, dividindo a sua tropa de elite em três direções com o objetivo de atacar Viet Bac com um movimento de pinça, destruindo rapidamente o principal foco militar de resistência vietnamita. Em resposta, o Comitê Central do PCV elaborou a diretriz para destruir a ofensiva francesa no inverno, estratégia que durou 75 dias e foi capaz de manter a integridade da Viet Bac, frustrando a expectativa francesa de “luta rápida, vitória rápida”.

Foto 6 – Escultura de madeira em homenagem ao “soldado suicida”. Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

Falhadas as táticas em ritmo acelerado, os franceses foram forçados a empreender ataques de longo alcance, dando meia volta para reforçar áreas ocupadas e tomar zonas livres, implementando a política de “usar vietnamitas para lutar com vietnamitas, usar a guerra para florescer guerra”. No processo de invasão do Vietnã e do estabelecimento de um regime linha-dura, além da organização de tribunais e de forças policiais, os franceses construíram rapidamente um sistema prisional em vários níveis (do local ao central), para encarcerar e perseguir soldados revolucionários com o objetivo de aterrorizar a população e prevenir revoltas e rebeliões populares. Mas as precárias condições de encarceramento e brutais formas de tortura – não por acaso o sistema era chamado de “inferno na Terra” – não intimidaram o desejo dos soldados revolucionários detidos de lutar pela independência do país, buscando resiliência e a continuação dos trabalhos, mesmo que em outra situação. O slogan “Transforme a prisão em uma escola revolucionária” fortalecia o movimento de solidariedade com a experiência da redação de documentos políticos e teóricos no interior do cárcere, que posteriormente seriam utilizados em ações de treinamento.

Consciente da conspiração do inimigo, o PCV concentrou-se em desenvolver guerras de guerrilha para destruir os planos franceses. “Ao definir uma estratégia de guerra prolongada, Giap organizava uma guerrilha sistemática que permitiria a passagem progressiva para a constituição de formações capazes de passar à contra-ofensiva geral no momento oportuno” [6]. Desse modo, três campanhas foram pensadas para um avanço gradual: Yen Bai (1948), Song Thao (1949) e Le Hong Phong (1950). Cartilhas foram produzidas para incentivar o alistamento/treinamento militar, além de estimular o incremento da produção (fotos 7-8).

Fotos 7-8 – Cartilhas de incentivo ao alistamento/treinamento militar e incremento da produção (1950-1951) Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

Em particular, a Campanha da Fronteira, em setembro de 1950, contribuiu para mudar o jogo no campo de batalha, pois o Exército vietnamita entrou em uma fase estratégica de contra-atacar o inimigo. O início se deu em Cao Bang, com o objetivo de destruir as guarnições francesas com a entrada do apoio militar dos países socialistas – União Soviética e da própria China, sob comando do Partido Comunista desde a Revolução Maoísta de 1949 –, permitindo a expansão das bases vietnamitas. Mas para que essa estratégia fosse viável, seria necessário deixar livre a fronteira com a China, ao norte. Sob comando do general Giap, foi a mais significativa ação militar vietnamita, com alto valor estratégico. O presidente Ho Chi Minh foi pessoalmente ao teatro de operações, a fim de encorajar os soldados.

A operação perdurou por 29 dias, de forma ininterrupta, resultando na morte de 8 mil soldados inimigos e na liberação de cinco distritos, 12 cidades e 750 km da linha de fronteira, onde viviam cerca de 350 mil pessoas. A base Viet Bac foi expandida e o suporte militar soviético e chinês pôde ser iniciado. Importante ressaltar, ainda, o fato de que o êxito da campanha de certa forma fraturou a política conspiratória francesa e anulou o plano de estabelecer “terras autônomas” para algumas minorias étnicas.

Interessante notar o contexto da Guerra Fria naquele momento, que se alastrava pelo Extremo Oriente. Entre 18 e 30 de janeiro de 1950, tanto China quanto União Soviética já haviam reconhecido a RDV como única representante do povo vietnamita. Em 7 de fevereiro, EUA e Grã-Bretanha, logo seguidos por outros países ocidentais, reconheciam os novos Estados associados do Vietnã, Laos e Camboja. Na França, o Partido Comunista lançava a campanha “paz no Vietnã”, incentivando sabotagens e ações violentas contra os reforços militares franceses. Entretanto, os EUA rapidamente admitiram a necessidade de ajuda militar ao país europeu, concretizada a partir de 30 de junho. Cinco dias depois, a Coreia do Norte invadiu a Coreia do Sul, e o presidente estadunidense Truman decidiu pela intervenção militar.

O Segundo Congresso Nacional do Partido Comunista da Indochina ocorreu entre 11 e 19 de fevereiro de 1951, na província de Tuyen Quang, e decidiu separá-lo, gerando partidos próprios para Vietnã, Laos e Camboja, com plataformas mais adequadas às especificidades da realidade revolucionária de cada país. No Vietnã, Ho Chi Minh e Truong Chinh foram, respectivamente, alçados à condição de presidente e secretário-geral do partido. Do fim de 1951 ao começo de 1953, foram abertas as campanhas do Noroeste e de Hoa Binh, coordenadas pelo Exército Pathet Lao para, assim, arquitetar a Campanha do Alto Laos. Esses movimentos foram capazes de eliminar boa parte da vitalidade e dos meios de guerra do Exército francês, liberando áreas estratégicas e reforçando a base de Viet Bac. Abaixo seguem os dados das principais campanhas vietnamitas, por ordem cronológica:

  • Campanha da Fronteira (06/09 a 14/10 de 1950), em Cao Bang-Lang Son: foi uma vitória estratégica, pois, além da enorme captura de armas e material de guerra, contribuiu para mudar o curso da guerra e proporcionou um salto da organização e direção do Exército do Vietnã. As forças inimigas contaram com 11 batalhões e nove companhias com soldados europeus e africanos.
  • Campanha Hoa Binh (10/12/51 a 23/02/52): sob o comando do general Giap, contou com seis unidades militares e forças locais. Os franceses lutaram com 13 batalhões de infantaria, três batalhões paraquedistas, quatro batalhões de artilharia, um batalhão de blindados, uma companhia de engenharia e um pelotão de tanques. Resultado: cerca de 6 mil soldados inimigos mortos; captura de armas; liberação da área de Hoa Binh-Song Da; manutenção da comunicação entre o Viet Bac e as regiões 3-4 e dispersão dos campos de batalha franceses.
  • Campanha do Alto Laos (13/04 a 18/05 de 1953): conduzida pelo Exército Popular do Vietnã em colaboração com o Exército Pathet Lao em Sam Nua e Xieng Khoang. As forças vietnamitas contaram com três unidades, um regimento e alguns batalhões. Resultado: destruição da Unidade Francesa Lao-Viet; captura de 2.800 soldados franceses; liberação de Sam Nua e parte das províncias de Xieng Khoang e Phung Xa Li; expansão da base de resistência no Laos e a sua conexão com a zona liberada do noroeste vietnamita.
  • Campanha Tay Bac (14/10 a 10/12 de 1952): sob o comando do general Giap, ocorreu no noroeste do país. As forças vietnamitas contaram com três regimentos, um batalhão, nove companhias de morteiros (75mm e120mm), um regimento de engenharia e 11 companhias de soldados locais. As forças francesas foram a campo com oito batalhões e 43 companhias de infantaria, que ganharam o reforço, posteriormente, de nove batalhões de infantaria, um batalhão paraquedista, um batalhão misto, um batalhão de artilharia e outros três batalhões. Resultado: destruição de quatro batalhões e 28 companhias; liberação de uma grande área em zona estratégica; conexão com o Viet Bac e frustração da implantação da “Zona Autônoma do Thai” pela França.

Em meio à Guerra Fria, e disposta a encerrar a resistência a qualquer custo, a França lançou o Plano Navarre, arquitetado e dirigido pelo general Henri Navarre, comandante-em-chefe do Exército Expedicionário Francês na Indochina. Consistia em duas etapas, a serem executadas em 18 meses. A primeira, entre o outono e o inverno de 1953 e a primavera de 1954, abrangia uma estratégia defensiva no norte e outra ofensiva no sul. A segunda, entre o outono e o inverno de 1954, concentraria todas as forças para uma batalha decisiva contra o Viet Minh no norte. O plano foi baseado em maiores esforços orçamentários do governo francês e da ajuda dos Estados Unidos, com tropas, uma grande quantidade de equipamento bélico e a transferência das potentes estratégias de blocos de manobra. Além do incremento financeiro que já vinha ocorrendo desde 1950 (tabela 1), o Exército francês recebeu dos EUA (foto 9), entre 1945 e 1954, nada menos do que 350 aviões, 390 fragatas de combate, 1.400 tanques e veículos armados, 16 mil caminhões, 175 mil armas de fogo e 255 milhões de munições de todos os calibres, dos quais 15 milhões de projéteis de canhão [7].

Foto 9 – Desembarque de aviões de guerra estadunidenses no porto de Saigon (1950). Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

Tabela 1 – Gastos com a guerra de reconquista da Indochina (1950-1954)
(em bilhões de francos)

AnoCusto totalAjuda dos EUA
1950214,5 (80,5%)52 (19,5%)
1951322,8 (83,9%)62 (16,1%)
1952365 (64,6%)200 (35,4%)
1953365 (56,2%)285 (43,8%)
1954196 (26,1%)555 (73,9%)
Total1.463,3 (55,9%)1.154 (44,1%)

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

Em resposta ao plano franco-estadunidense de pacificar o Vietnã em 18 meses, em setembro de 1953 o Politburo decidiu abrir a Campanha Inverno-Primavera 1953-1954, que consistia em estudar e selecionar as fraquezas do inimigo para obrigá-lo a dispersar as suas forças, acelerar a guerra de guerrilha e manter as iniciativas nos campos de batalha. Consequentemente, o Plano Navarre precisou ser ajustado, com a concentração maciça das tropas inimigas em Die Bien Phu, que acabou se configurando como um complexo militar. Em outubro de 1953, tropas regulares do Exército Popular do Vietnã seguiram para lutar nas campanhas Lai (10 a 20 de dezembro de 1953) e do Norte de Tay Nguyen (26 de janeiro a 17 de fevereiro de 1954). Em coordenação com as forças armadas revolucionárias de Laos e Camboja lançaram ofensivas pela Indochina.

As campanhas do Laos Central (29 de janeiro a 13 de fevereiro de 1954) e do Baixo Laos e Nordeste do Camboja (30 de janeiro a abril de 1954) arrasaram com as tropas francesas e expandiram as zonas liberadas. Combinadas com guerras de guerrilha em várias porções do território (Delta do Mekong, Bin-Trien, sul e região central), as campanhas supracitadas dispersaram as forças francesas em várias direções, que ficaram em situação passiva. Resultado: 144.400 soldados inimigos mortos ou capturados vivos, amplo equipamento destruído (224 aviões, 93 canoas, 81 peças de artilharia, 40 locomotivas e 250 caminhões) e o confisco de 30 peças de artilharia e 30.840 armas de todos os tipos.

Diante da situação almejada, o partido e o governo mobilizaram a população para a Campanha Die Bien Phu, que contou com cerca de 55 mil soldados de cinco companhias (inclusive com as suas respectivas unidades de engenharia, transporte, comunicação e médica), 260 mil bombeiros e cerca de 600 carros, 20 mil bicicletas, 11.800 barcos e 27,4 mil toneladas de arroz coletadas pelo Exército. “Todos para a linha de frente, todos pela vitória” foi o slogan elaborado para motivar a ofensiva que marcaria o fim da ocupação francesa no Vietnã. Empreendida entre 13 de março e 7 de maio de 1954, sob comando do general Giap, destruiu o estratégico complexo militar francês e encerrou a sua ocupação imperialista na Indochina.

A ofensiva, que contou com três estágios, foi planejada com a estratégia de “ataque rápido, rápida vitória”, mas alterada para “ataque persistente, avanço estável” por causa do fortalecimento do sistema defensivo inimigo. No primeiro, que durou apenas quatro dias, dois ataques-chave no norte e nordeste (Him Lam e Doc Lap) forçaram a rendição da base de Ban Keo. No segundo, entre 30 de março e 30 de abril, foi atacado o flanco oriental de bases inimigas e tomado o aeroporto Muong Thanh, interrompendo o suporte aéreo francês. No terceiro e último, entre 1º e 7 de maio, a última base francesa no leste foi atacada, cercando a zona de Hong Cum, seguida da arremetida final sobre a sede do complexo militar francês (foto 10).

Foto 10 – Tomada de Die Bien Phu (07 maio 1954), com exposição de uma peça original do complexo militar francês. Fonte: Museu Nacional de História (16 jan. 2024)

A tomada do quartel-general francês, em 7 de maio de 1954, levou o governo francês a assinar o Acordo de Genebra, em 21 de julho, colocando fim à guerra de resistência de nove anos e restaurando a paz, mesmo que temporária, em toda a Indochina – Laos e Camboja há haviam obtido a independência em 1953. Ministros de Grã-Bretanha, EUA, União Soviética e França buscaram elaborar um plano que pudesse levar a uma saída pacífica e, após longa negociação com o Viet Minh, ficaram acordados cinco pontos: a divisão do Vietnã em dois Estados no paralelo 17 (o do norte, governado por Ho Chi Minh, e o do sul, comandado por Ngo Dinh Diem, um ferrenho opositor do comunismo); a retirada total do Exército francês; a evacuação das tropas do Viet Minh do Vietnã do Sul; a permissão para que os vietnamitas pudessem escolher livremente em qual lado gostaria de viver e eleições gerais em todo o país, que deveriam ocorrer até julho de 1946 sob supervisão de uma comissão internacional.

A princípio, os principais líderes do Viet Minh não viram com bons olhos a divisão do país, mas Ho Chi Minh os convenceu de que se tratava de uma situação temporária e que as eleições gerais redundariam na união do Vietnã. E, apesar da relutância do representante francês em aceitar a designação de Diem para governar o sul – considerado incapaz e inseguro pelos europeus –, os EUA mantiveram a sua indicação por ter vivido quatro anos no país e por conta de seu caráter anticomunista. Mas a situação começou a mudar quanto Diem recusou, logo de imediato, as medidas desenhadas por Washington, impondo ações duras que desagradavam os sul-vietnamitas, seus potenciais futuros eleitores.

Um novo capítulo estava para ser escrito naquela parte do mundo, em plena efervescência da Guerra Fria. Afinal, como diz a música El derecho de vivir en paz,do chileno Víctor Jara [8]:

El derecho de vivir
Poeta Ho Chi Minh,
que golpea de Vietnam
a toda la humanidad.
Ningún cañon borrará
el surco de tu arrozal.
El derecho de vivir en paz.

Indochina es el lugar
mas allá del ancho mar,
donde revientan la flor
con genocidio y napalm.
La luna es una explosión
que funde todo el clamor.
El derecho de vivir en paz.

Tio Ho, nuestra canción
es fuego de puro amor,
es palomo palomar
olivo de olivar.
Es el canto universal
cadena que hará triunfar,
el derecho de vivir en paz.


Notas da Introdução:

[1] LLOYD, Dana Ohlmeyer. Ho Chi Minh. São Paulo: Nova Cultural (Coleção Os grandes líderes), 1987, p.30.

[2] VISENTINI, Paulo Fagundes. A Revolução Vietnamita. São Paulo: Editora Unesp, 2007 (Série “Revoluções do Século 20”), p.89, grifos do original.

[3] LLOYD, op. cit., p.34.

[4] HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). 2. ed. 50. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.241.

[5] [6] VISENTINI, op.cit., p.90, grifos do original.

[7] A Indochina francesa era composta, desde meados do século XIX, pelos protetorados do Laos, Camboja, Tonquim e Anam e a colônia da Conchichina. Os três últimos formavam o Vietnã, que havia sido organizado em 1804 por um príncipe da Dinastia Nguyen, das fronteiras com a China ao Golfo do Sião (atual Golfo da Tailândia), totalizando pouco mais de 331 mil km2 de área territorial (pouco menor do que o Mato Grosso do Sul).

[8] LLOYD, op. cit., p.91.

[9] Material iconográfico e historiográfico coletado nos seguintes museus e sítios históricos: Hanói (museus Nacional de História, da Mulher Vietnamita, de História Militar do Vietnã, Ho Chi Minh e de Belas Artes do Vietnã; antiga residência, memorial e mausoléu de Ho Chi Minh); Ho Chi Minh, antiga Saigon (museus de Reminiscências da Guerra, da Cidade de Ho Chi Minh, de Belas Artes e de História; complexo de túneis de Cu Chi e Palácio da Independência); Danang (museus de Danang e Ho Chi Minh); Can Tho (Museu de Can Tho); Hue (Museu Ho Chi Minh); Ninh Binh (Museu de Ninh Binh) e Zona Desmilitarizada (museus DMZ e de Quang Tri, base de Mie Doc, pavilhão nacional no Rio Ben Hai e complexo de túneis de Vinh Moc).

[10] FUCS, José. Crescimento faz Vietnã superar pobreza extrema, jornal O Estado de S. Paulo, Internacional/A13, 18 fev. 2024.

[11] Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong seriam os tigres da primeira geração; Cingapura, Malásia, Tailândia e Indonésia, da segunda.

[12] FUCS, op. cit., Internacional A/12.


Notas do Capítulo 1

[1] Com a entrada dos EUA na guerra, a Trilha Truong Son foi expandida, incrementada e renomeada Trilha Presidente Ho Chi Minh, sendo de fundamental importância para a vitória vietnamita, como será visto no capítulo 2.

[2] Bao Dai tornou-se imperador do Vietnã em 1925, após a morte do pai, mas com poderes limitados pelo imperialismo francês. Com a expulsão dos franceses pelos japoneses durante a Segunda Guerra, foi forçado a declarar a independência do país, fato que não se concretizou por causa da posterior derrota nipônica. Assim, foi persuadido por Ho Chi Minh a abdicar em 25 de agosto de 1945, tornando-se “conselheiro supremo” do novo governo instituído em Hanói. Por causa da instabilidade política, foi enviado para representar o país em Hong Kong e na China, mas, aliciado pelos franceses, retornou ao Vietnã em 1949 como chefe de Estado, e não como imperador. Desinteressado pelas questões vietnamitas, Bao Dai se transferiu para a França, mas os franceses, agora com apoio dos EUA, o mantiveram como representante oficial do governo do Vietnã do Sul. Com a paz estabelecida pelo Acordo de Genebra, mudou-se novamente para Paris e indicou o nacionalista Dinh Dien como primeiro-ministro. Com a contestada derrota para Dien nas eleições fraudulentas de 1955, abdicou ao trono vietnamita e foi para o exílio definitivo na França, onde morreu em 30 de julho de 1997, aos 83 anos.

[3] [4] DELMAS, Jean. Indochina 1946-1950: as raízes da guerra. História Viva. São Paulo: Duetto Editorial, n.15, jan. 2005, p.63.

[5] Declarações extraídas do Museu da Revolução (16 jan. 2024).

[6] DELMAS, op. cit., p.70.

[7] Dados extraídos do Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

[8] Víctor Jara, 40 anos de idade, ativista político e um dos artistas ícones da contracultura chilena, foi preso, torturado e brutalmente assassinado pela ditadura militar de Augusto Pinochet em 16 de setembro de 1973, cinco dias após o golpe de Estado que destituiu o governo do socialista Salvador Allende. Seu corpo foi encontrado fuzilado e com vários ossos fraturados em uma favela da capital Santiago.

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O ruidoso colapso da ordem ocidental

    Uma após a outra, as instituições que mantinham a hegemonia do Ocidente estão se tornando inativas. Declínio escancara-se com Trump, mas é anterior a ele. BRICS despontam como alternativa; porém, ainda não estão prontos. O que ainda falta?

Por Walden Bello | Tradução: Antonio Martins

Os recentes bombardeios unilaterais dos Estados Unidos a instalações nucleares do Irã reforçam o fato de que o multilateralismo liberal está morto — e já faz algum tempo.

Não é apenas no que diz respeito ao uso do poder militar que esta tendência se apresenta. As principais instituições da globalização liderada pelo Ocidente não funcionam mais ou estão em modo de espera. Isso ficou evidente com a decisão do governo dos EUA de boicotar tanto a Cúpula de Finanças e Desenvolvimento em Sevilha, na Espanha, no início de junho, quanto a Cúpula do Clima de Bonn, algumas semanas antes.
A Organização Mundial do Comércio nunca se recuperou do colapso da Quinta Reunião Ministerial em Cancun, em 2003, com os Estados Unidos, na verdade, assumindo a liderança em enfraquecê-la ao impedir nomeações para sua unidade decisória, o tribunal de apelações. Há uma resistência ferrenha no FMI e no Banco Mundial para mudar as cotas de poder de voto e conceder à China, aos demais BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) e a outros países do Sul Global o peso que merecem no equilíbrio global do poder econômico, em clara mutação

Há mais de quatro anos encerrou-se iniciativa do G-20 para suspensão das dívidas. Mesmo com muitos países do Sul Global afundando em uma crise de endividamento pior que a dos anos 1980, nenhum novo esforço para resolver o problema partiu do Norte Global. Em vez disso, o Clube de Paris tem alimentado um jogo de culpa, acusando a China de não se unir a uma frente comum para pressionar os países endividados.


No que diz respeito ao financiamento climático, o Sul Global executou um recuo conciliatório com a Iniciativa Bridgetown que, liderada por Barbados, integra desenvolvimento ao financiamento climático. Mesmo assim os US$ 58 bilhões liberados após anos de negociações difíceis são insignificantes, perto do US$ 1 trilhão necessário anualmente para cobrir perdas e danos infligidos ao Sul Global pelas atividades climaticidas dos principais poluidores. E, com um governo negacionista agora no poder em Washington, os outros grandes criminosos climáticos ganharam a desculpa para não ampliar seus compromissos, já frágeis e voluntários. A Conferência da ONU para Mudança Climática (UNFCCC) vai se reunir em Belém, Brasil, em novembro, para sua Cúpula do Clima anual, mas a realidade é que as negociações estão paralisadas.

Morte de uma Grande Estratégia

Os Estados Unidos foram decisivos nesse recuo do multilateralismo, e esse processo começou muito antes da ascensão de Donald Trump. O atual presidente foi quem cortou o blá-blá-blá, abandonou a hipocrisia e decretou o fim da grande estratégia do internacionalismo liberal que orientou os EUA nos últimos 80 anos — quando o país se comprometia a combater ameaças ao capital e ao poder estatal norte-americano onde quer que surgissem. Como observou Viktor Orbán, a figura europeia mais admirada por Trump, o plano de seu colega autocrata é recuar para as Américas, revitalizando o coração imperial (a América do Norte) enquanto fortalece o controle dos EUA sobre a América Latina — uma reafirmação agressiva da Doutrina Monroe.

E Orbán completa: “não haverá mais exportação de democracia.”

Trump pode parecer imprevisível, mas há uma linha de tendência por trás de seus zigue-zagues. Ele apenas reconhece o que seus predecessores se recusaram a ver: que o império está sobrestendido e já não tem recursos para manter seus múltiplos compromissos.Além disso, ele está respondendo ao segmento mais influente de sua base do Make America Great Again.Esse movimento é produto da crise de quatro décadas do capitalismo e do imperialismo. De um ponto de vista progressista, ele tem características contraditórias. É, para usar o termo de Althusser, uma “contradição sobredeterminada” que mescla os piores impulsos racistas, etnocêntricos e anti-intelectuais com um profundo desprezo pelas iniciativas neoliberais pró-globalização e pelas políticas intervencionistas e belicistas dos internacionalistas liberais e neoconservadores que dominaram a política nas últimas oito décadas. É fascismo, mas, ao contrário dos anos 1930, é um fascismo voltado para dentro, não expansionista.

O que está surgindo é um imperialismo na defensiva, que prioriza barreiras tarifárias contra importações estrangeiras. Ele adotou medidas duras para barrar migrantes não brancos e expulsar trabalhadores indocumentados; desmontou as cadeias globais de suprimento criadas pelo capital transnacional norte-americano; repatriou suas instalações produtivas para os EUA e — last but not least — afastou completamente o país dos esforços coletivos para enfrentar a crise climática. O programa MAGA defendido por ideólogos como Peter Navarro, o vice-presidente JD Vance, Tucker Carlson e Steve Bannon é muito popular, embora, para economistas ortodoxos, seja uma loucura.

O mundo provavelmente está entrando em uma era de competição geoeconômica, na qual o livre comércio e a livre circulação de capital estão sendo substituídos por uma estreita cooperação entre capital nacional e Estado para limitar a penetração estrangeira no mercado interno e impedir a aquisição de tecnologia avançada — especialmente inteligência artificial (IA) — por rivais corporativo-estatais.

É uma política industrial com viés reacionário exacerbado. No caso de Trump, os métodos preferidos para lidar com o Sul Global são ações econômicas unilaterais (em vez de iniciativas multilaterais via instituições de Bretton Woods) e ataques militares isolados (em vez de operações conjuntas da OTAN), como os recentes ataques ao Irã — e definitivamente sem tropas em solo.
Dizem que a natureza abomina o vácuo. Com o sistema multilateral global dominado pelos EUA paralisado, muitos no Sul Global buscam fontes alternativas de assistência econômica e política.
Entre os candidatos está o grupo conhecido como BRICS, que tem algo que o G77 — apesar de suas virtudes como espaço de aliança para países em desenvolvimento — não tem: peso econômico.

A Ascensão dos BRICS

Os BRICS se desenvolveram institucionalmente de forma gradual. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), concebidos para funções semelhantes às do Banco Mundial e do FMI, respectivamente, foram criados em 2015, mas mantiveram perfil discreto. Talvez, para assegurar ao Ocidente que não buscavam substituir essas instituições-chave do sistema multilateral dominado por ele, além de desencorajar países em desenvolvimento a vê-los como fontes alternativas principais de financiamento para desenvolvimento e emergências. Até o final de 2021, os empréstimos acumulados do NDB somavam apenas US$ 30 bilhões, uma fração do volume do Banco Mundial no período 2015-2021.

Em 1º de janeiro de 2025, Egito, Etiópia, Irã, Indonésia e Emirados Árabes Unidos (EAU) juntaram-se aos cinco membros originais. O bloco de 10 países agora representa mais de 40% da população global e detém 28% da economia mundial (US$ 26,5 trilhões). O fato de tantos países — incluindo Tailândia e Malásia — estarem na fila para entrar no clube dos BRICS mostra que o Sul Global percebe que a balança pende contra o Ocidente, que se tornou defensivo, rabugento e inseguro.


Vários membros atuais e potenciais têm superávits significativos que poderiam ser direcionados a empréstimos para desenvolvimento. Além dos recursos enormes da China, os Emirdos Árabes têm US$ 2,23 trilhões em seu fundo soberano. A Arábia Saudita — que postergou sua adesão, mas deve entrar no futuro — possui US$ 1,3 trilhão em seu fundo. Esses valores poderiam multiplicar a capacidade do CRA e do NDB.

Essas expectativas depositadas nos BRICS por muitos no Sul Global são realistas? Em primeiro lugar, os BRICS — especialmente a China — foram cruciais para levar o equilíbrio de poder econômico global contra o Norte a um ponto de virada. A China, em particular, forneceu a muitos países do Sul Global uma fonte alternativa de financiamento no último quarto de século, ampliando seu espaço de desenvolvimento.Como observou o economista progressista Kevin Gallagher, a China é hoje o maior banco de desenvolvimento do mundo.

Isso gerou forte reação negativa no Ocidente. Embora haja falhas nos empréstimos chineses, circulam muitas mentiras de fontes ocidentais — como a alegação de que a China está levando países a uma “armadilha da dívida”. É balela incentivada pelo FMI. A ajuda chinesa não é desinteressada, mas não impõe as condicionalidades asfixiantes do FMI e do Banco Mundial.

Motivos para Cautela

Mas há razões para cautela. Os mecanismos institucionais dos BRICS para fornecer assistência ainda são incipientes.Não se trata apenas de ampliar sistemas de assistência. Muitos candidatos a ingressar esperam que os processos decisórios dessas instituições sejam mais participativos e democráticos que os das agências ocidentais. A grande questão é: os principais atores dos BRICS estarão abertos a compartilhar o poder decisório sobre seus recursos?

Outra questão: como os BRICS reúnem Estados autoritários e apenas formalmente democráticos, não é realista esperar que eles projetem suas preferências regimeis e estilos de governança num cenário multilateral?
Este ano marca o 70º aniversário da icônica Conferência de Bandung. O Sul Global avançou muito na descolonização e, sobretudo nas últimas sete décadas, em aproximar-se de um ponto de virada no equilíbrio de poder frente ao Norte.Mas a Declaração de Bandung não era apenas sobre descolonização política e econômica. Seu primeiro princípio, entre dez, era “respeito aos direitos humanos fundamentais e aos propósitos e princípios da Carta da ONU”.

Dois dos principais articuladores em Bandung foram Índia e China, que hoje desempenham papel central nos BRICS. Nehru e Zhou En Lai foram vozes exemplares do Sul Global em 1955, quando a descolonização era a questão urgente.No entanto, em relação ao primeiro princípio de Bandung, seus governos atuais estão longe de ser paradigmas de direitos humanos.A Índia hoje é governada por um regime nacionalista hindu que trata muçulmanos como cidadãos de segunda classe.Pequim é acusada de promover a assimilação cultural forçada dos uigures, embora o Ocidente possa exagerar esse processo. Quanto a outros patrocinadores-chave da conferência de Bandung, os regimes militares de Mianmar e do Egito são notórios por violações em massa de direitos humanos.


De fato, a maioria dos Estados do Sul Global é dominada por elites que, seja através de regimes autoritários ou democracias liberais, mantêm estruturas sociais e econômicas problemáticas. Os níveis de pobreza e desigualdade são chocantes. O coeficiente de Gini do Brasil é 0,53, tornando-o um dos países mais desiguais do mundo.O índice de 0,47 da China também reflete uma desigualdade enorme, apesar dos avanços notáveis na redução da pobreza. Na África do Sul, o coeficiente de Gini chega a 0,63, e 55,5% da população vive abaixo da linha da pobreza.Na Índia, a renda se polarizou nas últimas três décadas, com um aumento significativo de bilionários e outros indivíduos de alto patrimônio.

A realidade é que as grandes massas populacionais do Sul Global – incluindo comunidades indígenas, trabalhadores, camponeses, pescadores, povos nômades e mulheres – são economicamente marginalizadas. Mesmo nas democracias liberais, como Filipinas, Índia, Tailândia, Indonésia, África do Sul e Quênia, a participação democrática frequentemente se limita a votar em exercícios eleitorais periódicos e muitas vezes vazios de significado. Modelos de investimento e cooperação Sul-Sul, como a Iniciativa Cinturão e Rota e acordos de livre comércio, frequentemente envolvem a apropriação de terras, florestas, recursos hídricos e zonas marinhas, além da extração de riquezas naturais em nome do desenvolvimento nacional.Populações locais – muitas indígenas – são despojadas de seus meios de subsistência, territórios e domínios ancestrais com pouco acesso a recursos legais e à justiça, evocando o espectro de um colonialismo interno e contrarrevoluções.
Dois pontos são importantes aqui: embora o Norte Global tenha contribuído para perpetuar a pobreza e desigualdade no Sul Global, boa parte de nossa condição atual é obra das próprias elites do Sul. Em segundo lugar, a governança democrática em nível global não pode ser dissociada da governança democrática em nível local.

Capitalismo e Multilateralismo


Há uma terceira consideração – e não menor – ao avaliar o futuro dos BRICS, e aqui é útil comparar o momento histórico de Bandung com o atual.

Na época da Conferência de Bandung, a economia política global era mais diversa: existia o bloco comunista liderado pela União Soviética; a China, buscando transitar da democracia nacional para o socialismo; e Estados neutros como a Índia, que procuravam uma terceira via entre comunismo e capitalismo.

Após décadas de transformação neoliberal no Norte e no Sul Global, essa diversidade desapareceu. Talvez o maior obstáculo a uma nova ordem global equitativa seja o fato de todos os países permanecerem inseridos no capitalismo global, onde a busca por lucros continua sendo o motor da expansão econômica – gerando enormes desigualdades e ameaçando o planeta.

Embora os centros dinâmicos do capitalismo global tenham se deslocado nos últimos 500 anos – do Mediterrâneo para a Holanda, depois para a Grã-Bretanha, Estados Unidos e agora Ásia-Pacífico, o capitalismo continua a penetrar os confins do globo e a se enraizar mais profundamente nas áreas que subjugou.
Como diz um famoso manifesto, sob o capitalismo “tudo que é sólido desmancha no ar”, criando desigualdades dentro e entre sociedades e agravando a relação entre o planeta e a comunidade humana. Seja capitalismo de mercado, desenvolvimentista ou estatal, todas essas variantes compartilham a mesma dinâmica de extração de excedentes, com enormes externalidades planetárias.

Será possível avançar para um sistema multilateral mais participativo sem construir um sistema pós-capitalista de relações econômicas, sociais e políticas? O mundo não está condenado a repetir a experiência do Ocidente. É muito positivo que a hegemonia do Norte esteja se fragmentando e que o sistema multilateral criado para dominar o Sul Global esteja em colapso. Em vez de tentar consertar esse sistema, é melhor buscar o objetivo estratégico de desmantelá-lo, usando uma combinação de negociação, promoção de uma contra-agenda radical e coerção como armas complementares.
Desarticular Sevilha e Belém, mas…

Com os EUA saindo do processo de Financiamento para o Desenvolvimento e boicotando a pré-COP 30 em Bonn, os europeus devem ser deixados para “salvar” o multilateralismo em Sevilha e Belém.

Essas assembleias devem ser usadas para desacreditar ainda mais o multilateralismo. Substituir esse sistema não será fácil, porém, e haverá retrocessos e descarrilamentos nesse processo.
Como disse o marxista italiano Antonio Gramsci: “O velho mundo está morrendo, e o novo mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros.” Chegar a um porto seguro não é possível sem grandes riscos e, como na história de Ulisses, os proverbialmente monstros de Cila e Caríbdis ainda podem ameaçar a viagem.

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Como chegamos até aqui? A aliança de Eduardo Bolsonaro com Trump que pavimentou o tarifaço


Antes mesmo da eleição de Jair Bolsonaro (PL) à presidência, seu filho Eduardo Bolsonaro (PL/SP) já articulava para aproximar sua família de líderes da extrema-direita nos Estados Unidos (EUA). Desde 2019, a Agência Pública investiga a aliança entre bolsonaristas e trumpistas, que culminou na mais recente ofensiva do governo norte-americano contra o Brasil: o “tarifaço” de 50% sobre as importações brasileiras nos EUA, que começa a valer no dia 1º de agosto. Do lado de lá, desde seu primeiro mandato, o presidente Donald Trump e seus aliados tentam influenciar a política brasileira por meio dos Bolsonaro.


Entenda o passo a passo dessa conexão BolsoTrump.


Trump apoiou Bolsonaro na eleição de 2018

Em 2019, a Pública revelou que Jair Bolsonaro contou com o apoio político de representantes do governo Trump nas eleições que levaram o brasileiro à presidência. Líderes cristãos nomeados como assessores especiais de Trump estiveram no Brasil às vésperas do pleito em um evento com Eduardo Bolsonaro, onde defenderam publicamente a eleição de Bolsonaro à presidência e gravaram vídeos enaltecendo o então candidato.


Os mesmos pastores atuaram nos bastidores para pressionar o governo do Brasil a transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o que não se concretizou. Ainda assim, em dezembro de 2019, Bolsonaro inaugurou um escritório comercial brasileiro em Jerusalém.


Durante governo do pai, Eduardo estreitou laços com EUA

Ao longo do governo de Jair, Eduardo ampliou os laços com a ala conservadora dos EUA. A Pública mostrou que, nesse período, ele participou de ao menos 77 encontros e eventos com representantes da extrema-direita dos EUA, incluindo reuniões com Trump e membros de sua família às vésperas da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.


Em 2022, reportagem da Pública descobriu que uma comitiva de 16 americanos estava no Brasil, a convite de Eduardo, no fatídico 7 de setembro de 2021, quando Jair fez ameaças golpistas e incentivou seus apoiadores — muitos com faixas pedindo intervenção militar — a atacar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).


Rede social trumpista patrocinou eventos organizados por Eduardo Bolsonaro

Às vésperas dessa manifestação, aconteceu em Brasília a 2ª edição brasileira do congresso conservador, o CPAC Brasil, um modelo importado dos EUA, que contou com patrocínio da plataforma Gettr, comandada pelo ex-assessor de Trump, Jason Miller. Miller é atualmente um dos aliados de Eduardo na ofensiva internacional contra as instituições brasileiras.


A Gettr financiou outros três eventos organizados pelo Instituto Conservador Liberal, o think tank de Eduardo. Essas iniciativas funcionaram, na prática, como pré-campanha para Jair, em desacordo com a legislação eleitoral brasileira.

Durante as eleições, Jason Miller esteve, inclusive, na manifestação de 7 de setembro em Copacabana, usada por Bolsonaro como ato de campanha. “Milhões de brasileiros patriotas nas ruas passando na sua timeline!! Não tem coração verde e amarelo que aguente!!”, postou o perfil official da GETTR.


Jair copiou Trump após derrota nas eleições

Após a derrota nas eleições de 2022, a Pública mostrou que Jair Bolsonaro adotou táticas semelhantes às usadas por Trump em 2020, enquanto lideranças da extrema-direita americana desempenharam papel crucial no fortalecimento do discurso bolsonarista contra o STF, o sistema eleitoral e o resultado das eleições.


Foi o ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, por exemplo, quem cunhou o termo Brazilian Spring (primavera brasileira, em inglês), numa tentativa de associar os atos golpistas no Brasil a um movimento democrático de massa, nos moldes da Primavera Árabe. A hashtag circulou intensamente nas redes sociais e chegou aos trending topics do X, antigo Twitter, em várias ocasiões, impulsionada por influenciadores e parlamentares alinhados à extrema-direita global.


Steve Bannon, no seu programa, afirmou que Bolsonaro não deveria reconhecer a derrota. E entrevistou Paulo Figueiredo. “A minha pergunta é: é esse o começo da primavera brasileira? Porque o povo está se levantando e ele não concedeu [não aceitou o resultado]”, perguntou. Figueiredo respondeu: “Parece o início de uma revolução. A questão principal não é se houve fraude real no processo de contagem, porque isso é apenas uma parte. A eleição foi muito injusta desde o início. Bolsonaro jogou e concorreu sob regras diferentes de todos os outros candidatos, incluindo Lula”.


Já em 2023, investigação da Pública em parceria com o UOL e o CLIP (Centro Latinoamericano de Investigação Jornalística) descobriu que a campanha de Eduardo Bolsonaro pagou um funcionário do consultor político argentino Fernando Cerimedo, responsável por disseminar desinformação sobre as urnas eletrônicas. Cerimedo criou um dossiê que circulou amplamente usando falsas estatísticas para afirmar que as urnas foram fraudadas e realizou uma live com mais de 400 mil views compartilhada por influenciadores e políticos bolsonaristas. Ele chegou a ser investigado no inquérito do STF que apura a tentativa de golpe de Estado.


Após vitória de Lula, Eduardo ampliou ações nos EUA

Após os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, Eduardo Bolsonaro abriu uma empresa nos EUA em sociedade com o influenciador Paulo Generoso – conhecido por compartilhar notícias falsas e por ter apoiado os atos golpistas. Após a derrota nas eleições, a família Bolsonaro movimentou mais de R$ 1 milhão nos EUA.


Em abril de 2024, a Pública foi o primeiro veículo a revelar que Eduardo Bolsonaro e o influenciador Paulo Figueiredo articulavam com parlamentares norte-americanos a imposição de sanções contra o Brasil, como forma de pressionar o STF.


Eduardo Bolsonaro: fiador do tarifaço

Em março de 2025, Eduardo se licenciou do mandato na Câmara dos Deputados e se mudou para os EUA, onde intensificou sua atuação na ofensiva internacional contra as instituições brasileiras, resultando no anúncio do tarifaço pelo presidente Trump, feito em 9 de julho deste ano. Na semana que o tarifaço está previsto para começar, Eduardo defende a chantagem de Trump para pressionar o Congresso brasileiro a conceder anistia a seu pai e aos demais condenados por tentativa de golpe de Estado. A Procuradoria Geral da República (PGR) pediu a condenação de Jair, que está desde 18 de julho usando uma tornozeleira eletrônica imposta por medida cautelar.


Edição: Bruno Fonseca

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Do manicômio psiquiátrico à vida em liberdade

    

País acumula 1.750 internos em hospitais de custódia. Muitos perdem contato com a família e a sociedade. A saga de João sugere que é possível superar o ciclo de abandono, e convida a refletir sobre a importância das ações antimanicomiais para assegurar uma vida digna

Por José Alberto Roza Júnior

A história de João ecoa a de muitos outros moradores de hospitais psiquiátricos e Hospitais de Custódia/Tratamento (HCTP) que entraram pela porta da frente e lá permaneceram por muitos anos. Alguns ainda estão lá. São 24 anos de promulgação da Lei 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica brasileira, que buscava garantir o direito ao tratamento humanizado e à reinserção social de pessoas com transtornos mentais, além de estabelecer diretrizes para os HCTPs, buscando alternativas para que indivíduos que cometeram crimes não sejam apenas excluídos, mas recebam tratamento adequado e tenham a chance de retornar à sociedade. Mais recentemente, em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reforçou esse compromisso, instituindo uma política antimanicomial para o Judiciário, com o objetivo de garantir os direitos das pessoas com deficiência/transtornos mentais no sistema penal e nas medidas de segurança. A Resolução CNJ 487/2023 determinou, no prazo de 1 ano, o fechamento de unidades penais com características asilares, mas, até o momento, poucos estados cumpriram integralmente a medida. São Paulo, por exemplo, onde se concentra grande parte dos internos (51,3%), solicitou o adiamento do prazo. No Brasil, o total de pessoas em HCTPs é de cerca de 1750 internos. Um dos principais obstáculos é a dificuldade em encontrar responsáveis para cuidar desses pacientes, que muitas vezes perderam o contato com suas famílias e a sociedade, ou moradias, como o Serviço Residencial Terapêutico (SRT), destinadas a egressos de hospitais psiquiátricos com internação de longa duração.

Mas há histórias que tentam romper esse ciclo de abandono – e que mostram, também, os efeitos persistentes da lógica manicomial, mesmo quando há afeto e presença. É o caso de João, cuja trajetória também é marcada pela esperança, narrada por seu irmão, Marcos. Em um sábado à tarde, encontrei Marcos visitando seu irmão João, um dos moradores de um SRT de São Paulo. A lógica manicomial do descaso o fez ser transferido, sem muito critério, de um HCTP para um Hospital Psiquiátrico e, por isso, pôde sair de lá e ir morar em um SRT. Para preservar suas identidades, os nomes estão alterados. O que quero mostrar é que, mesmo quando a família não abandona, a lógica do isolamento psiquiátrico pode criar um muro de distanciamento.


João passou 27 anos de sua vida em hospitais psiquiátricos/HCTPs. Marcos nunca se afastou, assim como o pai deles. “Meu pai morreu tentando tirar ele daqueles lugares”, conta Marcos, com a voz embargada pela emoção.

Quando João completou 20 anos, começou a apresentar comportamentos “diferentes”. Nessa mesma época, trabalhava como office boy no mesmo escritório que seu pai, Gerônimo. Mas um dia, a chefia chamou Gerônimo para informar que João seria desligado: ele se recusava a sair para atividades externas, falava sobre homens que o perseguiam e se envolvia em confusões. Em um episódio, invadiu uma reunião, gritando que o café estava envenenado para matar seu chefe. Após a demissão, João se fechou em casa. “Chorava dias e dias, ficava no quarto sem tomar banho”, lembra Marcos. Um dia, Marcos recebeu uma ligação urgente: João havia atacado sua prima com uma faca. Sua mãe tentou conter e desmaiou ao ver toda a cena. Ambas ficaram feridas. Desesperado, tentou se matar. A justiça determinou sua internação em um hospital de custódia, o antigo manicômio judiciário.

Durante onze anos, Gerônimo visitou o filho aos sábados, levando café e bolo feito por Maria, sua esposa. Mas um dia, ouviu a sentença final: João jamais sairia dali. “Esquizofrênico e com medida de segurança, a justiça o manteria lá”, lamenta Marcos. Dois meses depois, Gerônimo descobriu um câncer. Antes de morrer, pediu a Marcos que continuasse as visitas, levando o bolo de cenoura preferido de João. Marcos cumpriu a promessa.

Marcos descobriu que João havia sido transferido para outro hospital, mas em uma cidade no interior de São Paulo. As transferências sem sentido, por discussões entre internos ou mesmo por superlotação, revelam a lógica manicomial do descaso no cuidado, uma história de horror nos longos anos de manicômios no Brasil. E, ao acaso/descaso, a transferência não foi para outro HCTP e sim para um Hospital Psiquiátrico. As visitas continuaram, agora mensais. As idas foram se espaçando com o tempo. Marcos se casou dois anos após a morte de seu pai, seguiu sua vida. Perguntou se João não poderia ir morar com ele, seria mais fácil que dirigir 300 km para visitá-lo. A resposta foi categórica: ele nunca será libertado. “Até quando eu aguentaria a promessa feita a meu pai? Já tinham se passado treze anos desde o primeiro hospital!”, conta emocionado.

Em 2009, vinte anos após o surto psicótico que feriu sua mãe e prima, Marcos soube que João seria transferido novamente, desta vez para um hospital psiquiátrico em São Paulo. A equipe do hospital contou sobre a Lei 10.216/01; agora, João poderia viver com sua família. Marcos fez um acordo com a equipe do hospital. “Eu o visitava mensalmente, depois ficou difícil com a distância. Eu posso vir todos os sábados. Minha esposa faleceu. Moro sozinho. Não tenho quem fique com ele em casa. Cuidem dele aqui.”

Após sete anos, surgiu a oportunidade de João morar em uma residência terapêutica. Aos 62 anos, sua vida recomeçaria fora dos muros que, por tanto tempo, definiram sua existência. Gerônimo se alegraria em saber que o filho teria de novo uma casa. João retornou à cidade em uma tarde de segunda-feira. E, naquele sábado, ao conhecer Marcos, em sua primeira visita ao irmão, fui recebido por perguntas que ecoavam seu sofrimento: quem seria o vilão numa história marcada por tantas atrocidades? Haveria, de fato, um culpado? Qual o papel do Estado no destino dos pacientes psiquiátricos? E por que uma lei que promete mudanças só surge agora? Essas inquietações, lançadas com a voz embargada e lágrimas correndo pelo rosto de um senhor de setenta anos, tornaram-se também minhas. Enquanto tentava explicar os caminhos e limites da Reforma Psiquiátrica, buscava, ao mesmo tempo, acolher a dor de Marcos – uma dor que é também coletiva.

Naquele dia, nossa conversa esmiuçou as pequenas questões que se revelam monumentais no início da jornada de reintegração. João agora desfruta de um guarda-roupa próprio, uma cama só sua, seus pertences organizados e roupas lavadas com o cuidado que merece. Começa, também, a lidar com as novidades de uma vida com mais autonomia: os gastos com o barbeiro semanal, o táxi para consultas e os passeios que vislumbra. O início dessa nova etapa, no entanto, escancara os desafios de desaprender hábitos arraigados por anos de internação.


Há, por exemplo, a insistência em levar para o quarto o prato usado, os restos de comida escondidos, os chinelos sob o travesseiro – resquícios de um passado manicomial que teimam em ressurgir. Como lidar com essas manifestações? Talvez a resposta esteja em reafirmar, a cada gesto, que a Residência Terapêutica é, antes de tudo, um espaço de resgate: a reconstrução paciente de uma subjetividade que lhe foi negada por tanto tempo. Apesar do foco na perspectiva de Marcos, é possível vislumbrar a experiência de João. Ele sorri e interage com os outros moradores da residência, demonstra entusiasmo ao ir à padaria e à banca de revistas. Contudo, a adaptação não é isenta de desafios. Por vezes, João se mostra perplexo diante da modernidade, como ao observar pessoas utilizando telefones celulares, expressando: “Isso é muito louco!”. Em momentos de crise, o passado o assombra, manifestando o desejo de retornar à empresa onde trabalhou ou à casa de sua família. A ausência da mãe também o aflige, levando-o às lágrimas e a questionando por que ela não o visita.

É fundamental ressaltar que casos como o de João representam a realidade de muitos indivíduos com transtornos mentais que, em momentos de crise, cometeram atos infracionais ou crimes. Longe de serem representativos da totalidade dos pacientes em HCTPs, os casos de violência que ocasionalmente chegam à mídia acabam por estigmatizar toda uma população que, em sua maioria, necessita de cuidado, compreensão e oportunidades de reinserção social. É preciso desmistificar a perigosa generalização que associa transtorno mental à violência, reconhecendo que a imensa maioria dessas pessoas, como João, não apresenta traços de psicopatia ou periculosidade inerente.

Há mais de um século, pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei são excluídas da sociedade, privadas de seus direitos e submetidas a tratamentos inadequados, muitas vezes mais prejudiciais do que benéficos. Essa realidade evidencia a necessidade urgente de combater o estigma, promover o diálogo entre saúde e justiça e criar políticas públicas que respeitem os direitos humanos e priorizem o cuidado adequado dessa população.

E, como essa história ainda está sendo escrita, resta a certeza de que João poderá, enfim, viver plenamente em um lar – em sua nova casa, a Residência Terapêutica. Marcos, ao compartilhar comigo essa trajetória de lutas e a memória constante do pai, sorri com a esperança renovada: “Agora, João pode voltar a ser um cidadão!”.

Este artigo é uma homenagem ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio. A data nos lembra da importância de lutar por uma sociedade mais justa e inclusiva, onde as pessoas com transtornos mentais tenham seus direitos garantidos e possam viver com dignidade e liberdade.

José Alberto Roza Júnior é Psicólogo Clínico. Professor. Doutor em Psicologia/Saúde Mental (USP). Atuou por mais de 15 anos em serviços de Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica.

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    Mulheres eram forçadas a engravidar em fazendas de reprodução de escravizados


Mulheres eram forçadas a engravidar continuamente, enquanto homens eram colocados na posição de “reprodutores”. Os bebês ficavam pouco tempo com a mãe e logo eram negociados pelos senhores de escravos como mercadoria. 

A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center


Um dos aspectos menos conhecidos da escravidão no Brasil é também um de seus lados mais sombrios: a reprodução sistemática de pessoas escravizadas. Mulheres eram forçadas a engravidar continuamente, enquanto homens (os mais fortes e saudáveis) eram colocados na posição de “reprodutores”. Os bebês ficavam pouco tempo com a mãe e logo eram negociados pelos senhores de escravos como mercadoria. Exatamente como funciona hoje uma fazenda de criação de gado.


O tema é pouco conhecido no país porque não há muitos documentos históricos – em parte por causa da destruição de arquivos ligados à escravidão no fim do regime, e em outra medida por ser uma atividade ilegal, feita às escondidas. As informações que se tem sobre o assunto baseiam-se principalmente em relatos orais e no que sobrou de censos e controles de natalidade das fazendas.


O pesquisador e jornalista Laurentino Gomes, autor de uma trilogia de livros sobre a escravidão brasileira, encontrou ao menos duas fazendas que serviam como espaço de reprodução de escravizados. Uma delas fica em Remígio, na Paraíba, e a outra em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Ele acredita que havia muitas outras espalhadas pelo interior do país, mas que acabaram desaparecendo aos olhos dos historiadores. “Essa é uma prática muito camuflada no Brasil, muito dissimulada, mas que permeou todo o sistema escravista”, afirma.



Localizada na região de Campina Grande, a segunda maior cidade da Paraíba, a fazenda de Remígio é conhecida até hoje pelos moradores do entorno como “a maternidade”. Lá era o lugar em que as escravizadas de Francisco Jorge Torres, um português que se mudou para o Brasil no início do século 19 e fez fortuna com a criação e venda de pessoas, iam para dar à luz os bebês que depois seriam comercializados por ele. Pelo menos cem crianças tiveram esse destino. Além de servir para a reprodução de pessoas, o local funcionava também como fazenda de criação de gado e curtume.


Ainda hoje é possível ver as ruínas do que, naquela época, era uma casa de pedra com paredes grossas, apenas uma porta de entrada e saída e uma janela gradeada, onde as escravizadas faziam o parto e passavam os primeiros dias – o único momento em que podiam ficar junto com os filhos. Pequenos buracos na parede serviam para os capitães do mato ouvirem o que estava acontecendo dentro, para identificar quando um bebê nascia e evitar que a mãe escondesse a criança para tentar fugir com ela depois.


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‘Ainda estou aqui’: Como advogada, Eunice Paiva deixou legado para o direito indígena


    No último 7 de novembro, a advogada Maíra Pankararu, primeira indígena a participar da Comissão de Anistia, saiu emocionada da estreia de Ainda estou aqui. “Fico muito agradecida, porque ainda são poucos os que discutem o que foi a ditadura para nós, povos indígenas”, disse Pankararu à Agência Pública. 

O filme recém-indicado ao Globo de Ouro e que, há poucos dias, se tornou a maior bilheteria do cinema brasileiro no pós-pandemia, conta a busca de Eunice Paiva pelo reconhecimento do assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, pela ditadura militar. Mas, entre as várias batalhas que marcaram a trajetória de Eunice, o filme do diretor Walter Salles destaca também sua atuação como uma das raras advogadas na época especializadas em direito indígena. 

Entre 1964 e 1985, período definido por Pankararu como um “banho de sangue” para os povos indígenas, o governo militar perseguiu, expulsou milhares de suas terras e colocou dezenas em campos de trabalho forçado e prisões. 

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período – “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O número, aterrador, se refere a apenas dez povos estudados pela CNV – são 305 no Brasil. Desaparecidos e mortos políticos, caso de Rubens Paiva, foram 434, conforme a CNV. 

“A gente ainda não tem noção sobre o que aconteceu com os povos indígenas na ditadura”, afirma Pankararu. 

Foi nessa época brutal que Eunice se especializou na defesa jurídica dos povos indígenas, assinando pareceres judiciais, buscando indenizações e demarcações de terras, publicando artigos e livros e contribuindo para as discussões que resultariam no capítulo “Dos índios” da Constituição Federal de 1988. 

“Eunice é de uma expressão tão grande que é impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista humanitário”, afirmou o líder, ativista e escritor Ailton Krenak em entrevista à CBN. 

O foco de Ainda estou aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é a batalha de Eunice para que o governo ditatorial reconhecesse o que fez com seu marido, levado por policiais à paisana em janeiro de 1971 para nunca mais retornar. 

Mas, ao mencionar a dedicação posterior dela ao direito indígena, o longa abre um caminho para que outra memória coletiva seja também recuperada. 

“O direito à memória e à verdade é o direito à nossa identidade, o direito de sanarmos as nossas feridas e esses traumas que se tornaram intergeracionais”, resume Daiara Tukano.  Artista e mestre em direitos humanos, Tukano também viu no filme um convite para que as pessoas se somem à luta dos povos indígenas e conheçam as histórias daqueles que Eunice defendeu – entre eles, os Pataxó, da Bahia; os Zoró, do norte de Mato Grosso; os Kayapó, do Xingu; e os Yanomami, de Roraima.


A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período da ditadura militar


Eunice e a causa indígena

Dois anos depois de Rubens Paiva ter desaparecido nos porões do DOI-Codi, no Rio de Janeiro, Eunice voltou para São Paulo com a família e entrou na Faculdade de Direito. Os estudos lhe deram mais ferramentas para buscar justiça para o seu e para outros casos de desaparecidos políticos, lutar pela redemocratização do país e entrar na causa indígena.

“A minha mãe tinha uma vida incrível, porque ela ficou viúva aos 41 [anos], com cinco filhos, se formou em direito e virou uma militante muito intensa com relação à anistia, redemocratização, Diretas-Já, Constituinte. Ela começou com o direito de família, mas depois se especializou em direito indígena. Ela era uma das pouquíssimas especialistas em demarcações de terras indígenas e passou a ser requisitada”, contou Marcelo, filho de Eunice e Rubens, em entrevista a Drauzio Varella, em 2016, meses após ter lançado o livro.  

Em 1987, ela foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá) , organização não governamental que colaborou para a criação de vários projetos de saúde, educação e política para povos indígenas, na qual atuou até 2001.

No final da década de 1980, Eunice trabalhou também no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que geria, no Brasil, os recursos de uma organização fundada pelo músico Sting – convertido definitivamente à causa indígena após ter feito uma turnê mundial ao lado do líder Raoni Metuktire para angariar fundos para a demarcação da Terra Indígena Menkragnoti, dos Kayapó, no Xingu, homologada em 1993.


Eunice foi uma das fundadoras das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente

Antes disso, ainda na ditadura, Eunice participou da Comissão Pró-Índio de São Paulo, grupo fundado por antropólogos em 1978 como reação à tentativa do governo militar de alterar a lei para separar os indígenas em dois grupos: aqueles que seguiam suas “tradições” e, portanto, ainda precisavam ser “tutelados” pelo Estado; e aqueles que tinham se “emancipado” por terem se “aculturado”. 

A divisão arbitrária não passava de uma manobra para retirar do segundo grupo o direito à terra – reconhecido desde o tempo do Brasil Colônia e protegido pelas constituições desde 1934. A estratégia não passou despercebida. 

“Essa questão de ‘emancipar’ os índios, que era o termo usado, mobilizou a sociedade civil de um modo incrível, porque foi, digamos, o modo de expressar resistência e repúdio à ditadura no fim da década de 1970, quando a oposição estava muito subjugada”, lembra a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das fundadoras da Comissão Pró-Índio e referência em antropologia no país.

A demarcação de terras indígenas se tornou uma palavra de ordem, estampada até em adesivos colados nos automóveis de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, contou a antropóloga. 

Naquela época, o ordenamento jurídico do país considerava os indígenas como “relativamente capazes” (mesmo status das mulheres casadas). Assim, eles não podiam fazer negócios, celebrar contratos e entrar com ações judiciais, prerrogativas reservadas ao “tutor” – representado, primeiro, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967. 

Funai militarizada e a disputa pela terra

Só que a própria Funai, militarizada, era “o inimigo dos indígenas”, explica Carneiro da Cunha, retratada no filme ao lado de Eunice em uma cena de uma aula ministrada por elas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “Isso fazia com que, na realidade, eles não tivessem acesso à Justiça de forma autônoma.”

Em 1983, as duas assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo denunciando como a Funai havia agravado o conflito fundiário enfrentado pelos Pataxó do sul da Bahia. Pressionado pelo governo estadual, o órgão que deveria defender os indígenas atuou para remover e dividir a população, deixando-a exposta à violência da Polícia Militar e de fazendeiros.


Reprodução do artigo no jornal Folha de São Paulo

“Nesta situação, a quem recorrer?”, questionam. “Sejamos claros: a Funai, supondo mesmo que quisesse cumprir seu papel, está atrelada a um sistema no qual os direitos indígenas são a última das preocupações.” 

A Comissão Pró-Índio de São Paulo era justamente uma entidade a que os indígenas podiam recorrer, uma organização “para-raio” de conflitos, como define Márcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e presidente da Funai entre 1995 e 1996. 

“Indígenas que sofriam processos complicados de violência, tomada de terras, recorriam à Comissão [Pró-Índio] para ter algum tipo de apoio, nem que fosse no plano da denúncia desses fatos. Era um período em que havia pouca gente com formação que pudesse ajudar”, conta.

Eunice era uma dessas pessoas, assim como os juristas Dalmo Dallari (1931-2022), referência em teoria do estado, e Carlos Marés, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Na época, eles desempenhavam o papel que mais tarde seria delegado ao Ministério Público Federal (MPF) pela Constituição de 1988.

“Quando você vê alguém falando que o Ministério Público denunciou, entrou com ação, fez não sei o quê, a Eunice Paiva já fazia isso antes do Ministério Público existir”, disse Krenak à CBN. 

Em 1986, Eunice escreveu um parecer fundamental para a demarcação da Terra Indígena Zoró, reconhecida no ano seguinte. Contatados oficialmente em 1977, os Zoró viram sua população se reduzir drasticamente após uma série de surtos epidêmicos trazidos pelos invasores que seguiam o asfaltamento da BR-364 (entre Cuiabá e Porto Velho). 

“Os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos intransponíveis e que não podem ser negociados, inexistindo qualquer impugnação válida capaz de anular, restringir, extinguir ou modificar os direitos da comunidade Zoró sobre a terra que é seu habitat natural”, escreveu Eunice como avaliadora do impacto do Programa Polonoroeste para os indígenas.

A pavimentação da rodovia entre as capitais de Mato Grosso e de Rondônia foi uma das principais ações do Polonoroeste, criado pelo governo João Figueiredo em 1981, financiado por empréstimos de milhões do Banco Mundial e devastador para os povos indígenas dos dois estados. 

Ditadura: grandes obras e violência

Com seus programas de “integração” e grandes obras de infraestrutura, como as rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, a ditadura exacerbou a opressão, em todos os níveis, contra os indígenas, deixando um legado de violações nunca reparado. 

Na raiz dessa violência, que também se perpetua até hoje, estava o direito à terra, classificado por Eunice como o “mais valioso” para os indígenas. Em um livro de 1985, escrito com a antropóloga Carmen Junqueira, ela lembra que o Estatuto do Índio, de 1973, havia dado cinco anos para a Funai demarcar todas as terras indígenas. O prazo havia se esgotado sem que as áreas demarcadas atingissem um terço do total. 

“Parece-me que o problema da terra, no Brasil, hoje, é um problema crucial. Observamos uma verdadeira corrida para o oeste, no sentido da ocupação do território, estimulada, inclusive, pelo próprio governo, no sentido da defesa desses territórios contra eventuais invasores estrangeiros. Enfim, essas coisas que os militares muito enfatizaram”, disse ela durante uma reunião da Comissão Pró-Índio em 1986. 

“Acho que o problema da terra, indígena ou não, deveria ser tratado de forma harmoniosa, estabelecendo quais são os direitos indígenas e os outros organismos se adequarem a isto. E não o contrário. A adequação tem sido feita com prejuízo dos direitos das terrasindígenas”, afirmou. 

No livro O Estado contra o índio, publicado em 1985, Eunice e Carmen se debruçam sobre décadas de documentos estatais para reconstituir todo o tratamento dado, ao longo da história legislativa brasileira, aos indígenas e ao direito deles à terra. Na obra, elas criticam a política indigenista e denunciam as seguidas violações de direitos humanos. 

Para as autoras, um dos sintomas da “discriminação racial” e “violação aos direitos humanos” enfrentadas pelos indígenas estava na falta de apuração e solução dos crimes cometidos contra as comunidades. Elas listam, então, 15 assassinatos entre 1975 e 1983 que ficaram “sem solução”. Entre eles o do líder guarani Marçal de Souza, que chegou a participar de reunião da Comissão Pró-Índio e foi morto por pistoleiros em Campestre, em Antônio João, no Mato Grosso do Sul. 

Em um desses prolongamentos da história, até hoje fazendeiros disputam áreas indígenas no estado, em um conflito fundiário violento que, há anos, deixa mortos e feridos. Recentemente, em setembro, também em Antônio João, o jovem Neri Guarani Kaiowá foi morto a tiros durante uma ação da Polícia Militar contra a retomada dos indígenas em uma fazenda, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). 


O caminho para a Constituição de 1988

Para Manuela Carneiro da Cunha, o trabalho realizado pela Comissão Pró-Índio deixou um “enorme legado” para a pesquisa acadêmica e para a formulação jurídica dos artigos da Constituição de 1988

“Essas pessoas que tomaram o front nesse período [da ditadura] tinham que tirar leite de pedra para conseguir fazer a defesa dos povos indígenas com os instrumentos precários que existiam”, afirma Santilli. 

Para Manuela Carneiro da Cunha, esse trabalho realizado pela Comissão Pró-Índio deixou um “enorme legado” para a pesquisa acadêmica e para a formulação jurídica dos artigos da Constituição de 1988 – como o revolucionário texto do artigo 231, que sacramentou o conceito de “direito originário”, recuperado pelo trabalho do grupo. 

Os advogados que atuavam na Comissão Pró-Índio foram importantes também em uma das grandes batalhas da Constituinte: o debate sobre mineração em terras indígenas. Segundo Ailton Krenak, advogados como Eunice, Dalmo Dallari e Carlos Marés aconselharam as lideranças envolvidas nas discussões a impedir a autorização ao garimpo no texto constitucional. 

Eunice já conhecia o problema por sua atuação como advogada da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), área invadida por milhares de garimpeiros no final da década de 1980, estimulados pelas seguidas investidas do governo e de parlamentares para autorizar a exploração de cassiterita na região. O chamado “ouro negro”, usado na fabricação de vidros e de latas e, atualmente, até de telas de celulares, ainda hoje é extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami.  

Além de preparar o caldo jurídico para a Constituinte, a Comissão Pró-Índio de São Paulo também teve um papel relevante ao reunir líderes indígenas que se tornaram referências para o movimento indígena, como o próprio Krenak, Raoni, Marcos Terena, Álvaro Tukano, entre outros.

“Eles foram apoiadores importantes ao promover esses encontros das lideranças que construiriam as propostas para os nossos direitos na Constituinte, a presença indígena dentro dos espaços democráticos do país”, diz Daiara Tukano, filha de Álvaro. Na história pessoal da família da artista, Eunice é lembrada também por ter assinado um parecer para que o cartório de Pinheiros, em São Paulo, aceitasse registrar Daiara como Daiara Hori, em uma época em que nomes indígenas não eram aceitos. 

A representação indígena era uma das preocupações da advogada, que já em 1985 apontava como “defeito grave” na concepção da Funai a ausência de indígenas nos quadros do órgão. 

Quase 40 anos depois, ela provavelmente ficaria satisfeita em ver Joenia Wapichana na presidência do órgão. Além de um movimento indígena fortalecido, representado juridicamente por suas próprias organizações, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

“Tem agora um movimento indígena tanto de mulheres quanto de homens que é nacional, e isso é de extrema importância”, afirma Manuela Carneiro da Cunha.

“Lembrar da Eunice também é agradecer e celebrar o trabalho de todos aqueles que foram nossos parceiros e continuam de pé do nosso lado”, diz Daiara. “Eu fiquei muito tocada que ela resolveu virar advogada para construir justiça em um momento em que a maior parte da nossa população não tinha condições para isso. Hoje nós temos nossos advogados, nossos professores, nossos doutores, mas precisamos que todos conheçam essa parte da história, que é uma história coletiva, a história de um país.” 

Maíra Pankararu faz coro: “A memória dessas violências não é uma memória só dos povos que as sofreram. É uma memória da sociedade brasileira, que precisa entender o que foi a ditadura para os povos indígenas, para daí entender o que de fato foi a ditadura como um todo”.

Edição: Giovana Girardi


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