IMPRENSA

 




Auditorias de conteúdo com o uso de IA. Você já tinha ouvido falar de auditorias de conteúdo? Segundo o Generative AI in the Newsroom, trata-se de um processo de avaliação de todo o conteúdo produzido por um meio de comunicação em relação a um conjunto de métricas sobre a cobertura. “Isso pode incluir analisar o quanto você escreve sobre determinados lugares, quem você escolhe citar, quais outras fontes você vincula, dados demográficos dos seus autores e muito mais”, escreve Rahul Bhargava.

“Pode ser uma maneira útil de reforçar ativos, fazendo perguntas sobre lacunas ou padrões na cobertura e avaliando se as vozes da comunidade estão sendo representadas de forma justa ou se você está contribuindo para estereótipos locais. Ser transparente com os resultados ao publicá-los pode construir confiança e também orientar o planejamento editorial futuro.”

OK, argumentos bem convincentes (inclusive para pesquisadores). E muitos veículos americanos parece que pensam o mesmo: Philadelphia Inquirer e City NYC são dois exemplos recentes de publishers que realizaram auditorias de seus conteúdos – com o uso de inteligência artificial. Assim como eles, o pessoal do Scope Boston queria entender os lugares, temas e declarações contidos no material que produzem. Já existem soluções tecnológicas desenvolvidas para os dois primeiros itens sem a necessidade de IA, mas não para o terceiro, em que tiveram a ideia de colocar o ChatGPT pra jogo. “Para minha surpresa, o ChatGPT não inventou nenhuma citação ou fonte e acabou custando apenas cerca de US$ 6 no total (por meio de chamadas de API para seu modelo gpt-3.5-turbo)”, disse o autor do trabalho. Descobriram regiões bem mais frequentes na cobertura do que outras e que os temas mais comuns dos textos do jornal foram cultura, política e economia – o que faz sentido de acordo com a missão do veículo. Mas transportes e tecnologia quase não apareceram na cobertura, uma surpresa para os editores. A maioria das fontes era composta por mulheres e muito poucas se tratavam de políticos ou figuras públicas, algo que contraria os estudos gerais disponíveis sobre a cobertura de outros veículos. Resultados interessantes para ajudar a publicação a melhorar no caminho de cobrir as regiões de Boston de forma mais igualitária e não deixar em segundo plano assuntos importantes para os leitores. O autor do estudo, no entanto, considera esse uso do ChatGPT como uma última opção na ausência de outras ferramentas que não usam IA. Os motivos são conhecidos: os impactos do uso dessa tecnologia no consumo de energia, a questão da dependência em relação a plataformas terceiras e potenciais erros estatísticos que são difíceis de perceber, já que os LLMs são campeões em dar respostas plausíveis mas não necessariamente corretas. (GC)  


🌱 O sucesso digital dos principais jornais argentinos. Clarín e La Nacion chamaram a atenção do Reuters Institute nessa semana e por bons motivos: contrariando os resultados das amplas pesquisas anuais do Digital News Report que mostram pouca vontade de pagar por notícias e em meio à contínua turbulência econômica do país, ambos alcançaram quantidades surpreendentes de assinantes. O primeiro afirma possuir 700 mil, enquanto o seu concorrente relata mais de 375 mil, superando grandes publicações ao redor do mundo – para se ter uma ideia, o francês Le Monde tem 500 mil assinantes, enquanto o espanhol El País, 300 mil. Segundo o estudo dos casos, o segredo para o sucesso das publicações argentinas está no uso de paywalls em que os leitores comuns têm um limite de matérias que podem acessar por mês – a quota varia de acordo com dados de audiência que as duas empresas conseguem coletar e analisar. Assinaturas flexíveis também estão no pacote. Há conteúdos exclusivos para os assinantes e benefícios para além do jornalismo com clubes de descontos semelhantes aos de alguns jornais brasileiros. Não ter medo de fazer experiências e produzir jornalismo de qualidade são os outros dois motivos importantes para a boa situação de Clarín e La Nacion, aponta o Reuters Institute. Apesar de reclamações dos leitores, ambos os jornais aumentam os preços das assinaturas de três a quatro vezes ao ano em resposta à crônica inflação argentina. Não sei vocês, mas não achei nada muito surpreendente no modelo dos jornais hermanos. O nível de confiança dos argentinos na imprensa é de apenas 30%, bem abaixo do já periclitante padrão brasileiro (43%). Confesso que eu li o texto até o final esperando encontrar alguma menção a um “Milei bump”, ou seja, a atribuição do salto no número de assinaturas digitais dos jornais à subida do polêmico político de extrema direita Javier Milei ao poder no país – fenômeno que ocorreu nos EUA durante o início do primeiro mandato de Donald Trump –, mas esse motivo não foi mencionado pelos editores e executivos dos dois jornais entrevistados pelo Reuters Institute. Blé. De qualquer forma, fica a lição de que talvez fazer bem o básico seja suficiente para construir uma base de assinantes sustentável. (GC)


🌱 Falando em Trump bump… Se aumentar a base de assinantes durante o próximo mandato do bilionário é a principal esperança dos jornais americanos para os próximos anos, eles podem colocar as barbas de molho. Segundo uma pesquisa da INMA, ainda é cedo para antecipar a ocorrência de um novo boom nas assinaturas digitais, apesar de alguns sinais positivos. A entidade afirma que o número de assinantes de publicações americanas realmente cresceu durante períodos de grande interesse por notícias como na época do primeiro governo de Trump, no começo da pandemia de covid-19 e no início da guerra na Ucrânia. Por outro lado, as assinaturas costumam aumentar durante e cair logo após o resultado final de torneios esportivos como a Olimpíada e a Copa do Mundo e campanhas eleitorais em que o candidato incumbente vence. “Desta vez, nos Estados Unidos, o incumbente perdeu. O novo presidente anunciou uma série de mudanças em políticas relacionadas à defesa, comércio, impostos, imigração e gastos do governo. Isso impactará milhões, tanto nos EUA quanto internacionalmente. Então, pode-se esperar vários picos na demanda”, escreve Greg Piechota, pesquisador-chefe da INMA. Porém, ah, porém, o autor lembra que, embora diversos veículos de notícias membros da entidade tenham relatado aumento de tráfego em seus sites durante a campanha eleitoral, a alta demanda por notícias não se converteu em mais assinantes. “No terceiro trimestre de 2024, as organizações de notícias americanas venderam em média apenas 71 assinaturas digitais para cada 1 milhão de usuários online, enquanto venderam 203 assinaturas quatro anos antes”, alerta Piechota. Os números do último trimestre do ano ainda vão demorar a chegar e ainda temos todo o início de 2025 para acompanhar. A imprensa já pode prever dificuldades para cobrir o segundo governo de Trump. Segundo texto do Nieman Lab, o Freedom of Informaction Act (FOIA), a Lei de Acesso à Informação (LAI) deles, não deve ser alterada, mas existe uma tendência de aumento das barreiras burocráticas ao processamento de pedidos. Normal para governos antidemocráticos. O Press Watch abordou a busca pelas melhores palavras para descrever as medidas do governo Trump. Muitos jornais, por exemplo, usaram a palavra unconventional (não convencional) para se referirem aos primeiros membros anunciados para a próxima administração – o que, segundo o blog, foi um grave eufemismo. Dan Froomkin classificou Matt Gaetz, Robert F. Kennedy Jr., Pete Hegseth, and Tulsi Gabbard como “agentes do caos, totalmente desqualificados, completamente inaptos” e não como “leais combatentes” ou “incendiários”, palavras muito utilizadas pela mídia tradicional. “Dois deles são teóricos da conspiração completos. Nenhum tem experiência em gestão. Três deles são predadores sexuais”, escreveu. Outro membro do governo Trump será Elon Musk, dono do X/Twitter. O reflexo disso é que mais organizações de imprensa anunciaram a saída da rede social e a migração para o BlueSky depois do Guardian. (GC) 


🌱 Para colocar a diversidade em prática – e em rede. Esta matéria da LatAm Journalism Review dá um ótimo panorama sobre os esforços de conexão entre jornalistas negros e negras na América Latina. O exemplo mais recente é a Rede de Jornalistas Afro-Latinos, lançada em agosto. “Certos acontecimentos nos cruzam ao redor do mundo da mesma forma”, destaca Marcelle Chagas, coordenadora da Rede e também fundadora da Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação que, desde 2018, amplia a representatividade de jornalistas negros nos meios de comunicação brasileiros. Nosso país, aliás, é referência quando comparado com outros países da AL. Denise Mota, colunista da Folha e editora na AFP, afirma que alguns coletivos têm mais de 200 pessoas e que, por isso, temos “responsabilidade objetiva” frente a nossos  vizinhos. Outra iniciativa brasileira para aumentar a diversidade no jornalismo é a TransMídia, primeira organização que cobre pautas trans no Brasil. Em entrevista à Abraji, o jornalista transmasculino Caê Vatiero explica que, além de ser um “lugar de afeto e sobre a importância de construir uma memória do que são as pessoas transexuais fazendo comunicação”, a iniciativa quer preencher uma lacuna. “Existe um olhar muito enviesado sobre a pauta trans. Os jornais só abordam a pauta quando é algo benéfico para si ou quando se trata de violência”, diz. Nos EUA, outra lacuna: estudo do Pew Research Center mostra que dois terços dos influenciadores de notícias são homens – e a maioria nunca trabalhou para uma organização de notícias. De acordo com esta matéria do Nieman Lab, a porcentagem de influenciadores de notícias homens foi maior no Facebook (67%) e no YouTube (68%) e a diferença de gênero foi menor no TikTok (50%). (LV)


🌱 Prêmio, guia e indicações de leitura.


💎 Um mergulho conceitual em torno do “newsinfluencer”. Pesquisas recentes têm mostrado a ascensão dos influenciadores de notícias, vocês têm acompanhado. Vou citar apenas duas, das quais já falamos aqui na NFJ: O Digital News Report 2024, que sublinhou que “a grande mídia é significativamente desafiada por uma série de influenciadores, criadores e personalidades, bem como por meios de comunicação alternativos menores e pessoas comuns”; e também um estudo do Knight Center sobre criadores de conteúdo e jornalistas – e a redefinição das notíciasNas Olimpíadas deste ano, vimos a força de influenciadores como Casemiro, da Cazé TV, fazendo frente aos grandes veículos de comunicação. Sem dúvida, trata-se de um “hot topic” que, por isso mesmo, merece uma investigação conceitual mais profunda. 

É o que faz este artigo do pesquisador australiano Eduardo Hurcombe, publicado na Digital Journalism. Além de criar quatro dimensões que ajudam a explicar os newsinfluencers, ele analisa se as características ditas “autênticas” dos influenciadores de notícias podem ajudar o jornalismo ou se elas batem de frente com valores caros à nossa profissão. Bora fazer esse mergulho? (LV)


🌱 Acordos entre publishers e empresas de IA podem ser ilegais. A Autoridade Italiana de Proteção de Dados (GPDP) enviou uma notificação ao grupo editorial GEDI que pode colocar água no chope dos publishers que assinaram ou estão buscando assinar acordos de cooperação com grandes empresas de inteligência artificial como a OpenAI em troca de compensação financeira. A autoridade avisou que “os arquivos digitais dos jornais armazenam histórias de milhões de pessoas, com informações, detalhes, dados pessoais, mesmo extremamente sensíveis, que não podem ser licenciados para uso por terceiros para treinar IA, sem as devidas precauções”. Assim, tais acordos podem estar violando a legislação europeia de proteção de dados e os signatários podem vir a ser submetidos a sanções. O GEDI, que publica entre outros os jornais La Republica e La Stampa, assim como diversos outros publishers europeus e norte-americanos, assinou acordo de licenciamento de conteúdo com a OpenAI, proprietária do ChatGPT, em setembro. De acordo com Luiza Jarovsky, que tem uma newsletter sobre IA e legislação, se a justiça de algum país europeu como a Itália definir que esse tipo de acordo é ilegal – em suma, o que sustenta a corajosa GPDP –, outros modelos de negócios por trás dos LLMs também podem ser ilegais, pois as obrigações e direitos básicos de proteção de dados provavelmente também não estão sendo respeitados. Ou seja, esse tipo de decisão poderia gerar uma espécie de efeito bola de neve que não apenas inviabilizaria o funcionamento dos grandes modelos de linguagem como eles são hoje em dia como também os acordos que bem ou mal estão gerando algum retorno financeiro para os publishers que produzem e publicam conteúdo na internet. Isso não vai ocorrer hoje nem amanhã e provavelmente as grandes plataformas de IA vão dar um jeito de escapar de sanções que inviabilizem seus incensados produtos, mas convém ficar ligado e acompanhar os próximos capítulos deste tipo de discussão. (GC)


🌱 Melhor fugir das notícias. Um texto de Paula Miraglia na revista Gama deu o que falar nesta semana. Nele, a cofundadora e ex-CEO do Nexo jornal mostrou empatia por 47% da população brasileira que, segundo o Reuters Institute, prefere evitar as notícias – o tal fenômeno da news avoidance. Talvez o que tenha causado surpresa é que uma bem-sucedida empreendedora de mídia concorde que fugir das notícias seja a melhor coisa que poderíamos fazer no momento. Miraglia admitiu que o título do artigo foi quase um caça-cliques. Na verdade, além de citar um monte de deprimentes acontecimentos recentes noticiados pelos jornais e que podem dar motivo para a news avoidance, ela elenca uma série de motivos para a crise: entre outros, a “falência do modelo de negócios do jornalismo, mudanças no comportamento do consumidor de notícias, falta de confiança nos meios de comunicação e novos lugares de autoridade e alcance quando falamos de produção e circulação de informação”. Ela busca na memória passagens de uma época em que o jornalismo era muito mais relevante do que é hoje: uma foto de capa da Folha de S. Paulo com a multidão em um comício do movimento Diretas Já! e uma investigação que levou Jânio de Freitas a antecipar nas páginas de classificados do jornal o resultado de uma licitação.

“Me lembro de acompanhar completamente encantada a ideia de que havia algo tão engenhoso e poderoso, capaz de fazer denúncias dessa magnitude. Infelizmente, o jornalismo não ocupa mais esse lugar. Perdeu relevância e autoridade e, junto com isso, vem perdendo muito dinheiro. Uma ‘tempestade perfeita’ que faz com que estejamos diante do risco de um evento de extinção em massa.”

Miraglia defende que a imprensa repense fundamentalmente a relação com o seu público e busque maior independência diante das plataformas de tecnologia, donas de um verdadeiro oligopólio das receitas publicitárias do ambiente digital, além de tentar recuperar a confiança perdida com erros do próprio jornalismo. “Não podemos esquecer que no meio de uma pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil, onde a desinformação teve papel chave, alguns dos principais jornais brasileiros publicaram anúncios de tratamento precoce, para o qual não há comprovação científica. O anúncio foi patrocinado por uma associação de médicos com reconhecido viés político. Todo mundo tem que pagar as contas, mas também temos escolhas a fazer”, escreveu antes de citar trabalhos importantes do jornalismo independente brasileiro como a investigação da Agência Pública que revelou um esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes criado e mantido pelo fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, dentro da própria empresa. “Num país onde o mercado de comunicação é extremamente concentrado, os meios de comunicação estão sendo capturados por interesses políticos, religiosos e comerciais, e temos cada vez menos leitores. O futuro do jornalismo e das notícias não é um problema dos jornalistas, mas de todos nós.” (GC)


🌱 “Muitos repórteres estão escrevendo ficção”. Pegando o gancho do bloco anterior, talvez devamos olhar para o fenômeno da evitação de notícias menos como um problema das pessoas e mais como um problema do jornalismo. Neste artigo para a The Atlantic, Noah Hawley, cineasta e criador da série Fargo, traz um argumento interessantíssimo. Ao considerar o papel do autor na cultura, primeiro vêm as notícias, depois vem a história e, por último, a ficção. “Mas, nos últimos 10 anos, notei algo a princípio intrigante, depois alarmante. Fato e ficção estão trocando de lugar na sequência”, diz. E dá dois exemplos de acontecimentos nos EUA.

Em 2016, um âncora da CNN afirmou, em entrevista com o político republicano Newt Gingrich, que os crimes violentos estavam diminuindo em todo o país. Gingrich retrucou, dizendo que essa era apenas uma "visão" e que as pessoas "se sentem mais ameaçadas". O âncora da CNN insistiu, já que os fatos não sustentavam a afirmação do republicano, que disparou: "Como político, vou com o que as pessoas sentem e vou deixar você com os teóricos". Hawley observa que este foi um sinal de que “estávamos mudando, talvez já tivéssemos mudado, de um mundo baseado em fatos para um mundo fictício, onde o que as pessoas sentem sobre o crime é tão real quanto o crime em si”.

Outro sinal foi a rápida proliferação de narrativas alternativas. O cineasta relembra o 11 de setembro que, primeiro, teve uma cobertura baseada nos fatos para, só mais tarde, emergirem as teorias da conspiração. Corta para o 6 de janeiro, um acontecimento que se desenrolou como fato e ficção simultaneamente.

“Enquanto a grande mídia nos mostrou imagens de apoiadores de Donald Trump invadindo o Capitólio em tempo real, a Fox News, outros veículos de comunicação de direita e as mídias sociais disseram às pessoas que o tumulto que estavam assistindo era, na verdade, obra da antifa. E assim, diante de nossos olhos, a versão fictícia do momento nasceu no mesmo instante que a realidade”.

Olhando para a cobertura atual, Hawley afirma que cada nova nomeação para o gabinete de Trump produz especulações sobre “soldados nas ruas, 10 milhões de migrantes deportados, Nancy Pelosi jogada na prisão”. Trump, de fato, ameaçou fazer todas essas coisas, que não são improváveis. “Mas sua discussão exaustiva, na mesma imprensa que relata os fatos do dia, confunde os cidadãos sobre o papel que a mídia de notícias deve desempenhar em nossa sociedade – relatar os fatos e deixar o público formar uma opinião”, defende.

E conclui:

“Especulação não é a função do jornalismo. É o que um cérebro ansioso faz, preocupando-se com todas as maneiras pelas quais as coisas podem dar errado. (...) Não é que as organizações de notícias estejam inventando a ameaça à democracia. Meu ponto é que quando elas enchem seus feeds com "e se", elas degradam o exercício do jornalismo, transformando notícias em fofocas e jornalistas em comentaristas”.

(LV)


🌱 Uma ferramenta para avaliar a relevância de uma notícia para a audiência. Não existe solução mágica para isso, claro. Mas o analista de mídia Thomas Baekdal personalizou o ChatGPT de uma forma bastante interessante, utilizando alguns modelos que ele havia criado anteriormente para analisar o quanto uma notícia é relevante e útil para a audiência. Neste texto, ele explica o passo-a-passo da criação do Baekdal's News Analyzer (é preciso ter uma conta na OpenAI para acessar). Basta inserir a notícia que você deseja, o que pode ser feito por meio de um link, de um arquivo ou copiando e colando o texto. Eu testei com uma notícia da Folha e, por conta do paywall, tive que utilizar a última opção. Aí é só apertar “enter”. Apesar de o ChatGPT ler o texto em português, as respostas são em inglês. Como mencionei, fiz um teste com esta notícia que estava na homepage da Folha nesta sexta de manhã: “Governo sanciona lei que proíbe celulares em escolas de São Paulo a partir de 2025”. Primeiro, aparecem informações simples de metadados, como título, linha fina, autor, data e cidade. Já achei interessante porque o ChatGPT não só disse que a cidade primária é São Paulo, mas acrescenta que a notícia “menciona discussões federais/nacionais e comparações com tendências internacionais”. Em seguida, uma lista das pessoas citadas na notícia, com descrição de quem são: o governador Tarcísio de Freitas; a deputada estadual Marina Helou, que propôs a lei; e o presidente Lula, que é citado quando a matéria informa que já existe um projeto de lei federal sobre o mesmo assunto. Não há citações (“aspas”) das fontes, e o ChatGPT informa isso. A matéria realmente se baseia no texto do projeto, mas não há entrevistas com, por exemplo, Tarcísio, Marina ou até mesmo com pais e educadores – o que, na minha avaliação, é bastante necessário e tiraria o tom burocrático do texto. Uma lista com os principais tópicos da notícia, seguida de um parágrafo de resumo complementam essa parte inicial. Li, comparei com o texto da notícia e não encontrei erros ou interpretações equivocadas. No “modelo de necessidades do usuário”, o objetivo principal é o de “informar” e o secundário, de “educar”. A meu ver, ambos pertinentes. Em “modelo de relevância”, a classificação é “impacta o leitor indiretamente”, por afetar principalmente estudantes, pais e educadores de SP. Quem deve tomar alguma ação? “Autoridades educacionais locais (para estabelecer protocolos) e escolas (para implementar medidas)”, informa, corretamente, a IA. O tom é “neutro, mas ativo”, porque descreve as etapas de implementação da medida. O “imediatismo” é de longo prazo, pois vai valer a partir de 2025 (aqui eu mudaria para médio prazo, já que estamos quase em 2025). Por último, em “análise do contexto do leitor”, se for de SP, “diretamente relevante, pois a lei afetará escolas e famílias locais”; se fora de SP, “relevante como tendência de política educacional, especialmente se medidas semelhantes estiverem sendo consideradas em outros lugares”. Gostaram? Eu achei bem interessante, até como metodologia de pesquisa acadêmica. Baekdal faz algumas ressalvas, como o fato de o ChatGPT não entender o que é jornalismo – “ele está apenas fingindo de uma forma muito convincente”; e questões relacionadas a direitos autorais. (LV)


🌱 Para ler no fim de semana


💎 News Influencers com e sem background jornalístico: qual a diferença? Semana passada eu apresentei os principais resultados de um estudo do Pew chamado America’s News Influencers, sobre a ascensão dos influenciadores no ecossistema midiático norte-americano. Em nossa leitura, destacamos, entre outros highlights, que cerca um em cada cinco pessoas nos EUA recebem notícias de influenciadores regularmente. No final da análise, perguntei sobre qual capítulo deveríamos nos debruçar hoje. Nossos apoiadores escolherem saber mais sobre a diferença entre os influenciadores que têm ou tiveram alguma ligação com o organizações jornalísticas daqueles sem relação com o jornalismo. (MO)

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🌱 Como algoritmos escolhem metade do conteúdo que é mostrado na homepage do NYT. Você sabia disso? Algoritmos editoriais influenciam a curadoria dos assuntos e das manchetes que ocupam quase 50% do espaço da capa da versão online do jornal mais importante do mundo, o New York Times – o próprio jornal publicou um texto que explica tintin por tintin o processo. Confesso que quando comecei a lê-lo, deu um friozinho na barriga: eu e o Moreno estávamos no Terra quando, ali por 2012-2013, o portal implantou um esquema de curadoria por algoritmos de praticamente toda a home para apresentar para os usuários as matérias pelas quais, em tese, eles se interessariam mais. Foi o começo do fim do megaportal como ele era. Mais de 10 anos depois, o esquema do NYT é bem diferente e ainda se baseia MUITO na seleção humana tanto com o uso de critérios jornalísticos na programação dos algoritmos quanto na decisão final do que realmente vai ou não para a homepage. O conteúdo dos módulos mais nobres, digamos assim, da capa ainda são 100% selecionados por editores humanos. O processo do resto inclui três etapas: (1) a seleção de um conjunto de histórias elegíveis para um módulo específico, (2) o ranqueamento delas de acordo com informações contextuais do leitor, tais como o seu histórico de leitura e a sua geolocalização, e (3) a finalização com a aplicação de guardrails editoriais e regras de negócios (por exemplo, se uma matéria já foi lida por aquele leitor, ela sai da classificação) para garantir que o resultado final das histórias atenda aos padrões do jornal. Para atender a experiência desejada com os algoritmos, o jornal desenvolveu alguns recursos: 'aumento de exposição', que faz o impulsionamento humano de uma história por um tempo até ela começar a perder importância no módulo; 'atualização inteligente', que remove artigos vistos pelo usuário várias vezes, mas que não foram clicados por ele; 'mínima exposição', que garante que todas as histórias tenham uma exposição mínima na homepage antes dos algoritmos entrarem em cena, entre outros. Os módulos com curadoria algorítmica são fixos. O próximo passo a ser explorado é testar o reordenamento automático desses módulos com base em uma mistura de importância editorial, engajamento e sinais de personalização. O NYT pretende dar esse passo com bastante cautela e sempre com editores humanos tendo a palavra final. O correto. (GC) 


🌱 Muito além das notícias. Diversificar as fontes de receita tem sido um mantra repetido há anos em relatórios e pesquisas sobre sustentabilidade das organizações jornalísticas. Mas parece que há um movimento – feito pelos grandes veículos – que dá um passo além e aposta na estratégia de gerar uma oferta de valor que independe do ciclo de notícias. Neste texto, Mauricio Cabrera afirma que se trata de uma “ruptura paradigmática com relação ao que sempre foi o jornalismo”. No início deste mês, o lançamento do novo app do New York Times exemplifica bem essa tendência, materializada nas aquisições feitas nos últimos anos (The Atletic, Wirecutter e Wordle são alguns exemplos). Ao deslizar para a direita, o leitor encontra jornalismo; para a esquerda, vê jogos, esporte, receitas e recomendações de produtos. É o conceito “All In”, que promove a ideia de que existe um produto do NYT para cada momento da vida. Nesse pacote, “notícia” é apenas um dos itens. Esta reportagem da Vanity Fair traz o depoimento de um funcionário do jornal, que brincou: “O Times agora é uma empresa de jogos que também oferece notícias”. Seguindo o movimento, o Guardian lançou, na semana passada, o Filter, um guia para análises de produtos e conselhos de compra. Observem a parte final do texto de divulgação: “O Filter fornece uma plataforma para o melhor do nosso jornalismo de consumo, aprofundando nossos relacionamentos de confiança com os leitores, ao mesmo tempo em que abre um novo fluxo de receita para dar suporte ao nosso jornalismo”. Também o Washington Post, que tem enfrentado uma queda no número de leitores, parece ir em direção a novas aquisições. Esta matéria do NYT afirma que o novo presidente-executivo do Post, Will Lewis, tem o aval de Jeff Bezos para fazer o jornal crescer, inclusive por meio de aquisições. Vejam este trecho:

“Na busca por acordos, o The Post está seguindo os passos de outras empresas de mídia, incluindo o The New York Times e o The Wall Street Journal, que compraram empresas que complementam seus negócios principais de notícias. O objetivo é criar um negócio crescente baseado em assinaturas que seja isolado dos caprichos do ciclo de notícias, que pode aumentar e diminuir ao longo do ano”.

É uma inversão na dinâmica da mídia, avalia Cabrera. As atividades complementares ao jornalismo como “core bussiness” se tornam protagonistas, enquanto o ciclo noticioso passa a coadjuvante. (LV)


🌱 Como conectar-se com a audiência no TikTok. Com um público crescente para notícias, como apontou o Digital News Report deste ano, o TikTok merece atenção. Neste texto para o Digital Content Next, o professor Damian Radcliffe mostra quatro caminhos para alcançar novos públicos (principalmente os mais jovens) por meio do TikTok. O primeiro deles se refere à importância dos comentários. Radcliffe afirma que é um equívoco ver o TikTok apenas como uma plataforma “passiva e relaxante”. E cita esta pesquisa da empresa Weber Shandwick, que aponta para um consumo engajado e intencional. A professora Claire Wardle, que participou da pesquisa, explica que a audiência comenta no TikTok para dizer se concordam ou não, para observar outros comentários e usar insights, etc. Esse comportamento é uma parte intrínseca da experiência na plataforma, diz Wardle. Radcliffe acrescenta que, para as organizações jornalísticas, isso significa que o engajamento no TikTok deve ir além de apenas criar conteúdo. Uma forma de fazer isso é com “criadores jornalistas” (como fez de forma pioneira o WPost, por exemplo), ao invés de responder com a marca fria do veículo. No entanto, o professor destaca que é importante criar um protocolo para engajamento nos comentários, para evitar trolls e outros problemas. Autenticidade é a segunda orientação de Radcliffe para as conexões entre público e mídia no TikTok. E como esse comportamento passa por uma linguagem mais informal e próxima das pessoas, trata-se de um desafio para os veículos. “O TikTok não é um lugar óbvio para o Wall Street Journal ou a CNN aparecerem. Isso se baseia em parte no estilo de conteúdo, nas preferências do usuário – que gostam de criadores independentes – e na percepção de que os veículos de mídia parecem estar se esforçando demais para se encaixar”, diz o texto. O sucesso do algoritmo da aba “For you” é o terceiro aspecto que merece destaque. Radcliffe cita uma pesquisa do Pew Research Center, que revelou que 40% dos usuários dizem que esse conteúdo “For you” é extremamente ou muito interessante para eles, enquanto apenas 14% disseram que não era relevante para eles. O professor lembra do perigo das bolhas, mas argumenta que, em vez de lutar contra as câmaras de eco, os publishers “podem querer apenas se inclinar para elas. Isso pode significar produzir mais conteúdos não noticiosos, de nicho para públicos específicos, evergreen ou materiais além do ciclo diário de notícias”, afirma. Por fim, o TikTok se tornou uma arena importante para consumir notícias e discutir questões sociais – e isso é ótimo para as redações. No entanto, o relatório da Weber Shandwick mostra que muitos desses conteúdos não vêm de marcas de notícias tradicionais, e sim de criadores e comentaristas individuais, que conduzem muitas dessas conversas. Fazer parcerias com esses influenciadores pode ser uma saída para os publishers, aponta Radcliffe. Em resumo, aqueles que veem o TikTok como apenas mais uma saída para distribuir seu conteúdo podem ter dificuldades para causar impacto ou forçação de barra “Como você aparece de uma forma que não pareça um pai dançando no casamento?”, pergunta Claire Wardle. (LV)


🌱 Jornalismo tem futuro? Essa pergunta conduziu o debate promovido em 11 de outubro pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). O convidado para a conversa foi o jornalista Pedro Doria, idealizador do Canal Meio, uma plataforma de produção de conteúdo jornalístico existente há oito anos. As professoras Suzana Barbosa e Lia Seixas, do Póscom da Universidade Federal da Bahia (UFBA), assumiram o papel de debatedoras, na mesa mediada por mim. Em duas horas de debate, foram tratadas questões importantes, como a trajetória histórica do jornalismo como agente de fiscalização dos poderes e discussão das questões públicas, sua sustentabilidade financeira e os desafios e ameaças impostos à prática profissional no contexto das transformações tecnológicas. Foi ressaltado como as mudanças impactaram diretamente o modelo de negócios da imprensa tradicional e a busca por modelos de financiamento alternativos, fundamentais para garantir a independência editorial. Doria destacou a diferença entre financiamento público e estatal, ressaltando a necessidade de independência para um jornalismo de qualidade. Sobressaiu entre as três visões apresentadas o consenso de que a democracia não se sustentará se não houver jornalismo de qualidade. Dentre as soluções apresentadas para a pergunta destacou-se principalmente a necessidade de enfatizar o empreendedorismo na formação. Talvez o principal mérito da iniciativa da mesa virtual tenha sido o alcance a um público diversificado, reunindo pesquisadores/as consagrados/as, estudantes de graduação e o público em geral em torno desse debate, além da aproximação entre teoria e prática. Nada mais importante, visto que os impactos sociais dessas mudanças são igualmente disseminados. (MM)



Entenda o que é FM estendida, faixa que vai abrigar rádios que migrarem do AM para o FM

Paloma Custódio

Desde 2013, foram publicados decretos para facilitar a migração das emissoras de rádios que transmitem em AM para a faixa FM. O objetivo é melhorar a qualidade do som, já que as transmissões em AM sofrem com interferências e ruídos. Com isso, a Anatel destinou, para essas emissoras, uma faixa estendida que vai de 76,1 a 87,5 megahertz, já que que muitas regiões urbanas já tinham as respectivas frequências FM convencionais ocupadas. Confira os detalhes na reportagem.

Desde 2013, foram publicados decretos para facilitar a migração das emissoras de rádios que transmitem em amplitude modulada (AM) para a faixa de frequência modulada (FM). Dentre eles, o decreto nº 8.139/2013 tinha o objetivo de melhorar a qualidade do som, já que as transmissões em Ondas Médias — modalidade que usa modulação em amplitude (AM) — sofriam com interferências e ruídos, além de não serem tão populares entre os jovens, que preferem rádios em FM. 

Em 2023, um outro decreto (nº 11.739) foi publicado para resolver o problema das rádios que ainda transmitiam em ondas curtas (OC) e tropicais (OT), que também usam modulação em amplitude, permitindo que elas migrassem para a faixa FM. Com isso, a Anatel destinou uma faixa estendida para essas emissoras, entre 76,1 MHz e 87,5 MHz, já que que muitas regiões urbanas já tinham as respectivas frequências FM convencionais ocupadas de 87,7 MHz a 107,9 MHz.

A professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) Nélia Rodrigues Del Bianco ressalta que apenas as emissoras AM de abrangência nacional devem permanecer ainda no dial. Já as locais são obrigadas a migrarem para o FM ou mudarem de categoria, como a regional, por exemplo.

“É preciso destacar que o rádio AM no Brasil foi perdendo prestígio e competitividade ao longo do tempo por três fatores: a perda da qualidade do som; a popularização do uso de celulares, que não captam emissoras AM; e a perda de financiamento publicitário e audiência. Problemas tecnológicos relacionados à sujeira no espectro radioelétrico também contribuíram com essa perda significativa de qualidade do serviço AM em todo o país.”

Segundo a professora, “o crescimento urbano provocou um aumento do nível de ruídos, interferências e poluição na faixa de ondas médias. Equipamentos e sons — como eletrodomésticos, fábricas, linhas de transmissão e até o roncar dos motores de veículos — provocam excesso de ruídos que interferem na propagação das ondas eletromagnéticas do AM, especialmente na recepção móvel”.

Aparelhos de rádio com receptores para FM estendida

A extensão da FM permite que mais emissoras de rádio tenham acesso ao dial, aumentando a diversidade da programação. Segundo o Ministério das Comunicações, dos mais de 1.600 pedidos de migração do AM para o FM, cerca de 400 devem ir para a faixa estendida. 

De acordo com o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo, o país possui 38 estações de rádio ativas na faixa estendida de FM, conhecida como eFM. São Paulo lidera, com 24 estações; seguido por Rio Grande do Sul, com seis; Paraná, Pernambuco e Rio de Janeiro, com duas cada; Minas Gerais e Distrito Federal, com uma cada.

Entre os destaques estão a Rádio Nacional, Rádio MEC e Rádio Manchete, no Rio de Janeiro; Rádio Bandeirantes, Rádio Capital e Rádio Jovem Pan News, em São Paulo; Rádio Itatiaia e Rádio Inconfidência, em Belo Horizonte (MG); Rádio Clube e Rádio Jornal, em Recife (PE); entre outras.

O problema é que a maioria dos aparelhos de rádio atualmente ainda não possuem receptores compatíveis com essa nova faixa da FM estendida. Por isso, um projeto de lei (PL 2096/24), em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe que todos os aparelhos de rádio produzidos no Brasil possam operar nessa frequência. 

Essa determinação já foi estipulada por uma portaria interministerial (MDIC/MCTIC nº 68/2017) e está em vigor desde 2019. Mas o autor do PL, o deputado federal Cezinha de Madureira (PSD-SP), quer incorporar essa obrigação ao Código Brasileiro de Telecomunicações para garantir mais segurança jurídica.

Para a professora Nélia Rodrigues, a portaria sozinha não é suficiente.

“A lei também tem a sua importância, porque é uma garantia de cumprimento da norma pela indústria de produção de aparelhos receptores de rádio. E ela também dá segurança à [rádio] migrante, porque ela terá a garantia que sua emissora será ouvida na frequência expandida.”

A especialista em comunicação ressalta que a norma pode tornar a produção brasileira mais competitiva aos modelos internacionais.

“No segmento automotivo, a Pioneer — líder mundial no setor — lançou em 2018 o modelo DEH-X500BR que, entre outros recursos, já vem com a faixa estendida do FM. O rádio também conta com a tecnologia RDS 7, sistema que oferece informações de texto juntamente com a recepção de FM. Na Hyundai, o modelo HB20 já conta com a faixa estendida desde 2015. Também da Hyundai, o Creta, lançado em 2017, igualmente já vem com o novo tipo de receptor.  O Hyundai ix35, o Hyundai New Tucson e a camioneta Hyundai HR, modelos importados da montadora, também apresentam a novidade. Na Ford, os novos modelos EcoSport e da Linha Ka já possuem receptores que operam na faixa estendida de FM.”

Para uso doméstico, Nélia Rodrigues destaca os aparelhos da Motobrás. Já para os smartphones, “uma opção é buscar a chamada ‘banda japonesa’ do aparelho, que apresenta sintonias entre 76.0 a 90 MHz. Aparelhos comercializados no Brasil já vêm configurados para as chamadas ‘banda americana-América do Sul’ de captação em FM e, em muitos desses receptores, é possível fazer a troca de banda no menu de configurações do rádio”, explica.

O PL 2096/24 aguarda parecer do relator na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados. Para virar lei, a proposta ainda precisa ser aprovada pelo plenário da Câmara e do Senado e sancionada pelo presidente da República.


Fonte: Brasil 61


❄️ Perigos da IA como fonte de informação. Pesquisas têm mostrado que o uso de LLMs como o ChatGPT para o consumo de notícias ainda é baixo. Mesmo assim, não é raro que a própria imprensa caia na tentação de "entrevistar" os novos grandes modelos de linguagem sobre algum assunto e apresentar os resultados de forma acrítica destacando apenas a curiosidade do material gerado. A professora Beth Saad, da ECA-USP, e o mestrando João Pedro Maiar, da mesma instituição, criticaram esse uso do ChatGPT por parte dos jornalistas a partir de uma matéria da Folha de S. Paulo que publicou o que o LLM mais popular da atualidade disse sobre os dois principais candidatos a prefeito de São Paulo nas próximas eleições. 

Para os pesquisadores, "é importante que o jornalismo evite simulacros em nome da captura de uma audiência perdida". Eles acreditam que esse tipo de uso da IA afeta a marca de uma organização de notícias. "O resultado pode ser superior em termos de audiência, mas é infinitamente pior em termos de reputação." Saad e Maiar vão além:

"O erro mais grave, porém, está na naturalização. Naturalização desse tipo de IA como uma fonte de informação – que, frisamos, não é o caso. É verdade que o jornalismo não tem mais o grau de impacto na opinião pública que tinha no passado, em um cenário exacerbado de descrença na população e polarização de ideias. Mas também é verdade que o peso dos veículos ainda é relevante na esfera pública, o que exige cuidado e responsabilidade."

Uma nova pesquisa comissionada pelo Reuters Institute, aliás, questionou grupos relativamente pequenos de mexicanos, britânicos e americanos (15 pessoas de cada nacionalidade) sobre como se sentem em relação à inovação alimentada pela IA no jornalismo. Em suma, (1) as atitudes gerais em relação à IA são significativamente moldadas por narrativas culturais mais amplas; (2) fatores de nível individual condicionam como as pessoas entendem o uso de IA generativa nas notícias; (3) os níveis de conforto com o uso de IA no jornalismo variaram consideravelmente entre as distintas aplicações da tecnologia; (4) a maioria vê a supervisão humana como imperativa para a aplicação responsável da IA; (5) a divulgação do uso de IA requer uma abordagem diferenciada. (GC)


❄️ Adoção da IA generativa nas redações tem sido lenta (e há vários motivos para isso). A INMA publicou essa semana um texto que compila dados de vários questionários diferentes feitos com editores que apontam para a direção da adoção bem lenta e gradual da IA generativa nas redações. Há diversos motivos para isso: 1) as organizações ainda estão navegando por uma fase de descoberta, entendendo a complexidade das implementações no mundo real: é possível entregar resultados comerciais repetíveis e confiáveis ​​com a IAgen? Fica a pergunta; 2) os ganhos de produtividade prometidos pela IA não parecem ser tão revolucionários como o prometido pelas grandes plataformas donas dos principais modelos de base; 3) as redações estão cada vez menores e os integrantes das equipes mais sobrecarregados: nesse cenário, aprender a usar novas ferramentas pode ser um processo muito trabalhoso e, mesmo que as organizações desenvolvam programas de treinamento, convencer os jornalistas a dedicarem mais tempo a isso em vez de executarem as tarefas do dia a dia se torna um grande desafio; 4) falta de confiança nos resultados gerados pela IA generativa também é uma grande barreira para o seu uso mais disseminado: checar se os conteúdos gerados são críveis pode se tornar um trabalho tão ou até mais penoso do que simplesmente fazer o trabalho pelas vias tradicionais; e 5) dificuldade de estimar um retorno no investimento de adquirir novas capacidades em IA.

Por outro lado, um novo estudo publicado na revista Science estima que apenas 16,7% das tarefas comuns da profissão de "analistas de notícias, repórteres e jornalistas" não podem ser ajudadas por LLMs e que 43,3% das tarefas se beneficiarão de LLMs atuais - os 40% restantes das tarefas podem se beneficiar de LLMs quando software adicional for fornecido. Para "editores", estima-se que 23,8% das tarefas da profissão não podem se beneficiar do uso de LLMs: 52,4% se beneficiando dos modelos atuais e 23,8% apenas quando software adicional for incluído.

"Essas estimativas sugerem que a IA tem o potencial de mudar significativamente como esses trabalhos são feitos", afirma Nick Diakopoulos, da Northwestern University, que analisou o estudo. "Elas também podem ser criticadas: sou cético, por exemplo, sobre se os pesquisadores realmente capturaram a noção correta de 'qualidade' para classificar tarefas jornalísticas. Nossa própria pesquisa com a AP sugere que, por mais que a IA generativa possa oferecer ganhos de eficiência, ela também pode criar mais trabalho na forma de criação de prompts e edição de resultados." (GC)


❄️Biden pegou a mídia de calças curtas. Joe Biden deu à imprensa progressista o que ela pedia desde o desastroso debate presidencial de 27 de junho (falamos a respeito na NFJ#470), mas não do jeito que ela queria. No último domingo, dia em que as redações normalmente estão mais desfalcadas de jornalistas, o atual presidente dos Estados Unidos publicou no X/ex-Twitter uma carta impressa bem à moda antiga anunciando a decisão. O anúncio, em si, não surpreendeu tanto. Mas a notícia gerou um "terremoto político", como descreveu o Poynter, que precisava ser analisado a fundo pela mídia. Segundo o texto, curiosamente, coube a Jen Psaki, ex-porta voz de Biden, fazer o anúncio na MSNBC, uma das primeiras redes de TV a darem a notícia. O New York Times descreveu a cena assim:

"Ela leu a carta dele em voz alta no seu iPhone, olhando para o dispositivo enquanto a câmera se mantinha firme. Psaki manteve a calma, embora parecesse um pouco emocionada minutos depois, admitindo aos telespectadores: ‘Eu mesma ainda estou digerindo tudo isso'".

Cerca de 30 minutos depois do primeiro anúncio, na mesma rede social, Biden endossou a candidatura de sua vice-presidente Kamala Harris para substituí-lo na disputa. A forma como os anúncios foram feitos causou um problema para a mídia. Faltou conteúdo visual - ainda mais depois de uma semana com material impactante de sobra do atentado a Donald Trump. E até se suspeitou que a conta do presidente no X podia ter sido hackeada e o anúncio não ser verdadeiro.

"Os programas de notícias na TV a cabo, especialmente quando cobrem eventos ao vivo ou notícias de última hora, contam com o vídeo de uma cena e suas consequências para fornecer o importante fio de conexão entre os talk shows e as atualizações dos âncoras. Sem nenhum vídeo no domingo além de imagens antigas de Biden, os canais de notícias tiveram que se desdobrar", escreveu David Bauder, da Associated Press. "E ainda tiveram que se esforçar para encontrar pessoas que pudessem falar sobre o assunto. O próprio correspondente da CBS na Casa Branca, Ed Keefe, parecia sem fôlego quando foi contatado ao telefone." Uma pequena vingancinha de Biden contra quem pediu sua desistência? Talvez. 

No NiemanLab, Joshua Benton escreveu sobre as muitas formas que os americanos acabaram recebendo a primeira notícia da desistência de Biden: "de um milhão de maneiras diferentes", inclusive por memes nas redes sociais. Os memes de Kamala Harris, inclusive, estão em alta. E, no NYT, James Poniewozik opinou que a desistência de Biden depois de um debate televisivo mostra que a TV ainda é a principal arena política mesmo em tempos de redes sociais e fragmentação do consumo de notícias. (GC)


❄️ Jornalismo digital no Brasil faz 30 anos em 2025, liderado por mulheres. Dos 164 meios nativos digitais ativos no Brasil, mais de 80% têm pelo menos uma mulher em sua equipe de fundadores, e 44% foram fundados exclusivamente por mulheres. É o que mostra um estudo do Projeto Oasis, realizado pela SembraMedia e pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor). Carolina de Assis entrevistou algumas dessas mulheres para esta matéria da LatAm Journalism Review. Tai Nalon, que tinha 28 anos quando fundou com dois colegas o Aos Fatos, diz que poucas pessoas levaram a sério sua ideia de fundar e liderar uma organização de checagem de fatos. Maria Vitória Ramos, cofundadora e diretora executiva do Fiquem Sabendo, conta que no começo sentia certo desconforto em se denominar cofundadora ou diretora de sua organização, e foi com o apoio de outras mulheres que conseguiu se apropriar do lugar que ocupa. Este texto do Alma Preta repercutiu o estudo e destaca os relatos em comum de superação de inseguranças, machismo e modelos de liderança tradicionalmente masculinos. Essa revolução do jornalismo digital brasileiro começou há quase 30 anos. Em 2025, serão três décadas de presença jornalística na internet no país. Em entrevista ao Canal Meio, o professor da Universidade do Texas Rosental Alves afirma que estamos hoje em um outro ponto de transição profunda (o primeiro foi a própria criação da internet).

“Eu achei que esse ponto de inflexão seria o metaverso. Mas não estava tão errado, porque o boom fascinante e perigoso da inteligência artificial generativa dá os incentivos e está desenvolvendo as capacidades computacionais necessárias para o metaverso e para a Web 3. Estou cada vez mais convencido de que nós vamos entrar numa lógica de segurança, baseada em clockchain e em outras tecnologias, que vão ser muito diferentes do que existe hoje”.

Rosental Alves afirma que a mudança do ecossistema vai ser cada vez mais radical e, por isso, o jornalismos precisa parar de resistir à inovação. Ele cita um estudo que está desenvolvendo, junto com a Unesco, sobre os influenciadores. “Os jornalistas veem os influencers hoje como viam os bloggers, afirmando ‘isso não é jornalismo’. Nós precisamos redefinir o que é jornalismo”, defende. (LV)


❄️ ReleaseGate e a relação de assessores de imprensa com jornalistas. Não é muito comum aqui na NFJ falarmos sobre o trabalho das assessorias de imprensa porque, como curadores, nos deparamos com pouco material sobre o assunto. Por isso, esta entrevista do jornalista Armindo Ferreira com Fernanda Lara, CEO do I'max, nos chamou atenção.  Ferreira deu o nome de ReleaseGate à discussão que rolou no LinkedIn sobre o volume de sugestões de pauta recebidas pelas redações. Mesmo para quem não esteve a par do debate, a reclamação é bastante familiar, né? E Fernanda traz argumentos bem interessantes. Segundo ela, as agências de RP precisam mudar a forma de fechar contrato com os clientes, pois muitos são baseados na quantidade de textos produzidos por mês (o que faz encher a caixa de e-mails dos jornalistas). Ela prossegue:

“Do outro lado, as redações precisam parar com esse mantra de que não precisam de conteúdo vindo das agências e dos clientes. Estou trabalhando numa equação matemática para provar como os releases dão audiência para os veículos. Pelo pouco que já sistematizei, posso afirmar que a audiência vinda de releases não pode ser desconsiderada. Se, no fim do dia, o assunto do lado das redações é sobre sobrevivência financeira por meio de visitas em páginas de notícias, a agência de RP tem um papel essencial. Não é protagonista, mas está longe de ser desacreditada como vetor de audiência da forma como alguns jornalistas escreveram em seus perfis. (...) Se desaparecerem todos os releases da caixa de e-mail dos jornalistas, o peso sobre como fazer o jornalismo dar certo ainda estará lá, sobre os ombros dos profissionais”.

Fernanda Lara ainda toca num ponto crucial. Antes da pandemia, havia mais meios para contatar o jornalista - por exemplo, o telefone da redação e eventos de relacionamento. Assim, o assessor de imprensa soltava o release e tentava melhorar o destaque da pauta por meio do follow up na ligação. Mas hoje, com as redações híbridas ou totalmente em trabalho remoto, os assessores estão sem meios para falar com o jornalista facilmente.” “O reforço se dá por reenviar a mesma pauta inúmeras vezes na esperança de ser o e-mail mais recente na caixa do jornalistas”, explica. E tem mais: como as redações estão mais enxutas (leia-se, precarizadas), o mesmo jornalista aglutinou funções e temas de cobertura. Lara exemplifica:

“Não precisa ir muito longe: as mudanças editoriais que ocorreram no UOL em abril deste ano. Basicamente, os jornalistas teriam pautas volantes e poderiam mudar de editoria a cada dia, dependendo da demanda dentro da redação. Isso faz com que os assessores, mesmo aqueles mais cuidadosos, que vão procurar o perfil dos jornalistas antes de colocá-lo no mailing, criem listas maiores, pois não há a certeza de quem estará cobrindo aquele assunto no dia do envio do comunicado. Esse não é o único aspecto: são menos jornalistas com mais editorias, então aglutina mais e-mail na caixa do mesmo profissional”.

Faz sentido, né? Ela acrescenta que, com o corte nas redações jornalísticas, aumenta a oferta de assessores de imprensa com clientes que não têm um projeto de divulgação estruturado e que acabam entrando no modelo de produção de texto em escala. (LV)




Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


Quando a imprensa deixa de fazer seu papel e contribui com a violência policial

A imprensa brasileira tem um histórico de não responsabilizar os governantes pela violência estatal cometida diuturnamente contra populações pobres e racializadas. É como se o chefe do Executivo de qualquer nível não fosse o chefe e sim, uma figura simbólica como o rei da Inglaterra. Na história do Brasil, a cobertura de massacres contra populações pobres é ignorada e diminuída pela imprensa. Nosso diretor de redação, Fausto Salvadori, lembrou que o massacre de Canudos não respingou no presidente da época, Prudente de Moraes, que nem é lembrado por esse episódio. Presidentes, governadores, prefeitos são pouco questionados pela imprensa por violências praticadas por seus agentes ficando patente que a desumanização dos corpos pobres e pretos deste país. 


Na semana passada, a Operação Escudo, ação de vingança oficial da Polícia Militar do Estado de SP em comunidades da baixada santista, completou um ano e, até o presente momento, não se viu o governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, o suposto “bolsonarista moderado”, responsabilizado uma ação que matou 28 pessoas. Não houve perguntas incômodas, se é que alguém o entrevistou sobre o assunto. A Globo News, por exemplo, entrevistou o governador na semana que a Escudo completou um ano e não foi questionado sobre o tema durante os xx minutos de entrevista. 


E não é algo absurdo ou antiético de se fazer. Por exemplo, assisti a um vídeo nas redes sociais da jornalista afro-estadunidense, Rachel Scott, entrevistando o candidato à presidência do país, Donald Trump, durante o encontro da Associação Americana de Jornalistas Negros. Ela simplesmente lista uma série de declarações anteriores sobre líderes negros, seu apoio ao dia 6 de janeiro de 2021, manifestantes e contratações diversificadas. A resposta, claro, foi a la Trump: ele disse que ela foi “rude”, que a pergunta foi “horrível” e que foi o melhor presidente para a população negra. Mas ele respondeu.


Enquanto isso, o governador paulista fala: “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”. E não houve quem perguntasse se ele não se sentia responsável por essas mortes como chefe do Executivo. Ou quando Guilherme Derrite disse não saber que eram 56 mortos na Operação Verão, algum repórter poderia ter perguntado se ele não acompanha o que acontece em sua pasta. E esses posicionamentos têm sido adotados nas ruas pelos PM, demonstrando a responsabilidade do chefe do Executivo. Conforme a Ponte apurou, ativistas de movimentos sociais em visita a uma comunidade, acompanharam o relato de um comerciante que, ao filmar uma abordagem violenta a um jovem, ouviu do policial: “Filma mesmo. Manda para a ONU e para Liga da Justiça”. Quando não questionado, a imprensa se torna partícipe da violência policial. 


Certa vez, o repórter Geneton Moraes Neto expressou seu incômodo em como a imprensa era branda com figuras de autoridade durante uma entrevista a esta que vos escreve para o livro Mestres da Reportagem volume 1. Ele comparou a atuação dos jornalistas no Brasil com os americanos que, segundo ele, tendiam a fazer essas perguntas que podem constranger um político e até o presidente. “Eventualmente, pode parecer agressivo, mas é o papel da imprensa”.


Ao não fazer o seu trabalho, a imprensa está matando as vítimas mais uma vez ao não responsabilizar o chefe do Executivo estadual, como bem disse minha colega, Jennifer Mendonça, em uma reunião de pauta essa semana. A dimensão do que aconteceu foi diminuída como se os policiais tivessem feito por si só, como se não houvesse uma hierarquia que respondesse ao governador. 


Em uma das reportagens que a Ponte publicou na última semana sobre o tema, trazemos um vídeo da ativista Andreia MF, líder do Movimento Mães do Cárcere. Nele, Andreia teve a coragem de questionar e cobrar Tarcísio. “Eu estava cansada de gritar nas ruas, eu queria que ele ouvisse uma mãe”. 


Tanto o chefe do Executivo estadual quanto o responsável pela Segurança Pública do Estado referendaram pública e sistematicamente a violência durante tanto a Operação Escudo quanto a Operação Verão sem que fossem confrontados com suas próprias falas nas diversas entrevistas ao vivo que deram à imprensa hegemônica. Segundo fontes da Ponte, já se sabe que policiais têm usado os mesmos argumentos jocosos com a população, prova da validação que Tarcísio deu aos seus comandados. O que é segurança quando quem pratica violência é quem é pago para combatê-la? 


Quando a vida das pessoas é sangrada pelo Estado, os Executivos (Legislativos e Judiciários também) de todas as instâncias e de qualquer espectro político devem ser chamados a responsabilidade pela imprensa, sua participação nos malfeitos devem ser expostas, seus nomes devem constar nas manchetes, em entrevistas, essas lideranças devem ser questionadas. O jornalismo que não questiona e não responsabiliza quem fere a direito à vida não pode ser considerado jornalismo, pois fere o nosso próprio código de ética que está comprometido com os direitos humanos.


E nisso a Ponte é diferente. Quando um governante falta com a verdade, dizemos que ele mentiu. Quando há violência policial, chamamos o governo de plantão a responsabilidade, independente de suas cores políticas. Como o Fausto disse em um editorial de 2020: a Ponte não passa pano para ninguém. E termino este texto com um trecho do texto mencionado: “O que nos move é a luta pelos direitos humanos e não modulamos nossa cobertura de acordo com os partidos dos governantes que cometem as violações. Tratamos a todos como iguais, de um jeito que a Ponte sempre fez questão de fazer: nomeando os responsáveis pelos crimes”.

Fonte Portal Membro Ponte Jornalismo


❄️ Olimpíadas I: entre derrapadas e acertos. O maior evento esportivo do mundo trouxe de volta o espírito do tuiteiro raiz, que assiste a TV coletivamente. Tem sido muito divertido acompanhar os jogos e os comentários na rede social, vocês concordam? E é do Twitter/X que vem grande parte da curadoria deste bloco. Começamos com os acertos. André Rizek chamou atenção para a qualidade das capas dos cadernos olímpicos do jornal O Globo. As mulheres têm se destacado não só nas competições, mas também na transmissão jornalística. Este post do Globo Esporte destaca a presença de seis mulheres no estúdio comentando sobre futebol, basquete e handebol. No entanto, há ainda um longo caminho a ser percorrido até a igualdade de fato. Verônica Dalcanal, repórter da EBC, foi assediada por dois homens, que beijaram seu rosto durante uma transmissão ao vivo de Paris. Seguimos com as derrapadas. Na categoria “matérias irrelevantes”, destacam-se: Gaúcha ZH, que noticiou a curiosidade pelo time da surfista gaúcha Tati Weston-Webb que… não respondeu se é Grêmio ou Inter; Folha, que se preocupou em revelar que o ex de Rebeca Andrade não comemorou seu ouro nas redes sociais; e Cazé TV, que trouxe Diogo Defante tirando a camisa na zona mista para mostrar que estava vestindo um colant na entrevista com Rebeca Andrade. Parte da imprensa entrou na categoria “sensacionalismo”, pela “cobertura excessivamente dramática e desequilibrada”, segundo análise do jornalista Tiago Barbosa. Ele argumenta:

“A ‘obrigação’ de produzir relatos emocionados gera pedidos reiterados de abraços por jornalistas a competidores incrédulos quanto à fragilidade de quem entrevista. A pressão cai na galhofa involuntária quando respostas seguras e serenas de atletas de ponta quebram a expectativa por depoimentos lacrimosos. Rebeca Andrade dissipou o dramalhão sobre ‘o que se passa na cabeça antes da prova’ ao revelar pensamentos em receitas culinárias”. 

Na categoria “desinformação”, vale destacar pelo menos dois episódios. O primeiro aconteceu ainda na cerimônia de abertura das Olimpíadas, com a chamada “paródia da Última Ceia". Alexandra Moraes, ombudsman da Folha, destacou o erro objetivo do jornal, cujo título de uma matéria “dava conta de que a organização das Olimpíadas havia pedido desculpas pela encenação ‘da Santa Ceia’. Ocorre que o comitê jamais tratou o espetáculo como paródia”, diz ela. Dois dias depois da publicação, a Folha reconheceu o equívoco, mas limitou o reparo ao título. O outro episódio de desinformação começou com o que pareceu ser uma série de posts patrocinados – mas sem aviso de publicidade – sobre a taxação da premiação dos atletas pelo governo Lula, que causou revolta nos bolsonaristas. Esta matéria do jornal O Globo explica que a taxação existe há 50 anos. Aos Fatos e Agência Lupa fizeram verificações semelhantes. A polarização foi tanta que, após a oposição apresentar projeto de lei para isentar atletas do imposto de renda sobre as premiações, Lula se adiantou e assinou medida provisória fazendo o mesmo. (LV)


❄️ Olimpíadas II: a vez dos influenciadores? Vocês devem lembrar que uma das conclusões do Digital News Report deste ano foi de que a ascensão dos influenciadores impõe uma concorrência ao jornalismo (falamos sobre isso na NFJ #467). Pois bem, a cobertura televisiva das Olimpíadas, feita pela TV Globo e pela Cazé TV, é o relatório colocado em prática. Mesmo não sendo comparáveis em termos de alcance – esta matéria do Terra fala sobre a diferença entre as audiências – é inegável a influência dos influenciadores da Cazé TV. A Folha destaca os “mutirões” puxados por Casemiro para que os atletas ganhem seguidores nas redes sociais. “Isso é bom especialmente para negociar publicidade e patrocinadores com marcas do mercado, o que garante uma renda e visibilidade para fora do período olímpico”, explica o repórter Gabriel Vaquer. “Era tão óbvio, CazéTV, mas que bom que você fez!”, escreveu Bernardo Besouchet, no Meio & Mensagem. O colunista do UOL Chico Barney lembra que a CazéTV não se resume ao clima de "turma do fundão". “Hoje existem outras iniciativas que se aproximam mais da cobertura tradicional, como o ótimo Tamo em Paris, da Fernanda Gentil, além das transmissões exuberantes de talentos em ascensão como Luís Felipe Freitas e outros”, afirma. Kelly Miyashiro, colunista da Veja, também destaca a contratação de ex-­atletas, influenciadores digitais, apresentadores e jornalistas pela Cazé TV. “Só nos primeiros três dias de Olimpíada, foram mais de 500 milhões de visualizações de conteúdo do canal, que já ostenta 14,7 milhões de inscritos no YouTube”, diz. No entanto, a linha entre a informalidade e o desvio ético é tênue. A CazéTV provou disso em um comentário sexista de Guilherme Beltrão, apresentador do programa Zona Olímpica: “A Adenizia [jogadora de vôlei e comentarista do canal] é campeã olímpica, ela realmente importa para a competição. O 'camarada' do nado sincronizado, que não tem chance de medalha, tem que ir por dois objetivos: se superar e comer gente". Esta matéria da Folha de Pernambuco publicou a nota de repúdio da Seleção Brasileira de Nado Sincronizado: “Comentários como os feitos são inaceitáveis e desrespeitam não apenas os atletas de nado, mas toda a comunidade esportiva”. Lembram da postagem do GE que citei no bloco anterior, destacando o estúdio da Globo repleto de comentaristas mulheres? A jornalista Maria Clara Souza selecionou alguns comentários machistas que mencionaram a CazéTV - “disparando na audiência” e “salvou as olimpíadas”. Além do canal de Casemiro, o Comitê Olímpico do Brasil levou diversos influenciadores a Paris, como Larissa Manoela, Hugo Gloss e Sabrina Sato. Esta matéria da Folha acrescenta que a Play9 também está com um time de influenciadores, incluindo a jornalista Fátima Bernardes. Sobre o assunto, Mauricio Stycer dispara: “Estou há uma semana acompanhando as publicações dessa turma no Instagram e só vejo espuma. Nada sobre nada, com alguma imagem de Paris ao fundo. (...) Sendo autênticos, muitos desses ‘criadores de conteúdo’ parecem turistas extasiados. Suponho que esta é uma imagem que deve corresponder à expectativa dos que os seguem”. (LV)


❄️ A receita para o colapso dos grandes modelos de linguagem. Talvez uma notícia alvissareira para as organizações de notícias, os jornalistas e todo mundo que cria conteúdo humano de qualidade na internet (ou talvez eu esteja sendo muito otimista): um estudo da revista Nature verificou que treinar modelos de inteligência artificial como o ChatGPT com material gerado por IA leva rapidamente esses modelos a produzirem conteúdo sem sentido - ou seja, inconfiável e inútil. O "fenômeno canibalístico" (adorei esse termo, precisava usar, desculpem) foi chamado de "colapso de modelo" pelos pesquisadores de universidades do Reino Unido e do Canadá que realizaram o estudo. A equipe fez uma análise matemática para mostrar que o problema é provavelmente universal, ou seja, afeta todos os tipos e tamanhos de modelos de linguagem que usam dados sem curadoria, bem como geradores de imagens simples. Bom, mas o que o jornalismo tem a ver com isso?

💎 A análise não para por aqui. Nossos assinantes podem conferir por que a hipótese levantada pelos pesquisadores da Nature pode aumentar o poder de barganha dos publishers junto às plataformas de IA. Além disso, podem responder à nossa enquente sobre o tema. Cliquem aqui para acessar nossas anotações.

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❄️ Por que as pessoas não curtem fact-checking. Moçada não curte jornalistas corrigindo coisas. É por esse motivo que conteúdos de fact-checking costumam não ser os preferidos da galera. Mas por quê? Porque correções são vistas de maneira mais crítica. Quando o jornalista procurar "desmascarar" algo ou alguém, naturalmente levantam-se dúvidas sobre sobre sua honestidade e os motivos que os levaram a agir dessa forma. "Em outras palavras, se você está oferecendo uma correção, você está sendo um pouco estraga prazeres, e isso pode afetar negativamente como você é visto", escreveram os pesquisadores Randy Stein e Caroline Meyersohn em um artigo no Nieman Lab sobre o paper Whose Pants Are on Fire? Journalists Correcting False Claims are Distrusted More Than Journalists Confirming Claims, de autoria de ambos e publicado pela Communication Research. Na pesquisa, os pesquisadores norte-americanos pediram a um grupo para ler um conteúdo de fact-checking que corrigia e confirmava informações sobre política ou economia. Os entrevistados se mostraram menos céticos – ou seja, mais propensos a acreditar – em jornalistas que confirmavam fatos e afirmações do que os que corrigiam as informações. A desconfiança subia de 10%, no primeiro caso, para 22%, no segundo. "As pessoas também disseram que precisavam de mais informações para saber se os jornalistas que desmentiam as declarações estavam dizendo a verdade, em comparação com sua avaliação dos jornalistas que estavam confirmando as alegações", escreveram Stein e Meyersohn. Fact-checking, embora seja importante no combate à desinformação, seguem os autores, pode criar uma imagem negativa dos jornalistas. Um dos desafios para os jornalistas seria fazer debunking sem parecer ser um sabichão estraga prazeres. (MO)


❄️ A luta de jornalistas para preservar seus arquivos. Nos últimos dias, a propósito do planejamento da próxima edição d'O jornalismo no Brasil, fui dar uma olhada nas edições antigas– como sempre faço. Eis que, para minha surpresa, a edição de 2023, publicada na plataforma Headline, está fora do ar (assim como o restante do site). Os arquivos estão a salvo, claro, seja via Google Drive, seja via Wayback Machine, onde fui para ter certeza de resgatar as edições finais de cada artigo, pois sempre há aquela ediçãozinha de última hora com o texto já na página. Coincidentemente, o Nieman Lab publicou uma matéria sobre o que alguns jornalistas fizeram para evitar que materiais jornalísticos se perdessem quando alguém simplesmente tirou da tomada os sites onde eles estavam hospedados. “Quando você ouve que um site será retirado do ar, não é apenas ‘Uau, todo esse conteúdo está sendo perdido’. É também todo o conteúdo que é derivado desse conteúdo — uma base fundamental de evidências que pode ser usada para verificar uma alegação, ou impulsionar a carreira de alguém", disse a bibliotecária da NYU Talya Cooper à repórter Hanaa' Tameez. Ela acrescenta que a chegada da IA generativa complica ainda mais as coisas? Como checar uma fonte usada pelo ChatGPT que já saiu do ar? Tameez conversou com três jornalistas para saber quais são os seus métodos pessoais de arquivamento de suas próprias produções. A matéria conta as peripécias de Alex Azzi, repórter que se dedica à cobertura de mulheres no esporte, para conseguir salvar seus próprios trabalhos em diferentes lugares pelos quais passou. Ela conta, por exemplo, que quando foi contratada pelo site The Messenger, uma das coisas que pensou em perguntar na entrevista de emprego foi se eles tinham um plano de arquivamento das histórias publicadas. Não fez a pergunta, e o site saiu do ar seis meses depois. Sorte que ela tinha se antecipado e arquivado seu trabalho no Wayback Machine, além de colar o material de freelancers em um arquivo de Word (!). Outro case, Andrea Gutierrez, repórter freelancer de rádio, mantém uma Airtable com detalhes dos trabalhos que levou ao ar junto de um link que leva a um Dropbox onde estão os arquivos originais de cada programa. Um trabalheira. Mas é o jeito. Afinal, não é todo mundo que tem a sorte do repórter da Vice Matthew Gault, que contou a ajuda de sua esposa, uma engenheira de software. Ela desenvolveu um scraper que salvou todas as reportagens do marido em PDFs. Como minha esposa é jornalista como eu, tive que salvar os arquivos da edição de 2023 d'O jornalismo no Brasil na mão mesmo. Ainda que eram só 10. E vocês, como mantêm seus arquivos a salvo? (MO)

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


Por um jornalismo que não criminalize pobres e pretos

“Centro de inteligência do crime organizado”, “fortaleza do Primeiro Comando da Capital” ou de “base do PCC” é assim que a Folha de São Paulo, o Estado de S. Paulo  e o Metrópoles, além do próprio Ministério Público taxaram a Favela do Moinho, localizada em um trecho de linha férrea às margens da avenida Rio Branco, no centro de São Paulo. Tudo por que alguns de seus moradores foram presos alvos da Operação Salus et Dignitas liderada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco), do Ministério Público. 


Esses termos expõem todo um bairro a pecha de criminoso. E é “engraçado” como o mesmo não ocorre quando milicianos como Ronnie Lessa ou membros do crime organizado são presos na Barra da Tijuca. Por que será? Um chute seria o fato de que a Tijuca é um bairro de branco rico e o Moinho de gente pobre e preta. Como o diretor de redação da Ponte, Fausto Salvadori, ressaltou em uma das nossas reuniões de pauta essa semana: “Existe uma diferença entre falar ‘na favela do Moinho tem’ e ‘a favela do Moinho é’. Ninguém diria que a Barra é criminosa, no máximo que lá tem um criminoso”. 


Dois pesos e duas medidas, é sempre esta atuação do elitismo da tal imprensa quatrocentona que nem se digna a ir conversar com quem vive na favela. Imprensa que olha de cima de seus helicópteros e que funciona como assessoria do MP e da polícia repetindo termos que generalizam toda uma comunidade. Será que em algum momento os jornalistas se perguntaram quem são essas pessoas que vivem ali? É todo mundo criminoso mesmo? E como um bairro supostamente criminoso se criou tão perto de batalhões da polícia e da GCM, em uma das regiões mais policiadas da capital paulista? O senso crítico da imprensa parece desligar em momentos assim e seu trabalho reforça estereótipos e criminaliza toda a comunidade, torna a opinião pública ainda mais antipobre.  


A Ponte esteve na comunidade do Moinho essa semana. Afinal, nosso compromisso é entender quem mora ali Como essas pessoas foram tratadas durante a operação? Se fossem todos bandidos não sairiam para falar conosco e teriam nos ameaçado por estar ali, mas quem fez isso foi o braço armado do Estado. Nossa repórter Jennifer Mendonça presenciou a ordem de que se houvesse “quebra da ordem”, era para “prender principalmente quem está filmando”. Uma clara ameaça ao trabalho jornalístico.


O que apuramos in loco foi o típico “jeitinho” policial de se portar em favela. Será que tudo bem a polícia revistar a mochila de uma bebê de 11 meses a caminho da creche com sua mãe? "Estavam perguntando se eu tinha droga, eu sou trabalhadora", disse uma moradora entrevistada pela Ponte. “Eu estava indo levar um dos meus netos para a creche e o policial estava com aquelas armas longas apontando para a nossa cara como se fosse bandido”, relatou uma avó de duas crianças, uma de 9 e outra de 4 anos. A polícia, como sempre, alegou que as abordagens foram feitas quando tinham “fundada suspeita”. O mero ato de um pobre preto existir parece ser considerada fundada suspeita pelo Estado. 


Como disse no último texto, a Ponte não passa pano para ninguém. Mas tem compromisso de ouvir quem está oprimido pela violência de um Estado que abandona para depois criminalizar todo um bairro. De estar no território, de deixar essa gente sempre tão silenciada falar. Talvez por isso não fomos rechaçados pelos moradores como outros veículos de imprensa foram. Porque eles sabem que estamos ali para ouvi-los, para fazer a apuração dos fatos, que é algo basilar do bom jornalismo. A Ponte não tem helicóptero com nome de ave, mas tem jornalismo que escuta, tem jornalismo que chama as pessoas pelo nome e conta quem são.  


Quando pedimos seu apoio financeiro, Portal, não é para salários milionários ou grandes estruturas, mas para fazer jornalismo de forma digna com a qualidade de apuração pela qual somos reconhecidos. Pedimos apoio financeiro para visibilizar histórias de gente desumanizada por quem deveria dar suporte. Pedimos sua ajuda para contrapor a narrativa da imprensa que criminaliza pretos e pobres. A Ponte faz diferente e com seu apoio, pode fazer mais.

Fonte Portal Membro Ponte Jornalismo


❄️ IA é o gerador de lero-lero mais surpreendente que já existiu? O jornalista Marcelo Soares faz uma reflexão muito interessante sobre a “ilusão futurista” da inteligência artificial em sua newsletter. Não é novidade que hoje a IA comete muitos erros, mas o argumento central de Soares é: quais são as implicações de a indústria colocar em produção, como algo pronto, aplicações de IA que falham tanto, a ponto de ser impossível confiar nelas? Até mesmo em comandos simples de linguagem, prossegue ele, como extrair o nome de cidades mencionadas em centenas de textos, a IA apresenta as tais “alucinações”. O jornalista conta que, quando faz essa crítica publicamente, a resposta que ouve é sempre a mesma: “estamos apenas no começo, o GPT6 vai resolver esse problema. No entanto, mesmo que a solução realmente esteja no futuro, a versão imperfeita de agora já está gerando problemas”. E acrescenta:

“Ainda não tem nada que não sirva para meramente substituir mão de obra real por versões baratas feitas de uma maneira muito cara em termos de dinheiro e energia. (...) Por ora, as empresas de IA vendem o gerador de lero-lero mais surpreendente que já existiu prometendo que no futuro ele inclusive vai falar coisas com pé e cabeça. Mas por enquanto o ChatGPT tem a assertividade de um homem branco de meia-idade jogando conversa fora com os amigos no bar (tenho lugar de fala, embora ande indo pouco ao bar)”.

E se, no futuro, aparecer algo melhor, é realmente isso que queremos? Essa pergunta me parece central e é aprofundada neste artigo de Denise Utochkin, pesquisador na Universidade de Copenhague. Marcelo Soares traduziu o texto, que explora a cobrança para que a universidade adote a IA genrativa nas aulas. Como professora de jornalismo, me identifiquei muito com o artigo, mas se substituirmos “universidade” por “redação”, as reflexões permanecem bastante úteis. Em consonância com o argumento de Soares, Utochkin afirma que colocar o tempo futuro no lugar do tempo presente fabrica o consenso de duas maneiras: tira o ônus da prova de qualquer um que faça uma declaração sobre os benefícios da IA, não importa o quanto sejam vagos e grandiosos; e essa ofuscação dos limites cria uma ilusão de inevitabilidade, o que “descarta preventivamente qualquer crítica possível da tecnologia: tanto faz se esse é ou não um futuro que desejemos, pois esse é o futuro que teremos”. E questiona:

“Por que continuamos a acreditar que a IA vai resolver a crise climática (visto que ela está ajudando a piorar), acabar com a pobreza (da qual ela depende muito) e libertar o pleno potencial da criatividade humana (que ela está minando)?”

Para o pesquisador, a universidade (e por que não as redações) deveria fazer diferente. Na academia (e por que não no jornalismo):

“[…] temos a obrigação de interrogar a proposição de que o mundo em que a IA será amplamente usada é desejável ou inevitável. (...) O mundo real é aquilo que fazemos. É nossa responsabilidade, como educadores (ou como jornalistas), garantir que nossos estudantes (ou leitores) lembrem disso e participem ativamente na decisão de como melhor formatar um futuro comum”. 

Depois desta reflexão, vamos a alguns links sobre IA selecionados na nossa ronda da semana:


❄️ “CazéTV foi o grande disruptor de Paris 2024”. Com o fim dos jogos olímpicos, saíram os números de audiência da cobertura audiovisual. De acordo com esta matéria da Folha, a Globo alcançou 140,4 milhões de pessoas em todo o Brasil, um crescimento de 10% em relação a Tóquio, em 2021. Entre os jovens de 18 e 34 anos, o crescimento foi de 9% na audiência. No ranking de modalidades mais vistas, o futebol feminino foi o recordista. O site MKT Esportivo divulgou o balanço da Cazé TV: somando as visualizações de todas as plataformas (YouTube, Instagram e TikTok), o canal teve mais de 5 bilhões de visualizações. A audiência foi formada por 62% de pessoas com menos de 34 anos e 82% com menos de 44 anos. Foram 2 milhões de novos inscritos no YouTube, totalizando 16,2 milhões. Em que pese a diferença de critérios de medição, não dá pra negar que ambas tiveram sucesso na transmissão – embora seja preciso destacar que a Globo faz isso há décadas, enquanto a Cazé TV era estreante. Em sua newsletter, Mauricio Cabrera analisa que a CazéTV foi o grande disruptor de Paris 2024 e a maior referência mundial para entender o que representa os criadores de conteúdo como novos meios. Mas não sem críticas. A jornalista e editora-chefe da Agência Mural, Sarah Fernandes, elenca a “coleção de machismos” na Cazé TV e outros problemas: “Estar com microfone não te faz repórter. Pedro Scooby usou de relações pessoais pra passar na frente da imprensa que seguia as regras de cobertura. Ele chamou de 'esporro' do COI, jornalistas chamariam de 'falta de ética'”, diz. Fora da TV/YouTube, também há críticas. A ombudsman da Folha afirma que o jornal deixou de destacar fatos importantes para manter as Olimpíadas nas vitrines. E o professor Rogério Christofoletti chama atenção para esta matéria publicada no UOL – “Ginasta pareceu ‘orar em línguas’” –, que “narra que algo parece ter acontecido, mas não sabemos se esse algo existe e nem a única fonte ouvida na matéria confirma. Quem teria feito também não é ouvido”. Seguimos com mais informações e análises. Esta matéria do Alma Preta conta que, pela primeira vez na história da mídia negra independente, um veículo periférico montou uma estrutura para a cobertura dos jogos olímpicos. No ObjEthos, Luiza Mylena Costa Silva afirma que o trabalho do Comitê Olímpico Internacional (COI) para promover a igualdade de gêneros nos jogos deve inspirar as organizações jornalísticas. Para ela, fica o aprendizado de que a paridade de profissionais é um trabalho ostensivo, que necessita de uma agenda de comprometimento. (LV)


❄️ Plataformização (e dependência) do jornalismo. Apesar da narrativa de aprimoramento da inovação tecnológica para o futuro da mídia, o Google News Initiative (GNI) Innovation Challenge inadvertidamente promove a dependência e estende o conceito de filantrocapitalismo à indústria de mídia em escala global. Essa foi a principal conclusão deste estudo de Allen Munoriyarwa, Mathias Felipe de Lima Santos e outros autores, publicado no International Journal of Cultural Studies. Por meio de 36 entrevistas em profundidade com beneficiários do GNI na África, América Latina e Oriente Médio, a pesquisa mostra que muitos projetos enfrentam desafios para progredir além da fase beta ou MVP. Além disso, ao enfatizar a inovação como uma ferramenta para salvar o modelo de negócios da mídia, a filantropia do Google ignora fatores não tecnológicos. Por exemplo: a escassez de pessoal de TI qualificado e os altos custos associados à sua contratação obrigaram muitas das organizações entrevistadas a depender de empresas terceirizadas para o desenvolvimento de seus projetos. Dizem os autores:

“A visão do GNI sobre os desafios e soluções para a mídia pode ser unilateral. Tentar resolver esses problemas apenas por meio de soluções tecnológicas caras, independentemente das intenções do doador filantrópico, pode sustentar ou piorar os próprios problemas que eles pretendem enfrentar. (...) Uma perspectiva holística com soluções diversas é crucial para abordar os problemas multifacetados da mídia de hoje. (...) A construção de confiança, o jornalismo ético, a diversidade, a inclusão e a sustentabilidade financeira são essenciais para a saúde da mídia em longo prazo, destacando a importância de fatores além da tecnologia”.

Pensar para além da tecnologia parece urgente, já que a dependência das empresas jornalísticas vai além do nível de plataformas. Na sequência deste tópicodisponível apenas para os nossos subscribers, falo sobre exemplos envolvendo questões de infraestrutura, falta de transparência e de como o Spotify matou o boom de podcasts na América Latina – aliás, sobre a influência do Spotify na indústria da música, leiam a última edição da newsletter Canciones para Despertar en Latinoamérica. (LV)

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❄️ Mídia cívica: os desafios de propor uma mudança no ethos do jornalismo. Em outubro do ano passado, Nina Weingrill, uma das fundadoras da Énois, publicou um texto aqui no Farol Jornalismo sobre jornalismo cívico. Recém chegada dos Estados Unidos, onde havia trocado experiências sobre o tema junto à Future of Local News Network, ela preparava uma pesquisa para "entender que tipo de jornalismo é esse e de que forma ele se relaciona organizações fundadas em bases comunitárias". Pois bem, a pesquisa Census Report on Civic News Organizations está pronta, disponível aqui e aponta, segundo a Nina, uma "mudança no ethos" da profissão.

Nina entrevistou líderes de 18 organizações norte-americanas que procuram estreitar os laços com suas comunidades ao entender que o trabalho jornalístico não acaba na publicação. Isso pode acontecer em um jornal local, mas também em um grupo de WhatsApp ou em uma biblioteca comunitária. Um objetivo comum une diferentes produtos: fortalecer os laços sociais dentro dessas comunidades ou criar um forte senso de engajamento cívico entre seus moradores a partir da Teoria da Mudança.

“A Teoria da Mudança posiciona o jornalismo como um catalisador para impacto capaz de transformar a construção da democracia, refletindo uma abordagem que, diferentemente do jornalismo tradicional, abraça o ativismo como algo essencial para sua missão. Em vez de meramente documentar eventos, a maioria dessas organizações visa contar histórias que inspirem mudanças e moldem o mundo de maneiras construtivas e generativas.”

É um jornalismo que não se contenta em descrever, mas sim contar histórias que movem as pessoas e o mundo. E faz isso entranhando-se na comunidade que serve, abraçando-a e defendendo-a – uma postura diametralmente oposta à adotada historicamente pelo jornalismo "tradicional". Não por acaso, todas as organizações ouvidas servem a comunidades subrrepresentadas e têm na diversidade um dos seus principais ativos. 

Mas o que diz o estudo? O que Nina quis saber a respeito dessas organizações?

Census Report on Civic News Organizations mapeou funcionamento, processos internos, fontes de financiamento e produtos de jornalismo e comunicação produzidos por essas organizações, da pauta à distribuição, passando por medidores de impacto. Na sequência deste tópicodisponível apenas aos nossos subscribers, trago um resumo dos insights que a Nina teve após analisar os dados e os relaciono com o grande desafio que é afirmar o jornalismo cívico no campo profissional. (MO)

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❄️ O que acontece quando o jornalismo serve a apenas uma comunidade? Eu, como muitos de vocês, sou moldado pela ideia de um jornalismo generalista, que busca servir a todos os públicos oferecendo uma construção de realidade baseada na objetividade, na correção, no equilíbrio. Mas a gente sabe que o dito jornalismo objetivo historicamente serviu mais a determinados grupos sociais do que outros. Uma parte do campo – especialmente o acadêmico – sempre soube disso. Em tempos recentes, Fabiana Moraes, por exemplo, escancarou a parcialidade do jornalismo dito objetivo e pretensamente a serviço de valores universais. Bom, se o jornalismo é, como disse Eduardo Meditsch, uma instituição capaz de unir auditórios (comunidades), servindo como uma espécie de cola social que mantém a comunicação entre todos e, assim, viabiliza a democracia, o que acontece quando nosso trabalho é colocado deliberadamente a serviço de UMA comunidade em específico?

Eu fiz essa pergunta à Nina. E a resposta dela foi muito boa. Nossos subscribers podem conferi-la aqui, na sequência deste tópico. Fiquem com uma amostrinha:

E não sei o quanto que uma generalização dessa narrativa ajude a desfragmentar. Eu acho que não. Na verdade, o que a gente tem observado é que essa essa tentativa de buscar um interesse público que seja comum a todos é falsa na essência.

(MO)

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❄️ Notícias da indústria e links diversos. Jeduca está com inscrições abertas para o 8º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação [Jeduca]. | NYT decidiu não endossar candidaturas aos governos locais [Nieman Lab]. |  “NYT errou ao não se posicionar nas eleições municipais e estaduais” [Intelligencer]. | O jornalismo local pode curar a fadiga do noticiário eleitoral? [Poynter]. | A Agência Pública vai colocar as mudanças climáticas no centro da sua cobertura eleitoral [Pública]. | O que está em julgamento sobre a responsabilização da imprensa em entrevistas [Abraji]. | Você sabe dar preço ao seu trabalho jornalístico? [IJNet]. | Rogério Christofoletti sobre o fechamento do Crowdtangle: “Plataformas digitais como Meta e X não têm nenhum compromisso com a transparência. Elas fecham todas as possibilidades de cientistas, jornalistas e usuários de saber como funcionam. Descaso com a democracia, desrespeito com o público” [IJNet]. | JOTA lança nova versão de portal com 50 mil conteúdos gratuitos [JOTA]. | Especialista em aviação Lito Soza critica edição de entrevista concedida ao programa Profissão Repórter. [X] | Me indiquem para ser editor de newsletters na New Yorker [X do Ismael Nafría]. (MO)


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Brasil: Assim os jornalões incensam o genocídio

Análise de um jornalismo colonizado. Por condenar os crimes de Israel, Lula é tachado de “parcial e antiocidental”. Bairros palestinos são “redutos de terroristas”. O massacre de Gaza é “resposta” aos bárbaros. E as operações do Mossad tornam-se aventuras hollywoodianas…


No dia 27 de setembro deste ano, Lourival Sant’Anna publicou no Estadão um artigo intitulado “Boicote do Brasil ao discurso de Netanyahu é amostra dos ressentimentos antiocidentais de Lula”. O jornalista, que, para além do mencionado veículo, também faz análises para a CNN Brasil, apresenta-se como um grande campeão na luta pela democracia e liberdade. Trata-se, com efeito, de um grande defensor dos nobres valores ocidentais. As reflexões do colunista foram publicadas três dias após o discurso do presidente da República na abertura do debate dos chefes de Estado e de governo da 79ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), que ocorreu em Nova York. Na ocasião, o chefe do Executivo brasileiro dirigiu-se “em particular à delegação palestina, que integra pela primeira vez essa sessão de abertura, mesmo que ainda na condição de membro observador” (Agência Gov, 24 set. 2024). Além disso, no dia seguinte, Lula da Silva denunciou, com veemência, o massacre em curso em Gaza: “acho que os países que dão sustentação ao discurso do primeiro-ministro Netanyahu precisam começar a fazer um esforço maior para que esse genocídio pare” (CNN Brasil, 25 set. 2024).

Para Sant’Anna, o posicionamento do Brasil, que se juntou a outras nações, como Chile, Colômbia, Irã, Guiné-Bissau e Turquia, e se recusou a ouvir o discurso hitlerista do líder israelense na ONU, não é apenas um sinal de fracasso diplomático, mas também uma grande afronta ao Ocidente. De acordo com o equilibrado democrata, esses países revelam grande hipocrisia, já que não saíram durante o discurso de Vasily Nebenzya, embaixador da Rússia, de Vladimir Putin. Um verdadeiro absurdo, porquanto Netanyahu estaria num patamar cívico, moral e humano superior a Putin: “diferentemente de Putin, Netanyahu defende seu país da ameaça real, não imaginária, de inimigos a seu redor” (Estadão, 27 set. 2024).

Ora! Aquele que critica a hipocrisia e a seletividade no momento de uma condenação é o mesmo que apresenta as ações de Israel, que deixam milhares de civis mortos, mutilados e desabrigados, como um ato de defesa! Não apenas isso: procuramos, sempre sem sucesso, em outras análises do jornalista uma denúncia aos crimes de Israel. Encontramos somente louvor e glorificação às ações de inteligência e estratégia das tropas e agências israelenses – as quais resultam em grande aniquilação e morticínio de civis.


Contudo, Sant’Anna não está solitário em suas críticas ao posicionamento de Lula na ONU. Também no Estadão, podemos ler na coluna de Andrés Oppenheimer: “Os patéticos discursos de Lula e Gustavo Petro na Assembleia-Geral da ONU”. Na verdade, as opiniões institucionais do mencionado veículo demonstram grande preocupação com o posicionamento do presidente da República em Nova York: em “O umbigo de Lula”, lemos: “o Brasil poderia erguer pontes entre o Ocidente e o Oriente, entre ricos e pobres. Mas essas possibilidades foram pulverizadas pelo narcisismo, o cinismo e o sectarismo de Lula” (Estadão, 27 set. 2024). As chamadas são bastante curiosas, como estamos vendo. Dois dias antes de se falar do “umbigo”, já se dizia que o representante brasileiro seria “Um santo do pau oco na ONU”. Para o jornal, “o Brasil poderia ter legitimidade para influenciar rumos da ordem internacional. Mas sem coerência não há credibilidade. Lula passa lição de moral na ONU sem fazer a lição de casa no Brasil” (Estadão, 25 set. 2024).

Não paramos por aqui. Uma semana após o discurso de Lula nas Nações Unidas, o mencionado órgão da imprensa continua: “Papelão do Brasil na ONU”: “arrastado pelos ressentimentos antiocidentais de seu presidente, o Brasil abandona sua independência diplomática e seus valores democráticos para se alinhar ao eixo liderado por China, Rússia e Irã” (Estadão, 1 out. 20224). Os editoriais do jornal paulistano nos fazem perceber a sintonia existente com os colunistas independentes. A opinião oficial, publicada em primeiro de outubro, nos leva de volta ao argumento de Lourival Sant’Anna: o presidente da República não estaria sendo imparcial no xadrez geopolítico – pior ainda: estaria tomando posicionamento que agridem valores democráticos e liberais; segue na contramão dos valores ocidentais. Vejamos mais:

Sob o governo Lula, o Brasil abandonou quaisquer vestígios de independência na polarização geopolítica entre o eixo autocrático sino-russo-iraniano e as democracias ocidentais. A Assembleia Geral da ONU explicitou esse alinhamento. Sua imagem mais reveladora foi o boicote da delegação brasileira ao discurso do premiê israelense, Benjamin Netanyahu.

Estamos na presença de uma construção de um mundo bipolarizado: Ocidente X Oriente. Bem versus mal. As guerras só ocorrem devido à inclinação ao terrorismo existente no Oriente Médio e no “Mundo Árabe”. Não há complexidades, não há interesses econômicos, políticos e geoestratégicos por parte do Ocidente – Estados Unidos e Otan nada têm a ver com essa história. As coisas funcionam de modo bem simples: Rússia, China e Irã liderariam o bloco da perversidade, do caos e do terrorismo, enquanto o Ocidente combate esse mal em nome da democracia, da liberdade e da segurança da humanidade. No Oriente, teríamos um grande e poderoso aliado – Israel –, o qual, embora cometa alguns erros, os faz em nome de sua segurança e soberania. Não apenas isso: Israel teria, nesse sentido, um papel de guardião, em primeira mão, da própria Europa: se não fosse esse Estado, o que o Irã, Síria e os seus grupos terroristas não estariam fazendo? Demos mais uma vez a palavra ao grande jornal:

No discurso que a comitiva brasileira não ouviu, Netanyahu pode ser criticado por mais uma vez se esquivar de uma estratégia política para o futuro das relações entre Israel e Palestina. Dito isso, Israel vem sendo reprovado por “escalar” os conflitos no Oriente Médio, mas a escalada começou há um ano, com o ataque do Hamas a Israel. Ato contínuo, outros grupos patrocinados pelo Irã iniciaram agressões, listadas por Netanyahu: mais de 8 mil foguetes lançados pelo Hezbollah, centenas de ataques com drones dos houthis do Iêmen, dezenas de ataques das milícias xiitas da Síria e Iraque, além das centenas de drones e mísseis lançados pelo próprio Irã. Ainda há mais de 100 reféns israelenses cativos do Hamas e mais de 60 mil israelenses evacuados em razão das agressões do Hezbollah (Estadão, 1 out. 2024).

Estamos na presença de um duplo – para utilizar um termo caro a Edward P. Thompson – reducionismo crasso. Para não falarmos em impudência e desfaçatez! Ora! De um lado, denuncia-se que com a volta de Lula à Presidência, o Brasil teria perdido a sua independência e imparcialidade – como se esta última pudesse existir diante de morticínio de civis. Além disso, ignora-se, no mínimo, o alinhamento político internacional do último governo, só para ficar no passado recente. Na outra ponta, é apagado, deliberadamente, da análise do jornal um ano de aniquilamento israelense em Gaza. Não há – nunca houve! – milhares de crianças e mulheres palestinas mortas. Escolas, casas, ambulâncias, infraestruturas e hospitais não foram sistematicamente bombardeados pelo Estado de Israel desde a “escalada”, da qual fala o editorial. Nesse sentido, é preciso redirecionar as observações de Jamil Chade encaminhadas aos Estados Unidos para o grande veículo liberal:

o governo americano há muitos meses [diz]: “olha, não queremos uma escalada. Estamos alertando as partes para que não haja uma escalada”. O que os árabes me contam…. o que os diplomatas me contam, até com uma certa ironia, mas com muita irritação, é que essa mensagem só serve para os árabes, porque para Israel essa contenção… essa moderação, aparentemente, não serve. Porque, claro, o governo israelense não faz uma operação, como a que fez esta noite no Líbano, não faz um ataque à periferia de Beirute e mata o líder do Hezbollah, sem pelo menos avisar ao seu grande aliado americano (Canal UOL, 1 out. 2024).

Não apenas o Estadão tem romantizado ou ignorado o terrorismo israelense. Quando Israel criou “homens bombas” involuntários no Líbano, ao inserir explosivos em equipamentos de comunicação e explodi-los indiscriminadamente, lia-se na imprensa: “Impressionante operação”, “Sucesso” e “triunfo tático” – todos esses termos utilizados para se referir a uma ação terrorista que deixou milhares de feridos (muitos perderam a visão ou tiveram membros amputados) e dezenas de mortos – inclusive crianças. Além desse ar de louvor, o acontecimento foi tratado com um toque de curiosidade: “o que são pagers?”; “Como foi a explosão dos pagers?”; “como Israel teria criado empresa de fachada para colocar explosivos nos pagers do Hezbollah?” – não somente militantes desse partido foram mortos e feridos de maneira indiscriminada. As chamadas comportam-se, ainda, como se as explosões fossem meros incidentes: “após pagers, ‘walkie-talkies’ do Hezbollah explodem em Beirute e no sul do Líbano; 20 morrem”. (Ver: BBC NEWS Brasil, 18 set. 2024; O Globo, 18 e 19 set. 2024; G1, 17 set. 2024).

Nesse sentido, é o experiente e eloquente jornalista Kennedy Alencar quem demonstra evidente indignação com a cobertura do conflito no Oriente Médio feita pela grande imprensa brasileira:

o que está acontecendo ali é terror de Estado. Terrorismo de Estado eu reputo como mais grave que o terrorismo puro e simples, porque é um Estado agindo como terroristas agem. É isso que está acontecendo… é isso que a gente viu em Gaza (…). Temos um governo agindo com método terrorista, e isso a gente tem que condenar. Não dá para falar “o grupo extremista Hezbollah” e assim: “as Forças de Segurança de Israel”, “os ataques” – “os ataques” de quem? Do governo extremista de Israel, não é? Está muito claro. “Ah! A explosão dos pagers no Líbano”. Não foi uma explosão espontânea”. Aquilo foi um ataque. É importante deixarmos isso claro (Canal UOL, 1 out. 2024).

Observamos, dessa forma, que jornalistas de longa data e que tiveram passagens em diversos veículos da grande imprensa têm demonstrado insatisfação com a tentativa de demonizar as vítimas e romantizar e maquiar o sangue derramado no mundo árabe por parte de Israel. The Intercept Brasil denunciou: “a mídia transforma a população do Líbano em terrorista para justificar Israel”. Mais ainda: “imprensa chama bairros de Beirute de ‘redutos do Hezbollah’ enquanto a guerra expansionista de Israel massacra civis” (The Intercept Brasil, 20 set. 2024). A ação Israelense foi, no limite, apresentada como um ataque. As ações do Instituto de Inteligência e Operações Especiais, o Mossad, e de outras divisões são retratadas como aventuras hollywoodianas. Buscamos, sempre em vão, nesses textos e mesmos nas reflexões de colunistas e comentaristas – muitos dos quais se apresentam como campeões da luta pela democracia e contra o terrorismo – uma denúncia ou reprimenda contra tal ato de terrorismo. O termo inexiste na linguagem da grande imprensa brasileira quando se trata de caracterizar as ações de Israel, dos EUA e seus aliados. Na verdade, foi o grupo alvo do ataque o representado como extremista.


Perante milhares de indivíduos mutilados, crianças e mulheres perdendo mãos, braços e mesmo a visão, ambulâncias em alta velocidade, cenas de funerais, pânico social, mortes e ferimentos, jornalistas estão preocupados em falar sobre o uso e funcionamento de pagers e walk talks há algumas décadas. Para que houvesse uma condenação ao terrorismo na imprensa brasileira só se o ataque fosse desferido por algum grupo armado do “Mundo Árabe” e se tivesse como alvos Israel, EUA ou a Europa. Só haveria perplexidade e alarde se o presidente da República se posicionasse, como o fez em fevereiro deste ano, quando comparou, de maneira acertada, as ações de Israel em Gaza à atuação do Terceiro Reich. Lembremos que, já naquela altura, a mídia apresentava o massacre em curso contra o povo palestino como “resposta de Israel” – “Lula compara resposta de Israel em Gaza à ação de Hitler contra judeus” (G1, 18 fev. 2024). Perto de completar um ano de terror em Gaza, as denúncias de Lula permanecem sendo apresentadas com toma de crítica ou reprimenda: “Lula volta a dizer que Israel comete genocídio e critica Netanyahu” (CNN Brasil, 25 set. 2024).

Um dos grandes argumentos de jornalistas e convidados pelos mais diversos jornais – do Jornal da Cultura a Globonews – é que “a única democracia na região é Israel, o resto é ditadura”. São nesses termos que se pronuncia Marco Antonio Villa na bancada do Jornal da Cultura (JC, 18 out. 2023). O historiador enfatiza que essa é uma informação importante e que deve ser lembrada. Uma série de analistas segue tal narrativa. Um país, cujo regime é uma democracia liberal, estaria num patamar moral e civilizacional superior a outros, sobretudo aqueles cujo governo é “teocrático” e “monárquico”. Ao evocar que “Israel é a única democracia do Oriente Médio”, os comentaristas apontam para uma legitimidade e razão prévia deste país em relação a outros na região. Imediatamente, aqueles países não “democráticos” são postos sob suspeição – são autoritários, com uma inclinação política à guerra e mesmo ao terrorismo.

Há raízes mais profundas. “No centro da ideologia hoje dominante há um mito, chamado a glorificar o Ocidente e, em particular, seu país-guia [os EUA]” – escreve Domenico Losurdo, em Democracia ou Bonapartismo –, “é o mito segundo o qual o liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em democracia, e numa democracia cada vez mais ampla e mais rica” (LOSURDO, 2004, p. 9). Com efeito, ao se alvoroçar em “lembrar” que Israel é uma democracia, os analistas movimentam-se no sentido de reforçar o seu vínculo com o Ocidente, com o liberalismo e com a “superioridade civilizacional”.

Continuemos com Losurdo. Este filósofo italiano, em Contra-História do Liberalismo, nos mostra como os maiores defensores da liberdade eram os que mais lucravam com a escravidão; os que lutavam por políticas para privar negros e pobres do acesso pleno à cidadania. Não apenas os sujeitos. A Holanda, “país onde ocorre prólogo das sucessivas revoluções liberais”, no século XVIII, “é sinônimo de escravidão particularmente cruel”. O primeiro país a entrar no caminho do liberalismo é o país que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidão. Junto com a Holanda constituem o mundo liberal-escravagista a Grã-Bretanha e outras nações europeias: “o que contribui de forma decisiva para o crescimento da escravidão, sinônimo de poder absoluto do homem sobre o homem, é o mundo liberal”. Mais ainda: “a escravidão na sua forma mais radical triunfa no século de ouro do liberalismo e no coração do mundo liberal” (LOSURDO, pp. 31-39).

As nações democráticas e liberais, as quais são postas num patamar civilizacional e moral superior aos demais pela grande imprensa brasileira, são as mesmas que se apresentam como campeãs na luta contra o terrorismo. Não apenas isso: a linguagem do império buscou apresentar todos os seus inimigos – os quais deveriam ser fisicamente aniquilados – como terroristas. Fala-se em terrorismo “apenas se o ataque for organizado a partir de baixo, apenas se seus perpetradores não tiverem poder” (LOSURDO, 2007, p. 25). É desse modo que procura argumentar a linguagem dominante. Essa linguagem, acentua Losurdo, constituiu-se ao longo do tempo não apenas a partir dos discursos políticos e da abordagem da grande imprensa comercial, mas até por historiadores e outros estudiosos que apresentaram de forma romântica e cheia de omissões as ações dos EUA e dos seus aliados no Ásia, África e América Latina.

Ao longo do século XX as tentativas da CIA de eliminar os rivais dos Estados Unidos, como Stalin, Lumumba, Sukarno e, repetidas vezes, Fidel Castro, nunca foram denunciadas como ações terroristas, mesmo quando se entendia “terrorismo individual” como o ataque a determinada autoridade política. Do mesmo modo, ao falar-se em “terrorismo de massa” só entra em cena o morticínio de 11 de setembro. Ignora-se a história. Mesmo compreendendo “terrorismo de massa” pelo desencadeamento da violência contra a população civil para atingir determinados objetivos políticos e militares, a aniquilação nuclear de Hiroshima e Nagasaki não é apresentada como tal.

Portanto, o que temos assistido na grande imprensa comercial brasileira é um forte posicionamento no sentido de legitimar o poder e as ações dos EUA, Israel e os seus aliados – sempre demonizando os povos e países árabes, quando não romantizando ou ignorando as suas dores. Nesse sentido, o presidente do Brasil, que busca, por meio de sua projeção, criticar os massacres e genocídios cometidos por essas nações democráticas e liberais, é o alvo central das opiniõesanálises e editoriais dos grandes jornais.

É verdade que esses veículos não são homogêneos. Encontramos, com efeito, vozes dissonantes, análises críticas e plurais, nas quais buscam fugir de uma perspectiva maniqueísta e simplória. No entanto, a linguagem dominante parece buscar atender os interesses das grandes potências democráticas.

Fonte Portal Membro Outras Palavras


❄️ Folha fora do rito? Vocês acompanharam. A reportagem da Folha que revelou conversas entre assessores do ministro do STF – e então presidente do TSE – Alexandre de Moraes teve ares de grande furo jornalístico e rendeu discussão. O enfoque da Folha – bastante claro, diga-se – é que as conversas informais por aplicativo de mensagem estão fora do rito e isso poderia provocar a nulidade de processos, como os que envolvem os atos de 8 de janeiro. Trata-se de um debate jurídico grande e sem consenso, mas vamos nos ater ao que nos cabe: o debate jornalístico. O articulista da Folha, Hélio Schwartsman, saiu em defesa do jornal:

“[…] não é tentar manipular desfechos, mas publicar tudo aquilo que passe no duplo teste da veracidade aferível e do interesse público. O que a sociedade faz com as informações é algo que compete a ela decidir através de outros canais institucionais como o debate público, a Justiça e a política."

A professora Sylvia Moretzsohn discorda. Para ela,

“no mundo em que o articulista vive, a imprensa paira numa espécie de Olimpo, não tem interesses econômicos nem se filia a qualquer ideologia, apenas ‘relata fatos’ para que o público tire suas próprias conclusões. Nesse mundo ponderado, onde o debate público é kantianamente (e, também, habermasianamente) racional, não existem manipulações nem redes antissociais, gabinetes de ódio, organizações dedicadas a espalhar mentiras em todos os canais disponíveis pelas plataformas, nem essas plataformas fazem qualquer pressão sobre os governos.”

Ela chama de “jornalismo de mãos limpas” a prática da imprensa de ouvir os dois lados e lavar as mãos, deixando o público concluir, “como se os dois (ou três, ou mais) lados fossem equivalentes e como se a forma de relatar os fatos não interferisse na conclusão do público”, diz ela. Ao desconsiderar esses contextos e se apresentar como espelho da realidade, estaria a Folha fora dos ritos éticos do jornalismo? Entre os bolsonaristas, a reportagem caiu como uma luva, produzindo discursos de falsa simetria com as revelações da Vaza Jato – que o Intercept fez questão de afastar – e pedidos de impeachment de Moraes. A ombudsman da Folha, que curiosamente se chama Alexandra Moraes, não enfrentou “o debate com rigor e verticalidade”, segundo avaliação de Samuel Lima no ObjEthos. Mas eu enxerguei uma ironia fina neste trecho de sua coluna: “A Folha já vinha reportando que o ministro havia municiado inquéritos do STF com relatórios produzidos no TSE. Agora, colocou no ar os diálogos com as risadas e os emojis que os acompanhavam”. Concordam comigo? De qualquer forma, ela defendeu o interesse público das informações. (LV)


❄️ Silvio Santos morreu e o jornalismo se apressou. A Veja cometeu aquele erro clássico. Publicou a nota – que já estava pronta há horas – com XXX no lugar da data. Também sobraram XXX na causa da morte e em quem confirmou a notícia. Um clássico. Posso visualizar o plantonista, nervoso, atrapalhado pela pressa, buscando a notícia nos arquivos de obituários da redação, copiando do arquivo e colando no publicador para em seguida apertar o botão de publicar. Ufa. Tá no ar. Agora basta atualizar a capa – ou vender para o capista. Os breves minutos entre a publicação e a percepção do erro foram suficientes para a internet eternizar a cagada. Mas o jornalismo também demorou. E o curioso é que foi o próprio SBT o veículo que noticiou a morte do seu chefe com mais atraso. No LinkedIn, Jorge Soufen Junior analisa o pedido de Silvio Santos para que a emissora não preparasse antecipadamente o seu obituário e nem explorasse a notícia do seu falecimento. O argumento do “patrão” para a demora foi de que a emissora tivesse tempo para “absorver a sua perda”. Para Soufen Junior, sob o ponto de vista estritamente jornalístico, o SBT errou:

(...) se olharmos com uma visão mais restrita, talvez até mais radical, do jornalismo: sim, o SBT errou. A morte de Silvio Santos é infinitamente maior do que o seu desejo de que ela não fosse noticiada. E o argumento para isso é bastante forte: o maior respeito que um jornalista pode oferecer quando alguém morre é dar a notícia de sua morte de forma correta e ágil. 

Mas nem tudo é preto no branco. Soufen Junior chama a atenção para o fato de que, antes de sermos jornalistas, somos humanos. Não é possível, escreveu, analisar a cobertura apenas sob o ponto de vista “dos cliques, dos furos e dos minutos contados”.

 A humanidade talvez seja a melhor forma de o jornalista expressar sua objetividade. E nada mais humano para um profissional do SBT do que, por algumas horas, chorar a morte de Silvio Santos.

No Instagram, Pedro Cardoso fez o que faltou ao jornalismo: exercer crítica, e não apenas noticiar festivamente. O ator lembrou da ligação de Silvio Santos (e também Delfim Netto, que morreu no dia 12) com a ditadura, disse que sua atuação pública foi “degradante” e que sua morte deveria ser deixada “na intimidade de seus familiares”. 

“Deixar que soe elogio póstumo a eles sem resistir contribuiria para que os servidores das ambições ditatoriais de hoje possam ser tomados também por pessoas benéficas para o brasil. Silvio e Delfim nunca serviram ao bem do Brasil; mas ao seu próprio. E, para tanto, se empregaram a serviço de uma ditadura assassina.”

A Folha repercutiu a postagem de Pedro Cardoso, mas não foi além do texto do post – o que parece o clássico surfar na onda pra conseguir uns cliques com uma pretensa polêmica. Enfim. No mais, Extra e Meia Hora fizeram capas em homenagem a Silvio Santos. E pra quem quiser mais um perfil laudatório, Guilherme Ravache analisa a trajetória do chefe do SBT como um case de marketing difícil de ser superado. (MO)


💎 Cinco cenários de longo prazo para o jornalismo com a IA. A Open Society publicou nesta semana o primeiro relatório do projeto AI in Journalism Futures, que explora de que formas a IA pode transformar profundamente o ecossistema de informação nos próximos 5 a 15 anos. Achei a premissa um pouco questionável dados os últimos desdobramentos e um certo pessimismo de boa parte dos jornalistas em relação à tecnologia (falamos a respeito disso na NFJ#475#472 e #458, entre outras), mas vamos adiante. Para entender as possíveis implicações de longo prazo da IA no jornalismo, o projeto utilizou um método de planejamento de cenários. Jornalistas, acadêmicos, especialistas em tecnologia e outros profissionais dessa intersecção de cerca de 70 países enviaram 880 cenários curtos para uma chamada aberta pelo projeto: 45 foram selecionados para um workshop de planejamento de cenários realizado na Itália em abril. (Curiosidade: no sumário executivo do relatório, feito com o auxílio do GPT-4, esse número é de 40, o que causou uma certa confusão aqui na minha cabeça). Nesses, os pesquisadores identificaram e mapearam 102 forças que vão moldar o uso da IA no jornalismo – elas foram classificadas em 23 categorias diferentes. Os maiores grupos de categorias foram os seguintes:

  1. Mudanças dramáticas nos modelos de negócios dos produtores de informação;

  2. Aumento da dependência em relação a empresas de tecnologia que fornecem IA;

  3. Maior acesso à informação com a possibilidade de uso da IA para aumentar a capacidade de produção e descoberta de notícias em larga escala;

  4. Uma divisão da sociedade em dois grandes grupos devido a diferentes atitudes em relação à IA e a desigualdades no acesso à IA.

Nossos assinantes entendem melhor cada um dos cinco cenários finais desenhados e leem nossa análise a respeito dos resultados do relatório clicando aqui.  (GC)

Conhecer os cenários e ler a nossa análise custa menos que um espresso. Apoie a gente


💎 Sete ideias para revitalizar o jornalismo local. Não, não se trata de um texto com dicas simplistas. Este estudo de Hanna Käyhkö, fellow do Reuters Institute, parte de uma constatação profunda: para se adaptar e sobreviver na era digital, as redações de notícias locais têm duas tarefas inegociáveis a cumprir: tornar-se especialistas em identificar necessidades não atendidas na comunidade a que servem; e produzir consistentemente o jornalismo mais confiável possível sobre essas necessidades. A combinação necessidade + confiança é o que pode salvar o jornalismo local, que tanto perdeu com a competição das plataformas. Para Käyhkö,

“a ironia mais cruel é que as grandes empresas de tecnologia sabem disso e podem confirmar que as notícias locais têm um desempenho particularmente bom em suas plataformas. Richard Gingras, vice-presidente do Google News, me disse: ‘As pessoas querem saber e influenciar coisas próximas a elas. Servir os moradores locais é a coisa mais importante que a mídia local pode fazer.’” 

Assim, a autora enfatiza que a sobrevivência das notícias locais depende de sua capacidade de se adaptar às necessidades mutáveis ​​de seu público, mantendo altos padrões jornalísticos. Somente por meio da produção de conteúdo local relevante e do engajamento com a a comunidade é que os veículos podem permanecer indispensáveis ​​para seus leitores. Esses achados conversam muito com o entendimento de mídia cívica da Nina Weingrill, com quem batemos um papo na semana passada. Quem não leu, vale a pena.

Mas quais são as ideias de Hanna Käyhkö para o jornalismo local? Na sequência deste tópicodisponível apenas aos nossos assinantes, destrichamos cada uma delas e ainda mostramos 7 maneiras pelas quais a inteliegência artificial pode auxiliar nesse processo de revitalização. (LV)

Saiba como o jornalismo local (ok, exagerei) por menos do que uma long neck


💎 A lógica por trás de decisões de negócios e gestão no jornalismo. Sempre é muito interessante quando organizações de notícias exercitam a transparência ao ponto de tornarem público o passo a passo de decisões de negócios nesses tempos em que não existe mais uma fórmula pronta para garantir a sustentabilidade do jornalismo. Pois bem, nessa semana, num texto no Medium, a diretora de produto do Jota, Paty Gomes, mostrou toda a lógica por trás de um movimento da empresa que em princípio pode parecer ser contra a corrente: enquanto praticamente todo mundo tem limitado acesso a material e exigido assinaturas, a partir dessa semana, todos os 50 mil conteúdos destinados a pessoas físicas do acervo do site (que foi reformulado) serão liberados de paywall, assim como cerca de 400 novos artigos originais que são publicados todo mês. Assim, o Jota abre mão de uma fonte de receita recorrente mais modesta em troca de um alcance maior de seus conteúdos – o que abre a possibilidade de mais conversões para o Jota Pro, braço de insights sobre a gestão de riscos e oportunidades institucionais em forma de relatórios e análises voltado a empresas. Paty conta no texto que a ideia surgiu há dois anos em uma conversa com a co-fundadora e diretora de audiências do Jota, Laura Diniz. A empresa demorou todo esse tempo para estruturar a mudança em torno dessa nova estratégia de negócios. Mas, claro, mudanças como essa sempre vêm acompanhadas de um friozinho na barriga, e Paty falou sobre isso com o Farol Jornalismo em uma rápida conversa por mensagens em meio à correria de colocar em prática o novo modelo.

Nossos assinantes podem conferir as respostas da Paty Gomes e ler a nossa análise sobre a aposta do Jota. Basta clicar aqui para seguir lendo. (GC)

Aprofunde o conhecimento oferecido pela NFJ. Essa barbada não vai durar muito

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


❄️ Inseguros, jornalistas venezuelanos usam avatares produzidos por IA. A inteligência artificial tem sido utilizada como forma de defesa para um grupo de jornalistas seguir reportando acontecimentos indesejáveis à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela. Em transmissões diárias, avatares criados por IA têm contado ao mundo sobre a repressão pós-eleição do presidente contra oponentes, ativistas e a mídia, sem colocar em risco os repórteres por trás das histórias. Segundo Carlos Eduardo Huertas, diretor da Connectas, plataforma de jornalismo colombiana que comanda a iniciativa, as incertezas quanto à segurança dos jornalistas cobrindo a situação política venezuelana crescem a cada minuto e justificam a medida inusitada. "Estar diante das câmeras não faz mais tanto sentido”, disse. De acordo com o Guardian, o nome do projeto (Operação Retuite), é ao menos em parte uma referência irônica ao nome que o regime de Maduro deu à sua dura repressão aos oponentes: Operação Toc Toc. Pelo menos nove jornalistas estão entre os presos, de acordo com o sindicato dos jornalistas venezuelanos, SNTP. 

A Operação Retuite envolve cerca de 20 veículos de notícias e checagem de fatos venezuelanos e cerca de 100 jornalistas que compartilham conteúdo, que é transformado em noticiários diários apresentados por avatares apelidados de La Chama e El Pana, que podem ser traduzidos aproximadamente como Melhor Amigo e Melhor Amiga, segundo o Guardian. A primeira transmissão ocorreu no dia 14 de agosto. E a segunda abordou um tópico particularmente perigoso: questionou as tentativas oficiais de culpar a oposição – que Maduro acusa de tentar lançar um golpe fascista – por muitas das mortes violentas ocorridas após as conturbadas e contestadas eleições venezuelanas. Recentemente, o ex-chefe da emissora estatal VTV, Vladimir Villegas, afirmou que cerca de 100 de seus ex-funcionários foram demitidos depois que mensagens consideradas hostis ao governo foram encontradas em conversas de WhatsApp (GC).


❄️ O jornalismo é um bem público e deve ser financiado publicamente. Esta é a síntese do argumento do professor e ex-repórter Patrick Walters neste texto publicado na Scientific American: o jornalismo é um bem público vital – um bem que, como estradas, pontes e escolas, é digno do apoio dos contribuintes. Embora se refira ao contexto estadunidense, podemos facilmente identificar os problemas nas nossas terras tupiniquins. A começar pela proliferaçãos dos “desertos de notícias” e pelas recorrentes demissões por que passa a indústria jornalística. Walters lembra que os termos “crise” e “colapso” se tornaram quase onipresentes na última década ao descrever o estado do jornalismo, muito por conta do colapso do modelo comercial em meio ao quase desaparecimento da publicidade impressa. “Os anúncios digitais não chegaram perto de fechar a lacuna porque o Google e outras plataformas aspiraram tudo”, diz. Outros modelos de jornalismo, como organizações sem fins lucrativos (ele cita o MinnPost) e alguns esforços colaborativos (como o Broke in Philly) tiveram relativo sucesso, mas “se mostraram incapazes de preencher totalmente o vazio, como demonstrado pela escassez de informações de qualidade durante os primeiros anos da pandemia de Covid”, afirma. A partir desse contexto problemático e já bastante conhecido, Waters destaca que um grupo crescente de vozes tem defendido um jornalismo financiado pelo governo, “modelo que muitos na profissão consideram problemático”, pelo risco de intervenção governamental. No entanto, ele elenca diversos momentos da história em que o governo ofereceu apoio ao jornalismo, a começar pelo pelos subsídios postais aos jornais em 1792 (aqui no Brasil não foi diferente, com a isenção tributária para o papel). Walters cita um ensaio do professor Victor Pickard, que defende o papel afirmativo do governo para ajudar a garantir o acesso público a um "sistema de mídia diversificado e informativo". E prossegue:

“Essa abordagem à mídia é desesperadamente necessária, especialmente em um ecossistema de informações invadido por algoritmos e voltado para o lucro de plataformas tecnológicas como Google, Twitter/X e Facebook, que priorizam cliques ao invés do serviço público”.

Para que isso aconteça, diz o professor, é preciso haver uma mudança fundamental na visão sobre jornalismo. “Informação de qualidade não pode ser vista como um luxo opcional para os ricos. Precisamos vê-la como uma necessidade crítica, como escolas, estradas, pontes, água limpa e pessoal de emergência. Visto dessa forma, o argumento para o jornalismo financiado publicamente muda de maneira drástica”, enfatiza. E sugere algumas saídas:

  • Créditos fiscais que as pessoas poderiam usar para apoiar veículos de notícias de sua escolha;

  • Organizações de notícias poderiam receber status de isenção de impostos, como igrejas ou escolas públicas. 

  • Receitas fiscais designadas (por exemplo, de impostos sobre plataformas, empresas de tecnologia ou de leilões) poderiam ser direcionadas para apoiar o jornalismo independente. 

Walters defende que esse financiamento teria que ser supervisionado por um conselho nomeado ou eleito publicamente. “Isso ajudaria a construir a infraestrutura do jornalismo apoiado pelo estado, em vez de algo que poderia se transformar em um braço de propaganda administrado pelo estado”, explica. (LV)


❄️ As pessoas preferem manchetes simples; os jornalistas, nem sempre. Em um estudo publicado na Science Advances e repercutido pelo Nieman Lab, os pesquisadores David Markowitz, Hillary Shulman and Todd Rogers mostram por que manchetes com palavras simples e que usam mais pronomes e menos preposicões recebem mais cliques. A resposta, na real, é meio óbvia: as pessoas clicam porque entendem. Mas, como mostraram os resultados da pesquisa, muitas vezes os jornalistas preferem complicar as coisas. Talvez porque estão com os editores em mente quando pensam na audiência. 

“(...) redatores e editores e pessoas que consomem notícias veem a complexidade de forma diferente. Portanto, uma maneira de jornalistas evitarem o problema de escrever para editores é ter os leitores em mente: use palavras mais curtas, escreva frases mais curtas e use mais palavras cotidianas em vez de alternativas complexas. O trabalho que é mais acessível alcançará o público mais amplo e obterá o maior engajamento.”

Além de engajamento, dizem os autores, a percepção de confiança também cresce. Isso porque as pessoas tendem a associar simplicidade à credibilidade. Mas, vejam, isso não quer dizer adotar estratégias caça-clique. “A simplicidade na redação de manchetes é importante porque o mercado de jornalismo é extremamente competitivo e porque reduz a barreira entre o público e informações importantes”. (MO)


❄️ O baobá da ÉNois. Num longo texto, a iniciativa explicou que agora funciona como um baobá, a magnífica árvore nacional de Madagascar com seu tronco grosso e longo e ramificações de galhos com folhas apenas no topo. Como escreveram a diretora de mobilização, Amanda Rahra, e a coordenadora de comunicação institucional, Helena Dias, o baobá da ÉNois:

"Carrega em si muitos símbolos sobre as estruturas que queremos provocar – a começar pelos tradicionais organogramas de empresas e organizações de terceiro setor – e aquelas que queremos construir: organismos vivos, que se revejam e sejam capazes de partilhar seiva e energia para todas as pessoas que pertencem a esse sistema. É uma árvore em si, mas é também sombra para pequenos brotos, vizinha para outras espécies da flora local, fonte de alimento para animais, sugadora de água do mesmo solo que seres humanos e não humanos."

O baobá da ÉNois tem nas suas raízes a direção (de formação, de mobilização e de desenvolvimento institucional), no caule o RH e a captação, e na copa os demais departamentos que se ramificam em diversos projetos, produtos e, finalmente, no próprio público. O processo que levou a essa estrutura levou 15 anos, o tempo de vida da organização, que sugere um passo a passo para outros veículos de comunicação criarem seus próprios organogramas:

  1. Reúna sua equipe para um momento de reflexão coletiva sobre cargos, funções e fluxos de trabalho;

  2. Liste todas as pessoas e funções que vocês têm na organização;

  3. Entenda as faixas salariais como balizas de responsabilidade de cada pessoa/função e crie cargos que ajudem a descrever o fazer das pessoas;

  4. Desenhe a relação entre essas pessoas;

  5. Se no dia a dia houver desconforto, reveja, conversem e cheguem a um novo formato. (GC)

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


🌱 Como o Google e a Meta dizimaram a mídia local. Circulou nessa semana nas redes sociais um vídeo produzido pela More Perfect Union, organização cuja missão é empoderar a classe trabalhadora ao reportar suas lutas e desafios, sobre como o Google e o Facebook teriam desempenhado grande protagonismo na captura do jornalismo como um todo e particularmente o local. Os argumentos do vídeo não são exatamente novos, mas a edição é contundente, o que talvez explique porque tenha chamado atenção – provavelmente até mais do que centenas de estudos sobre o assunto, inclusive um com a participação deste autor que vos fala no já longínquo ano da graça de 2020 e um bem recente de um colega brasileiro. O vídeo toma como ponto de partida a falência do Greer Citizen, uma publicação local de 106 anos de uma cidade da Carolina do Sul, no fim de julho, por causa de uma queda de receita. Segundo a reportagem, em média, 2,5 jornais foram fechados a cada semana nos EUA durante o ano de 2023 e metade das cidades do país tem apenas um ou mesmo nenhum jornal local – configurando, portanto, os chamados desertos de notícias. O vídeo conta que, em 2005, a receita total dos jornais americanos bateu na casa dos US$ 50 bilhões, mas de lá para cá caiu vertiginosamente até US$ 9,8 bilhões em 2022. Quem ficou com essa diferença e ainda desenvolveu novas frentes? Sim, principalmente o Google (que aumentou seu faturamento de US$ 20 bilhões em 2017 para US$ 260 bilhões atualmente, de acordo com Lee Hepner, senior legal counsel do American Economic Liberties Project) e a Meta, dona do Facebook, WhatsApp, Instagram, entre outras propriedades digitais. Para os especialistas entrevistados (e também para pesquisadores do assunto como Anne Helmond, que canta a pedra desde 2015), a vantagem competitiva dessas empresas no mercado de anúncios publicitários tem menos a ver com inovação tecnológica e mais a ver com consolidação corporativa através de aquisição de empresas como a Double Click no caso do Google e do Zap e do Insta no caso da Meta. O vídeo também lembra como as duas gigantes atuaram nos casos de legislação que tentava regular suas atuações e obrigá-las a pagar o jornalismo pelo uso indiscriminado de seu conteúdo na Austrália e no Canadá e como o Google usou seu lobby para melar algo semelhante na Califórnia, transformando o chamado Journalism Preservation Act em um acordo que destina cerca de US$ 250 milhões em 5 anos para o jornalismo do estado como um todo – muito pouco na opinião de Anita Chabria, do LA Times, e o suficiente para Ken Doctor, que escreve para o Nieman Lab. Na semana passada, o Departamento de Justiça dos EUA terminou de fazer suas considerações no julgamento do Google por monopólio no mercado de anúncios publicitários online ao retratar um mercado no qual é muito difícil para os editores escaparem de sua dependência do Google. Existe um otimismo dos especialistas entrevistados para o vídeo e para o Centro para o Jornalismo e a Liberdade de que o processo resultará em um desmembramento da plataforma de big tech, abrindo caminho para resultados semelhantes em outras frentes (como no caso dos mecanismos de pesquisa e nas redes sociais) e novas possibilidades de financiamento para o resto da mídia nos EUA. Gostaria de compartilhar desse otimismo. (GC)


🌱 World News Day I: só o público pode nos salvar. Sábado passado, 28 de setembro, foi o Dia Mundial das Notícias, ou Dia Mundial do Jornalismo. A iniciativa busca “chamar a atenção das pessoas para o papel que os jornalistas têm em fornecer notícias e informações credíveis capazes de servir ao público e à democracia”. Na data circularam alguns textos refletindo sobre o atual momento do jornalismo. Em geral, essas reflexões reafirmam o compromisso do jornalismo com os fatos e ressaltam a hostilidade crescente por parte da política institucional – seja a autoritária, seja a que chega ao poder por vias democráticas mas sabota a democracia ao atacar o jornalismo. Quero primeiro destacar o texto que Rasmus Kleis Nielsen escreveu sobre o assunto para o Reuters Institute, e que também marcou sua despedida à frente da organização. No bloco seguinte, trago reflexões de outros artigos sobre a mesma temática. 

Bom, Nielsen lembra que o jornalismo sempre esteve ligado às pessoas no poder. Não só porque elas possuem as informações necessárias para os cidadãos, mas porque elas precisavam da exclusividade que a mídia tinha em levar essas informações às pessoas. Mas essa simbiose foi implodida pelo ambientel digital, especialmente pelas redes sociais. Agora, os políticos seguem no poder e com poder, mas não precisam mais do jornalismo para comunicar suas ideias, ações, planos. E quando o jornalismo vai atrás dessas informações (e as questiona) é recebido com quatro pedras na mão. Até nas democracias mais liberais, lembra Nielsen, políticos vêm dando cada vez menos entrevistas a repórteres. A solução pra isso, sugere o ex-diretor do Reuters Institute, é se aproximar do público. Porque as pessoas seguem precisando de informações objetivas e bem apuradas – e isso as aproxima da democracia. “Quando cientistas sociais como eu tentam avaliar a importância democrática do jornalismo independente, o principal parâmetro é o que ele pode fazer pelo público – e há fortes evidências de que, com suas imperfeições, ele pode oferecer muito do que valorizamos”, escreveu. Só que não basta apenas seguir dizendo que nós somos importantes para a democracia, argumenta Nielsen. Isso é pregar para convertidos. Precisamos ouvir. O pesquisador, inclusive, faz uma crítica ao slogan do World News Day deste ano, que é “Choose Truth” (“Escolha a verdade”). Porque soa como mais uma afirmação de que o problema, na verdade, é das pessoas, que preferem escolher outras narrativas à verdade. Mas renovar o contrato entre o jornalismo e o público vai precisar mais do que dizer o quão importante é o trabalho que fazemos, escreveu. 

“Será necessário entender por que tantas pessoas cada vez mais sentem que [o nosso trabalho] não é [importante]. Talvez essa seja uma ideia para o Dia Mundial das Notícias do ano que vem: dedicá-lo aos jornalistas que tiram um tempo para falar com as pessoas em vez de para elas. Talvez o slogan pudesse ser menos um imperativo – escolha a verdade! – e mais uma pergunta feita ao público na qual a profissão, em última análise, confia – o que podemos fazer por você?”

Essa pergunta, “o que podemos fazer por você?”, me lembrou o jornalismo de subjetividade, da Fabiana Moraes, e o jornalismo circular de Nicolás Ríos no Documented, em Nova York. “Queríamos deixar para trás o jornalismo extrativista para um jornalismo inclusivo, onde nossos públicos participam da criação de conteúdo noticioso”, disse Ríos, em uma análise de estudo de caso publicada no site Gather. Colocando as pessoas para dentro do processo, afirmou, ficou mais fácil de ter um “entendimento do que é mais importante” para as pessoas. (MO)

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


🌱 World News Day II: a verdade sob pressão. David Walmsley, editor-chefe do canadense The Globe and Mail e criador do World News Day, lembrou o motivo que levou mais de 600 redações e organizações de mídia do mundo inteiro a se juntarem à data: 28 de setembro é “um dia para parar e refletir sobre a importância da independência e da bravura de jornalistas que fazem a diferença em suas comunidades”. Kathy English, editora do Toronto Star, também no Canadá, escreveu que a verdade deve ser a pedra fundamental da relação entre jornalistas e o público, e lembrou da dificuldade de manter essa edificação de pé atualmente:

“Para o público, [escolher a verdade] significa a necessidade de distinguir entre notícias reais e rumores e falsidades disfarçadas de fatos, um desafio cada vez mais difícil nesta era de conteúdo digital gerado por IA e ‘maus atores’ com a intenção de semear a discórdia pública com desinformação maliciosa. Para jornalistas, significa redobrar nosso princípio fundamental de servir ao público com a verdade fundamentada em fatos completamente verificados.”

A ganhadora do Nobel da Paz em 2021, Maria Ressa, e o editor-chefe do sul-africano Daily Maverick, Branko Brkic, disseram que as plataformas tecnológicas são “campos de batalha onde nosso futuro está sendo decidido – muitas vezes sem nossa permissão e contra nossa vontade”, e que é dever do jornalismo baseado em fatos e evidências “defender os valores sobre os quais nossa civilização foi construída” – ainda que muitas vezes o “próprio uso da palavra ‘verdade’ carregue o significado de mentira”.

“Nós, jornalistas ao redor do mundo, em momentos em que sistemas estão desmoronando e verdades fundamentais estão sob pressão, devemos mostrar que somos feitos de uma matéria mais forte; do tipo que pode resistir a campanhas de desinformação, ataques sustentados e uma inundação de mentiras.”

Pra fechar o bloco e o assunto, Mariane Nava, propõe, no ObjETHOS, uma discussão sobre a relação entre o jornalismo brasileiro, especialmente o representado pelos grandes jornais, como Folha e Estadão, e a defesa da democracia. A pesquisadora defende que, embora esses veículos digam se apoiar na ideia de que são “fundamentais à democracia”, nem sempre é bem assim, e suas ações acabam por fragilizar a própria democracia que dizem defender.

“Quando se analisam os jornais mainstream nota-se o esvaziamento ou ressignificação de sentido do conceito [de democracia] , que parece reduzido a um sistema político eleitoral, cujo efeito recai sobre a própria imprensa, que legitima o fazer jornalismo no ideal democrático. O resultado da fragilização da base dessa “lógica” atinge o sistema como um todo, aumentando o descrédito nos jornais e contribuindo para o crescente movimento de pessoas que deixam de ler os jornais e passam a se informar por meio das redes sociais.”

(MO)


🌱 O dilema de usar 'feito com IA' em conteúdo jornalístico (parte 2). Já falamos sobre o tema na NFJ#473 e agora temos mais assunto. Segundo um relatório da Trusting News em parceria com a Online News Association (ONA), 94% de um grupo de mais de 6 mil pessoas gostariam que os jornalistas revelassem quando usam inteligência artificial para produzir conteúdo. O problema é que, quase ao mesmo tempo, saiu um novo estudo com quase 5 mil respondentes dizendo que eles são céticos em relação a manchetes rotuladas como 'feito com IA' e tendem a ter menos intenção de compartilhar essas notícias mesmo que as histórias sejam fidedignas ou escritas quase que na sua totalidade por humanos. Segundo os pesquisadores, os leitores tendem a pressupor uso total da IA no processo de produção de uma reportagem com esse tipo de rótulos. E agora, José? A situação não se resolve facilmente (ou seja, só usar um rótulo não parece suficiente). Na NFJ#473, o remédio sugerido foi que as organizações de notícias procurassem realizar pesquisas de audiência para obter respostas das próprias comunidades que servem. O relatório da Trusting News vai um pouco além ao recomendar que:

  1. Os jornalistas expliquem porque a IA foi utilizada e como editores humanos revisaram o material para garantir precisão e padrões éticos;

  2. As redações engajem com suas audiências para discutir o assunto (para isso, a Trusting News preparou um formulário que deve ser encaminhado para os leitores e um guia de entrevista a ser aplicado pelos jornalistas);

  3. Sejam feitos investimentos em educação sobre IA, e

  4. Na prática do uso responsável da IA nos produtos de notícias.

Os pesquisadores responsáveis pelo relatório também dão dicas de como as redações podem se aprofundar nos itens 3 e 4. Ou seja, ferramentas tecnológicas que, em tese, tornaram o processo de produção de notícias mais eficiente também criaram outras novas (e trabalhosas) tarefas para os jornalistas – se quiserem seguir as recomendações e fazer tudo bonitinho, claro. Era isso sobre IA por hoje. Se quiserem, podem encontrar no nosso Centro de Recursos mais 14 links novinhos em folha sobre IA e jornalismo coletados nesta semana (somente para assinantes). (GC) 

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❄️ A newsletter de maior sucesso no BrasilMatéria da Inbox Collective fala sobre o sucesso da brasileira The News, boletim diário que tem mais de dois milhões de assinantes, outras sete newsletters temáticas, uma equipe com mais de 30 pessoas e diferentes fontes de receita. Lançada em 2020, a The News galopou num gap de linguagem identificado pelos fundadores Hernane Ferreira Jr. e Bruno Costa. Lá no começo da pandemia, os dois perceberam uma oportunidade. Em mercado dominado pelas newsletters dos veículos tradicionais e iniciativas como o Meio, mantido por jornalistas experientes, Hernane e Bruno criaram um boletim com "informações sobre o que está acontecendo no mundo" com uma escrita "rápida e atual" e "uma abordagem mais moderna sobre como fornecer informações", segundo o texto do Inbox Collective. Somado ao estilo, apostaram em uma estratégia agressiva de crescimento. Leitores que indicavam a The News podiam ganhar desde canecas até iPads. A média de idade da equipe é de 26 anos, sendo que o mais velho tem 35. O time de conteúdo até tem alguns jornalistas, mas não é essencial ter formação na área. A habilidade mais importante é saber entregar conteúdo. “Gostamos de contar histórias de forma leve. Ser jornalista não muda isso, na nossa visão. Na verdade, nenhum dos fundadores é [jornalista]. Isso está de acordo com o nosso tom. Falamos a linguagem do leitor, não a linguagem do jornalismo tradicional”, disse Bruno Costa. Ouch. A cutucada no "jornalismo tradicional" não para por aí. Ao comentar a expansão do conteúdo para outras newsletters, Bruno falou que a audiência – formada por Millennials e Geração Z – começou a pedir por conteúdo que fosse inovador e de qualidade, mas que não tivesse a "chatice" do jornalismo tradicional. A The News é free, mas outros boletins são pagos. Como a The Jobs, newsletter sobre carreira cuja inscrição custa R$ 199 por ano. A recomendação de produtos é outra fonte de receita do Waffle Group – marca por trás da The News. Nos planos de expansão está o investimento em vídeo e áudio. Pra fechar, uma dica do chefe de marketing do Waffle, Eduardo Kaloustian, para os criadores de newsletters: "Seja qual for o assunto, o formato exige consistência. Comece e não pare. Dê tempo ao processo e preste atenção a cada um dos menores detalhes. Os detalhes importam". Ok, anotado. (MO)


❄️ Uma indústria de trabalhadores desencantados, esforçados e ignorados. Um dos mais citados pesquisadores em jornalismo da atualidade, Mark Deuze (Universidade de Amsterdã) tem publicado em seu LinkedIn alguns posts sobre o seu próximo livro, em reta final de produção, que trata sobre a saúde mental, o bem-estar e a felicidade dos profissionais que trabalham nas diversas indústrias da mídia. O último deles particularmente me pegou. Espero que não arruine seu final de semana. "A indústria da qual as pessoas escolhem fazer parte é a mesma que as deixa doentes", afirmou Deuze, que no post anterior havia feito piada com o fato de estar finalizando o trabalho em um raro domingo de sol em Amsterdã. O pesquisador disse que detesta ter de escrever algumas partes do livro como essa aqui: "a maioria dos profissionais responde (ao amor não correspondido pelo trabalho) se esforçando ainda mais para fazer as coisas funcionarem. O medo de perder oportunidades, de ser visto como causador de problemas, de perder um salário parece superar não apenas respostas eficazes — ele está sendo usado pelo setor para justificar e perpetuar sua indiferença. Isso é especialmente perceptível na tendência das empresas e firmas de mídia de não ver os problemas de seus trabalhadores como se fossem seus." Se é triste assim para o profissional que (ainda) tem um trabalho fixo (embora completamente instável), imagina para um freelancer, que precisa correr atrás de trabalho praticamente todo dia. Pensando neles, o IJNet publicou um texto com sete dicas para controlar a ansiedade. Em suma, são elas: enfrentar os próprios medos, estabelecer objetivos financeiros estratégicos e alcançáveis, focar no presente, escrever sempre, fazer parte de um grupo de apoio, ter uma rotina e fazer pausas. Boa sorte para a gente. (GC)


❄️ Projor lança indicadores de transparência. Nesta semana, o Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo anunciou uma iniciativa que visa melhorar o comprometimento do jornalismo brasileiro com a sua audiência, o Programa de Indicadores de Compromissos com o Público. São 11 indicadores que, ao serem adotados por veículos jornalísticos, oferecem uma transparência maior em relação ao funcionamento da organização, bem como sua postura editorial. Nesta primeira etapa, que vai até o fim de novembro, o objetivo é certificar 200 organizações mapeadas pelo Atlas da Notícia e afiliadas à AJOR, ANJ e Aner. Quem implementar ao menos 8 dos 11 indicadores receberá um selo com a inscrição "veículo comprometido com o público". Depois de novembro, a adesão estará aberta a qualquer veículo que quiser participar. Até lá, sugere o Projor, as organizações jornalísticas interessadas podem preparar os seus sites a partir das informações reunidas em um manual de boas práticas. O documento explica o que é cada indicador e sugere formas de aplicação.

Os 11 indicadores são os seguintes:

  1. Expediente

  2. Princípios editoriais

  3. Política de correção de erros

  4. Afiliação a associações setoriais do jornalismo

  5. Acesso aos profissionais da Redação

  6. Propriedade do veículo

  7. Identificação clara de conteúdos patrocinados

  8. Transparência de financiamento

  9. Identificação de autoria

  10. Política de privacidade

  11. Acessibilidade

Fiquei curioso quanto ao indicador 8, transparência de financiamento. O manual diz o seguinte: “Em qualquer atividade econômica, inclusive a jornalística, quem ‘paga a conta’ tem o poder de influenciar o resultado final do produto ou serviço prestado. No caso do jornalismo, isso se refere ao conteúdo publicado. Logo, a transparência sobre as fontes de financiamento de um veículo jornalístico demonstra o seu nível de compromisso com a integridade noticiosa e independência editorial.” Em seguida, sugere que o veículo, em uma seção sobre financiamento disponível no site, descreva suas diferentes fontes de receita, como “publicidade, assinaturas, contribuições voluntárias de leitores, promoção de eventos”. Por fim, dá exemplos de veículos que já adotam a prática, dentre eles AzMina, Ponte e GZH. “Olha que interessante”, disse eu pra mim mesmo, “a GZH divulga suas fontes de financiamento”. Fui lá ver. E encontrei o seguinte: “Em 2019, cerca de 5% da verba de publicidade foi estatal e 95% teve origem privada”. Que detalhado! (Não vou nem comentar que a página não é atualizada há cinco anos.) O texto ainda diz que o GrupoRBS anuncia, em suas coberturas, quando há “potenciais conflitos de interesse”. Que estranho, nunca vi. Mas beleza, vou ficar de olho nas próximas matérias sobre urbanismo (via de regra elogiosas a mega empreendimentos) e sobre as discussões envolvendo o plano diretor de Porto Alegre, já que a mesma família que controla o jornal possui uma incorporadora – e tem, historicamente, várias outras entre seus anunciantes. Por isso, lindo mesmo seria ver de onde vem os 95% de verba publicitária privada e depois comparar com o tipo de cobertura que o grupo faz ou não faz. Nunca vai rolar. (MO)


❄️ “Tão longe do Twitter, tão perto da LinkeDisney”. E essa volta “involuntária” do X, hein? Esta matéria do G1 afirma que a rede ficou parcialmente acessível nesta quarta-feira devido a um problema técnico. Nada explicado com transparência, as usual. Em tom de crítica ao posicionamento da rede de Elon Musk no país, mais de 50 estudiosos das plataformas digitais e de seus impactos na economia assinaram uma carta exigindo respeito à soberania digital brasileira. “Exigimos que as Big Techs cessem suas tentativas de sabotar as iniciativas do Brasil voltadas para a construção de capacidades independentes em inteligência artificial, infraestrutura pública digital, governança de dados e serviços de nuvem”, diz o documento. Este texto de Gretel Khan no Reuters Institute ouviu editores do Núcleo, Agência Pública e Poder 360, para “medir a temperatura” da ausência do Twitter/X para o jornalismo. A matéria começa com uma contextualização importante: os mais de 21 milhões de usuários no Brasil representam uma das maiores bases da plataforma no mundo, embora o uso para notícias tenha diminuído nos últimos anos. De acordo com o Digital News Report 2024, o TikTok (14%) inclusive ultrapassou o X (9%) no uso para notícias. Os números do Núcleo – site que se dedica à cobertura das plataformas – seguem essa tendência: quando o site começou, em 2020, mais de 16% do tráfego vinha do X. Depois da compra por Musk, em 2022, o tráfego caiu mais da metade, para 8,6%. Quando houve o bloqueio, apenas 3% do tráfego vinha da plataforma. Sérgio Spagnuolo, diretor executivo do Núcleo, disse que já haviam tomado a decisão de sair do X e que iriam anunciar isso em setembro.

“Íamos dizer que o X não é mais uma boa plataforma para conversas, não alcança muitas pessoas, não gosta de links, tem muito conteúdo tóxico e não moderado e muitas mensagens radicais de direita. Íamos sair do Twitter para sempre ou até que melhorasse. No meio desse processo, o Twitter foi bloqueado”. 

Natália Viana, cofundadora e editora da Agência Pùblica, afirma que o X já havia se tornado uma plataforma irrelevante pós-Elon Musk. Mateus Netzel, diretor executivo do Poder 360, explica que menos de 3% da audiência vem das redes sociais, com até 90% dos leitores chegando ao site diretamente ou por meio de pesquisa. Por isso, não houve impacto em termos de tráfego, mas ele reconhece que o X tinha relevância no debate público porque políticos e jornalistas estavam lá.

Com três vezes mais usuários que o X no Brasil, o LinkedIn tem uma lógica específica de funcionamento, que acabou criando uma cultura digital bem diferente da do Twitter. Esta matéria de Manu Barem na Piauí descreve muito bem os meandros da LinkeDisney – “apelido dado pelos brasileiros para criticar o comportamento de quem usa a plataforma como se vivesse em um mundo paralelo, com cenários coloridos e histórias de contos de fadas”. Barem conta que há um mercado específico em agências de relações públicas e assessorias de imprensa, e que também movimenta a vida dos jornalistas freelancers: os ghost-writers de C-levels – ou escritores fantasmas dos chefões, que ajudam executivos a construirem engajamento e conquistarem o selo “top voice”. Confesso a vocês que preferia o clima “fumódromo” do Twitter pré-Musk. (LV)

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


🌱 Ficar na profissão, voltar a chorar, deixar a profissão. 

Jornalistas ficam alegres ao oferecer às pessoas um serviço público e por desenvolver laços de confiança com a audiência. Esse é o principal achado de um artigo publicado na Journalism Practice pelos pesquisadores Gregory Perreault, da Universidade do Sul da Flórida, e Claudia Mellado, da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, no Chile – o paper foi resumido neste texto para o Nieman Lab. Eles ouviram 20 profissionais de diferentes veículos espalhados pelos EUA e descobriram que, ao trabalhar no dia a dia do jornalismo, a gente é alimentado de vida. Às vezes a vida pode ser dura e conflituosa, é verdade, mas também pode oferecer perdão, gratidão, compaixão e generosidade. “Há histórias que motivam você a ser generoso. Eu acho que você não pode estar neste negócio a menos que seja generoso, empático, íntegro. Você tem que entender de onde as pessoas vêm para conectá-las ao seu público”, disse um dos entrevistados. Mellado e Perreault sublinharam a importância que os jornalistas dão aos laços de confiança criados entre eles e as fontes durante as entrevistas, algo que não é dado, e sim construído a partir de uma relação humana. Outro motivo de alegria para os jornalistas é o espírito de camaradagem entre colegas, seja na boa, seja na ruim – Perreault dá o exemplo de uma jornalista do NYT que, ao escrever dezenas de perfis de vítimas do 11/9, conseguiu elaborar melhorar a perda de um primo na tragédia.

É preciso deixar-se afetar pela realidade, defendeu a jornalista e pesquisadora da UFC Raquel Kariri neste post no Instagram. “Os jornalistas precisam voltar a chorar”, escreveu. Houve um tempo, disse ela, que os jornalistas narravam a vida que os afetava enquanto flanavam nas ruas, mas que hoje fomos “engolidos pela máquina de moer gente e a arte de notar se transformou na arte de desencantar”. Contar histórias não é pouca coisa, afirma. “(...) todos sabemos que quem narra cria universos inteiros, transmite e (re)define realidades”. O mundo de hoje urge por narrativas criadas por seres que também se sentem e se mostram afetados por um mundo que desmorona – e essa é a nossa maneira de oferecer reparação. 

“Precisamos reconhecer que nosso mundo está colapsando, estrebuchando. É preciso fazer isso bem de dentro do nosso coração, só assim vamos deixar de ser esses robôs embotados, hipnotizados e permitiremos que nosso espírito se afete e chore por todos os seres que viraram fuligem. (...) Temos que desmoronar, e isso é urgente, porque não existe sonho sem empatia. Há mundos inteiros que precisam que nosso coração se abra para o afeto e dor, só assim eles poderão ser ouvidos.”

Enquanto isso, nos EUA, um levantamento feito pelo site Muck Rack e divulgado pelo Poynter aponta que mais da metade (56%) dos jornalistas consultados (402) pensam em largar a profissão neste ano. O motivo principal é a eleição presidencial – cobertura tradicionalmente exaustiva em qualquer lugar do mundo. As principais fontes de estresse são carga de trabalho, baixos salários e a expectativa de estar sempre conectado, always on. Dois terços disseram trabalhar mais de 40 horas por semana e 80% afirmaram que trabalham fora do horário ao menos uma vez por semana. (MO)


🌱 Cadeirada, debates, violência e jornalismo. 

É, dá vontade de largar a profissão mesmo. Debates já não servem pra muita coisa há horas. Agora, ainda rola cadeirada. Como o jornalismo pode elevar o nível das discussões? É o que pergunta esta matéria do André Duchiade para a LJR. A reportagem traça um histórico da evolução das agressões – antes verbais, agora físicas – nos debates políticos da democracia brasileira e sublinha o papel do ambiente digital nessa dinâmica violenta. Nas redes sociais, o candidato "precisa ser mais exótico", disse o cientista político e professor de Comunicação da UERJ Fábio Vasconcellos, um dos entrevistados. "Na sociedade dos cortes, a radicalização gera os melhores reacts", escreveu o pesquisador Álisson Coelho neste texto para o ObjETHOS. Uma das sugestões para melhorar o ambiente, segundo as fontes ouvidas por André, é uma intervenção maior do TSE na regulação das regras que regem esses encontros, de maneira a "aumentar o custo" dos ataques e xingamentos. À LJR, a cientista Carolina Almeida de Paula, do IESP-UERJ, disse que os eleitores não gostam desse circo de caos, mas se divertem. E as emissoras, claro, aproveitam. Marçal, por exemplo, nem precisaria ser chamado, pois seu partido não cumpre a cota de representação parlamentar no Congresso. Mesmo assim, ele esteve em todos os debates, pois eleva a audiência e a visibilidade dos veículos. No ObjETHOS, Álisson Coelho destaca o desafio do jornalismo em cobrir um candidato que "​​não opera em um nível racional" – postura que, sabemos bem, é a marca da família Bolsonaro. A urgência é grande, pois a depender dessa galera, não há democracia. E sem democracia, o jornalismo já era:

"Como tolerar os intolerantes já era um enorme desafio nos tempos atuais. Quando se trata de um intolerante que ignora completamente qualquer civilidade, racionalidade ou códigos básicos da política, isso se torna ainda mais complexo. Entender como operar nesses casos é o desafio histórico do jornalismo hoje. A depender dos rumos da democracia, pode ser o último."

Na Folha, o doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP Leão Serva diz, ao analisar o caso Marçal, que o jornalismo “vive síndrome de Estocolmo em relação a mídias digitais e precisa se proteger de políticos autocráticos” – Leão foi o mediador do debate da cadeirada, pra não lembra. Ele começa o artigo perguntando: “Dado o conhecimento que temos hoje, se Adolf Hitler fosse candidato a um cargo de governo, deveríamos convidá-lo para um debate?” Boa pergunta. Porque, como Álisson Coelho nos lembra no trecho acima, ao dar palco para políticos nocivos à democracia, o jornalismo dá um tiro no próprio pé, pois sem democracia o jornalismo não existe. Leão defende que há uma “ignorância crucial nessa servidão à popularidade” das mídias digitais (leia-se redes sociais), pois grande parte do material que alimenta a roda desse ambiente é oriundo da mídia convencional. 

“A dependência ficou clara quando o candidato Pablo Marçal culpou três semanas sem debates televisivos por sua queda nas pesquisas. Afinal, mídias digitais não são suficientes para sustentar um candidato? Não... É o jornalismo, estúpido!”

A gente dá atenção a candidatos que minam a democracia em busca de audiência para sermos ofendidos e agredidos por esses mesmos candidatos. No Observatório da Imprensa, Rafaela Sinderski Leticia Kleim e Maria Esperidião fazem um raio-x das agressões sofridas por profissionais da imprensa na atual campanha política e defendem que “organizações ligadas à liberdade de expressão e à imprensa não devem baixar a guarda quando se trata de conter a violência contra os jornalistas”. 

As hostilidades que marcaram os anos do governo Bolsonaro – principalmente aquelas endereçadas às mulheres – aparecem fortes no “Marçalismo” e encontram ressonância em alguns setores da esquerda. 

Vale acompanhar os relatórios semanais da Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor) com dados de violência à imprensa e a jornalistas nas redes sociais. O último levantamento inclui dados do TikTok e “revela número preocupante de ataques”. 

De 12 a 18 de setembro, foram acompanhados nessa rede 17 perfis e selecionados 596 termos ofensivos usados para a coleta e filtragem das publicações, totalizando quase 160 mil postagens analisadas, que resultaram em 491 ataques à imprensa. Os dados colocam a rede, proporcionalmente, no topo das mais utilizadas para hostilizar a imprensa.

Na edição de hoje da Lente, newsletter da Lupa, Marcela Duarte explica como a violência de Marçal contribui para um ambiente de desinformação ao apostar nas agrassões como combustível para fazer girar a economia da atenção. “O valor está no tempo que as pessoas gastam discutindo, compartilhando e reagindo, e não na veracidade dos argumentos”, reflete Marcela. Assim como os entrevistados por André Duchiade na LJR, a gerente de Produto da Lupa chama a atenção para a responsabilidade da Justiça Eleitoral ao não “reagir adequadamente a infrações” cometidas por candidatos como Marçal.

“O resultado é um ambiente onde a violência simbólica, o engajamento polarizado e a desinformação convergem para moldar a percepção do eleitorado, encobrindo o sentido e os processos da democracia brasileira. Sem regulação de plataformas sociais, sem ações contundentes da Justiça e dos partidos e sem uma compreensão profunda das novas dinâmicas de comunicação, candidatos como Marçal continuarão explorando falhas, avançando suas agendas e polarizando o debate.”

E ainda temos nove dias pela frente. Fora o segundo turmo. Mas deixar a profissão, que nada. Vamo com raiva e com beleza. “Reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”, como escreveu Fabiana Moraes citando Ítalo Calvino na sua coluna mais recente na revista Gama. Então, apesar do ambiente desafiador, ainda há tempo para aperfeiçoar a cobertura – este guia da GIJN oferece “ferramentas, técnicas e recursos para ajudar os repórteres vigilantes a investigar quase qualquer campanha ou eleição” – e fazer alguma festa. Fabiana: “Chegamos a 2024 e agora, mais do que nunca, nós dançamos com o fogo”. (MO)


🌱 Repositório de links sobre jornalismo e IA. 

Vocês já devem ter percebido que o assunto inteligência artificial ganhou um bloco fixo na NFJ desde mais ou menos a metade de 2023. Também devem ter notado que, até algumas edições atrás, listávamos uma série de links relacionados ao tema ao final do bloco. Conforme o tempo foi passando, entendemos que aquele "giro de notícias" de IA e jornalismo com uma quantidade crescente de links soltos e apenas uma breve descrição pouco agregava a vocês e à newsletter. Por isso resolvemos lançar um novo produto que, assim como nossos guias temáticos e relatório anual de tendências, vem reforçar um dos papéis fundamentais que a gente espera que o Farol Jornalismo cumpra na vida de todos: não apenas o de agregar tudo que está sendo abordado em relação ao jornalismo por aí e pinçar o que mais importa dentro dessa enxurrada de conteúdo, como também organizar esse material para que a gente possa efetivamente consumi-lo e aprender com ele. A partir de agora, na aba Centro de Recursos do nosso espaço no Substack (💎), nossos assinantes têm acesso a um repositório com todos os links sobre IA e jornalismo que coletamos durante a produção de cada NFJ. Cada referência está classificada por número da edição relacionada, data, assunto e fonte. Se você tem interesse em saber sobre as ferramentas de IA mais utilizadas, pode filtrar o conteúdo por esse assunto e acessar apenas os links relacionados sem perder tempo com outros (veja o vídeo abaixo). Nas últimas 10 semanas, coletamos mais de 100 links sobre 21 sub-temas publicados por cerca de 60 fontes diferentes. Apoiem a gente e divirtam-se com o brinquedinho novo! (GC)


🌱 A lacuna entre a prática jornalística e a pesquisa/ensino do jornalismo. 

Os jornalistas reclamam da Universidade: não receberam treinamento suficiente para enfrentar as questões mais importantes da profissão na atualidade (como, por exemplo, distribuição de notícias por plataformas, alternativas a um modelo de negócio decadente, etc.). Os pesquisadores reclamam da indústria: fazem estudos, publicam artigos científicos, dão sugestões e as redações não dão a menor bola. A distância entre a prática e a pesquisa/ensino do jornalismo é notória e enorme. O American Press Institute publicou nesta semana um relatório que busca entender os motivos deste problema (o foco é os EUA, mas a realidade no Brasil não é muito diferente) e como enfrentá-lo. Segundo o relatório, "as redações percebem os pesquisadores acadêmicos como sugadores em vez de colaboradores, às vezes considerando sua presença mais como um contratempo do que uma ajuda. Além disso, os pesquisadores acadêmicos muitas vezes não têm experiência recente na indústria, o que os torna menos capazes de entender e reagir às pressões atuais da redação." Bem na nossa cara. Por outro lado, a pesquisa de audiência realizada pelas organizações de notícias se limita a métricas quantitativas fornecidas por plataformas de terceiros. "Acadêmicos acrescentam capacidade investigativa que muitas vezes falta nas redações que buscam saber mais sobre como otimizar fluxos de trabalho e a recepção do público", afirma o relatório, que aponta alguns centros acadêmicos tentando construir pontes entre a Universidade e a indústria, como o Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy, de Harvard, e o Center for Media Engagement, da Universidade do Texas. As sugestões dos pesquisadores para resolver esse problema histórico – que não é exclusividade do jornalismo, diga-se – vão desde criar mais espaços onde profissionais de mídia e pesquisadores possam conversar (por exemplo, conferências mistas) até maior financiamento para iniciativas como as duas mencionadas acima sem esquecer da necessidade de se aumentar a acessibilidade da pesquisa sobre jornalismo. "Os pesquisadores devem criar resultados não acadêmicos com base em seus artigos científicos, como guias de melhores práticas ou resumos das ramificações práticas da pesquisa", recomendam. O foco dos estudos também poderia estar mais voltado para apontar soluções do que apenas os problemas. Para isso, no entanto, o pessoal do API reconhece a necessidade de se alterar o sistema acadêmico para incentivar os pesquisadores a extraírem relevância do mundo real com o auxílio que podem dar ao desenvolvimento do jornalismo em vez de buscarem simplesmente expandir as listas pessoais de artigos revisados ​​por pares publicados. É, não se trata de um caminho fácil… (GC)

Fonte Portal Membro Farol Jornalismo


Para conhecer as Ficções da Distopia Climática

Convite a um gênero literário pouco conhecido. Nos filmes e na literatura, sociedades buscam sobrevivência aos extremos do clima; e explodem as crises de refugiados ambientais… Enquanto isso, o 0,1% mais rico desfruta de luxos e privilégios

Por Marcos Vinícius Almeida, no Brasil de Fato

No mesmo instante em que América Latina, e também parte da América do Norte e Europa, é devastada por incêndios, com peixes aparecendo mortos na Grécia, nas represas de São Paulo e nas baías do Pantanal, uma cápsula espacial deixou o planeta Terra, carregando um bilionário. 

A caminhada espacial do turista Jared Isaacman, o primeiro civil estratosférico, é alegórica e literal: o planeta precisa ser exaurido e 99,9% das pessoas que vivem nele têm que morrer para sustentar o luxo divino de meia dúzia de reis do cosmo. 


Não se trata de um problema moral, mas material e concreto, como mostram dados extraídos do relatório Igualdade Climática: um Planeta para os 99%, da Oxfam International, de 2023.

O 1% mais rico da população mundial emite a mesma quantidade de carbono que os 66% mais pobres. Isso significa que um pequeno grupo de pessoas extremamente ricas é responsável pela mesma poluição que quase 5 bilhões de pessoas que vivem em condições de pobreza. Uma pessoa que está entre os 99% mais pobres da população, como eu ou você que lê este texto agora, levaria cerca de 1,5 mil anos para produzir a mesma quantidade de carbono que um bilionário produz em um único ano.
 
A conta é simples: para que uma pequenina casta de bilionários apenas exista e respire, a vida na Terra precisa desaparecer. Para que eles possam viajar para o espaço, nossos filhos têm que morrer respirando fuligem, comendo verduras intoxicadas, bebendo água envenenada com microplástico e pesticidas.

“Os cientistas categorizam agora a Terra como um planeta tóxico”, escreve o professor do departamento de História da Unicamp Luiz Marques, no seu livro O decênio decisivo (Elefante, 2023). “A letalidade e os danos para a saúde humana e de outras espécies de muitas das mais de 140 mil novas substâncias químicas e pesticidas sintetizados desde 1950 não são ainda suficientemente conhecidos, tampouco os danos causados pela exposição prolongada.”

Isso é uma aberração, tratada cotidianamente como normalidade. 

A cena desta semana, de naves de super-ricos vagando no espaço, lembra Elysium (2013), filme do diretor sul-africano Neill Blomkamp, que filmou a Terra como um planeta coberto por detritos da produção industrial-tóxica do capitalismo tardio. O filme alegoriza os refugiados de hoje, mortos no Mediterrâneo, e os do amanhã, impedidos de participar dos benefícios do avanço tecnológico e dos bens socialmente construídos. 

Toda a superfície terrestre de Elysium se transformou numa imensa periferia povoada por trabalhadores vigiados por uma polícia truculenta de máquinas. O capitalismo distribui muito bem a pobreza. E concentra a riqueza numa parcela insignificante da população. A elite global vive isolada numa estação sintética, que simula a vida na Terra, cheia de jardins e prédios envidraçados. “Há esperança, esperança infinita”, escreveu Franz Kafka. “Mas não para nós”.

Para quem cresceu no meio do ambiente extrativista da mineração, que devasta nascentes e matas ciliares na pequena cidade de Luminárias, Minas Gerais, como eu, assistindo desde sempre empresários donos de pedreiras construindo fortunas, com casas de luxo e chalés à beira do céu, enquanto os trabalhadores como meu pai se aposentaram com o pulmão cheio de areia, essas ficções não são o futuro: são também o passado e o presente.  


A filantropia não vai nos salvar

Em O Perfuraneve, aclamada graphic novel francesa de ficção científica, publicada pela primeira vez nos anos 80, a Terra se transformou em um deserto congelado após um experimento científico fracassado, que tenta reverter o aquecimento global. Os únicos sobreviventes da humanidade residem em um trem gigantesco, criado pelo filantropo Sr. Wilford, que percorre o globo incessantemente, movido por um motor perpétuo.

Dentro do trem, a sociedade de refugiados climáticos se mantém desigual. Os passageiros da primeira classe desfrutam de luxos e privilégios, enquanto os da cauda vivem em condições miseráveis, enfrentando fome, doenças e opressão. Essa divisão social extrema gera tensões e conflitos crescentes.

A narrativa, escrita por Jacques Lob e ilustrada por Jean-Marc Rochette, acompanha a jornada de Proloff, um habitante da cauda que se envolve em um movimento revolucionário que busca romper essa estrutura opressiva e alcançar a locomotiva, onde supostamente reside o controle do trem e a possibilidade de uma vida melhor.

A história foi brilhantemente adaptada para o cinema pelo coreano Bong Joon-ho, em O expresso do amanhã (2013), que dialoga com os temas de seu filme mais conhecido e premiado, Parasita (2019). A versão recente da Netflix, não é tão interessante.

Bilionários fazem mal ao mundo não porque são moralmente pervertidos, egoístas e maldosos. Alguns até são. A despeito de sua boa vontade, a cadeira que ocupam na sociedade, o lugar social, parasitando a riqueza produzida coletivamente, direta ou indiretamente, custa a vida de muita gente. E do próprio planeta.

Incêndios sem fim

Já na graphic novel A Estrada, adaptação do artista Manu Larcenet para obra homônima de Cormac McCarthy, retrata a jornada angustiante de um pai e seu filho, dois refugiados climáticos, em um mundo pós-apocalíptico devastado por incêndios sem fim.

A paisagem é desoladora, cinzenta e hostil. A fome, o frio e a ameaça constante de canibais transformam a busca por um lugar seguro em um desafio brutal. Nesse ambiente extremado, onde a luta pela sobrevivência a qualquer custo coloca todos contra todos, pai e filho tentam transmitir um ao outro vestígios de uma ética e solidariedade.

Se em Mad Max o culto doentio ao automóvel numa sociedade centrada no petróleo e na solução burra e medíocre do transporte individual sobrevive ao próprio fim do mundo, a criativa e sombria imaginação Cormac McCarthy não consegue prever novos arranjos afetivos para além de uma típica família burguesa. Mesmo quando o pai morre, o garoto é adotado por uma família que parece ter saído de um comercial de margarina: pai, mãe, criança e cachorro.

É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?

Rebecca Solnit escreveu um recente ensaio, presente na edição deste mês da revista Quatro Cinco Um, no qual diz que o pensamento apocalíptico seria uma espécie de “fracasso narrativo: a incapacidade de imaginar um mundo diferente daquele que vivemos hoje.”

É difícil compartilhar do seu otimismo quando a solução para o transporte do futuro, sob a ideologia de uma transição para energia limpa, seriam carros elétricos, com baterias de lítio. 

De acordo com um estudo da Universidade de Leuven, a produção de uma bateria de 100 kWh para um carro elétrico pode gerar entre 6,2 e 10,5 toneladas de CO2, dependendo da tecnologia e da origem da eletricidade utilizada na fabricação. A mineração de lítio, por exemplo, consome grandes quantidades de água, podendo chegar a 2 milhões de litros por tonelada de lítio extraído, segundo o relatório do Friends of the Earth. Além disso, a reciclagem de baterias ainda é um desafio, com taxas de reciclagem global abaixo de 5%.

O “fracasso narrativo” é nos deixarmos levar pelas lindas campanhas e promessas ESG de carbono zero das montadoras, que mantêm o arcaico modelo de transporte dos anos 50, centrado no indivíduo solitário com um carro na garagem, e não em cidades sustentáveis, com transporte coletivo barato, de qualidade, inteligente e ecológico, para todos.

“Fracasso narrativo” é se submeter aos métodos predatórios do agronegócio, devastando a Amazônia e o Pantanal para criar gado, despejando no solo e nas águas cotidianamente toneladas de substâncias proibidas nos EUA e na União Europeia. 

“Fracasso narrativo” é não assumir radicalmente que a solução está em práticas agroecológicas de uso da terra, pensadas coletivamente como nos assentamentos do MST, ou nas comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Uma tecnologia de coabitação do planeta muito mais inteligente, sofisticada e disruptiva. Um futuro ancestral, como costuma dizer Ailton Krenak.

A saída para a vida ecologicamente responsável está em práticas e modos de organização coletivistas. Práticas verdadeiramente anticapitalistas que enfrentam os pilares da catástrofe climática, que são o colonialismo, a misoginia, o racismo, conjuntamente formadores da lógica da exploração.

“Quando começamos pela catástrofe do colonialismo e da escravidão, a localização do colapso climático, ambiental e social contemporâneo gira e sofre uma mutação (…) Catástrofes ancestrais são passado e presente”, escreve Elizabeth A. Povinelli, no seu ótimo livro Catástrofe Ancestral: existências no liberalismo tardio.

É aqui que começam, de verdade, as novas histórias sobre o clima. 

Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e é autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com. 


Fonte Portal Membro Outras Palavras


❄️ Não há lugar para o doisladismo na cobertura de políticas climáticas. Em tempos de cobertura eleitoral – presidencial nos EUA e municipais aqui no Brasil – é oportuna a leitura de um artigo publicado uns dias atrás no Covering Climate Now sobre a necessidade de o jornalismo deixar pra trás o doisladismo quando noticia políticas climáticas. O texto lembra que, enquanto nenhuma redação séria ainda adota a falsa equivalência na ciência, quando o assunto é política climática, esse tipo de abordagem ainda é comum. Em meados de agosto, o Washington Post, por exemplo, publicou um editorial cuja leitura dá uma forte impressão de que há pouca diferença entre as abordagens de Biden e agora Kamala Harris e do ex-presidente Donald Trump ao clima. O Covering Climate demonstra como o WP, em nome de uma tentativa de equilíbrio, coloca meio que em pé de igualdade a postura das duas candidaturas – o que todo mundo sabe que não é verdade. “O instinto de cobertura política de ambos os lados não se limita a um único meio de comunicação. Nem é exclusivo deste ciclo eleitoral, como mostra a saga de e-mails de Hillary Clinton em 2016. Mas o planeta está em chamas. Um candidato quer colocar lenha na fogueira. O outro quer apagar esse incêndio. Deixar essa distinção clara não é nem partidário nem militante. É jornalismo”, diz o texto. Falando em jornalismo, vale ler a carta mais recente de Eliane Brum. A fundadora da Sumaúma não mede as palavras para avisar que todos devemos assumir nossa parcela de responsabilidade em relação à catástrofe climática. Não dá mais pra fazer de conta de que não é com a gente o que está rolando aqui no Brasil (e no mundo), diz a jornalista. Ter “consciência do que está acontecendo, mas negar o que está acontecendo para poder tocar a vida” também é uma forma de negacionismo, escreveu. “Aqueles que levam nossa casa-planeta ao colapso não vão parar”. Só nós, coletivamente, podemos fazer isso, afirmou. E nessa história, o jornalismo tem um lado, né galera: é o do planetaEm artigo para o Observatório de Jornalismo Ambiental, as pesquisadoras Clara Aguiar e Eloisa Beling Loose dão pistas de como o jornalismo pode contribuir para mudar essa realidade – ao analisar a cobertura das eleições para Porto Alegre. Elas sugerem que o jornalismo adote uma abordagem mais profunda e sistêmica sobre o assunto, evitando a discussão de soluções imediatistas, o que acaba por fragmentar a pauta e dificulta a percepção do público sobre as relações econômicas, políticas, sociais, culturais e ambientais que envolvem as políticas climáticas. Pra fechar, vale a menção à nova séria da Folha que vai destacar os efeitos das mudanças climáticas na Amazônia. (MO)


❄️ O impacto da IA na desinformação eleitoral é menor do que o alardeado. Ao menos esse é o argumento de um texto dos pesquisadores Felix M. Simon, Keegan McBride e Sacha Altay para a MIT Technology Review. Segundo eles, personalidades e veículos importantes do cenário informacional global, como a vencedora do prêmio Nobel da Paz Maria Ressao Washington Post e a ex-secretária de estado americana Hillary Clinton têm sido demasiadamente alarmistas ao afirmarem que a inteligência artificial teria um papel preponderante na desinformação que circula neste ano em que metade da população mundial está passando por eleições. Os pesquisadores sugerem, inclusive, que essa preocupação está desviando o foco de ameaças mais profundas e duradouras à democracia, como privação em massa de direitos de eleitores; intimidação de autoridades eleitorais, candidatos e eleitores; ataques a jornalistas e políticos; esvaziamento dos mecanismos de controle; políticos propagando mentiras; e várias formas de opressão estatal (incluindo restrições à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e ao direito de protesto). Eles citam alguns estudos para concluir que, embora a IA esteja realmente sendo usada em campanhas, o efeito dessas ferramentas na alteração dos resultados eleitorais tem sido marginal, com pesquisas mostrando que a influência de campanhas de persuasão em massa, com ou sem IA, é limitada. Não é uma perspectiva tão sexy quanto a de um armaggedon eleitoral causado pela IA, né? Enfim… 

Os pesquisadores salientam que, em primeiro lugar, a persuasão em massa é algo notoriamente desafiador. Além disso, o conteúdo gerado por IA sofre a mesma dificuldade que qualquer outra forma de material: chegar ao público-alvo em meio ao tsunami de informações que vivemos. Os eleitores também parecem perceber quando a IA está sendo usada para alcançá-los e tendem a mostrar aversão a isso. Para completar, lembram que o comportamento de votação é moldado por um complexo nexo de fatores, que incluem gênero, idade, classe, valores, identidades e socialização. Embora reconheçam que algumas preocupações sobre IA e democracia, e particularmente eleições, são justificadas (por exemplo, perpetuação e amplificação de desigualdades sociais, assédio e o abuso de mulheres na política), Simon, McBride e Altay alertam que existe um custo para reações exageradas baseadas em suposições infundadas, especialmente quando outras questões críticas não são abordadas:

"Narrativas excessivamente alarmistas sobre os supostos efeitos da IA ​​na democracia correm o risco de alimentar a desconfiança e semear a confusão entre o público — potencialmente erodindo ainda mais os já baixos níveis de confiança em notícias e instituições confiáveis ​​em muitos países. Um ponto frequentemente levantado no contexto dessas discussões é a necessidade de fatos. As pessoas argumentam que não podemos ter democracia sem fatos e uma realidade compartilhada. Isso é verdade. Mas não podemos insistir na necessidade de uma discussão enraizada em fatos quando as evidências contra a narrativa da IA ​​turbinando a ruína democrática e eleitoral são facilmente descartadas."

(GC)


❄️ Como fazer jornalismo sem o X/Twitter? É o que pergunta esta matéria da LatAm Journalism Review, que ouviu 14 jornalistas para repercutir a ausência do X/Twitter no Brasil (a decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes pelo bloqueio da plataforma foi confirmada esta semana pela 1ª Turma da côrte). Felipe Betim, editor do Jota, afirma que o bloqueio não vai afetar seu trabalho e critica: “A imprensa se viciou em arranjar audiência fácil: qualquer aspa, qualquer treta, rende uma nota. As redes sociais em geral e o Twitter em particular contribuíram para a queda da qualidade da imprensa”. Já Guilherme Caetano, repórter do Estadão, avalia que “o Twitter era por essência a principal rede do debate público brasileiro. (...) Isso proporcionava um debate mais qualificado que em outras redes, e permitia acompanhar os movimentos mais importantes e descobrir ideias de pautas”. Para Anna Virginia Balloussier, repórter especial da Folha, desde que Elon Musk assumiu, houve a “piora de uma atmosfera digital já tóxica. O debate ficava viciado, e eu tinha medo de dar muita relevância para uma câmara de eco sem adesão tão grande assim”. Esta editora que vos fala utilizava o Twitter desde 2008 e era, com certeza, minha principal rede social. Muito da curadoria da NFJ era feita pelo acompanhamento de perfis de jornalistas e acadêmicos do Brasil e do mundo. Minha percepção é parecida com a do jornalista Gilberto Porcidonio que, neste texto delicioso na Piauí, publicou seu diário pós-Twitter. “Acordei de madrugada e liguei o celular. Vi que ainda era cedo e, meio sem querer, cliquei no aplicativo ainda inútil. Me senti fora da linha do tempo. Uma arroba errante que vaga a esmo pelo grande nada do espaço. Postei isso nas redes similares para ver se mais alguém se sentia assim. Continuei no vácuo”. Me identifico, Gilberto. Para além da abstinência pessoal, é fato que pelo Twitter circula muito conteúdo noticioso. Houve debandada para o Threads e Bluesky, onde li coisas como “eu sinto que estou completamente desinformada do mundo sem o Twitter” e “agora vou ter que esperar o Jornal Nacional pra saber o que aconteceu no dia, igual faziam os Maias e Astecas”. Aliás, o JN trocou a logo do X pela do Bluesky em sua vinheta de encerramento. Significa. Como já conhecemos o modus operandi avesso ao jornalismo das redes de Mark  – e o Threads é mais uma delas – o Bluesky parece ser uma alternativa mais promissora para os publishers. Esta matéria do Núcleo afirma que o Bluesky quer ser um Twitter melhor e menos tóxico e este texto da Press Gazette ouviu a porta-voz do Bluesky, que disse: “Esta é uma plataforma onde as redações podem realmente ter o controle de seu relacionamento com seus públicos e, portanto, de sua distribuição”. O texto ainda detalha o funcionamento mais descentralizado do Bluesky (na NFJ #428 explicamos o que é uma plataforma federada, vale ler). Em sua coluna na Matinal, Juremir Machado defende, com uma dose de humor, o uso do Bluesky (que, diga-se, foi criado por Jack Dorsey, o pai do Twitter): “A conversa lá está naquela fase de chegada no bar. Todo mundo conhecendo a casa nova. É confortável e arejada. Esse êxodo para o Bluesky talvez apresse Elon Musk a mudar de ideia sobre indicar um representante legal no Brasil mais do que as pressões do STF. (...) Um pedido: não deem o endereço do Bluesky para o Pablo Marçal. Merda, ele já está lá. Bem, o Bluesky é uma rede aberta a todos”. (LV)


❄️ Crise climática, IA e eleições municipais no congresso da Jeduca. Tive o prazer de participar do 8º Congresso Internacional de Jornalismo e Educação da Jeduca, que aconteceu em São Paulo esta semana, e compartilho a seguir o que de mais bacana vi e ouvi por lá. Os destaques das mesas sobre eleições foram os desafios do jornalismo local na cobertura. O primeiro apontado foi o enxugamento das redações e não os conflitos de interesse diante das ligações entre veículos e políticos. A falta de profissionais foi diretamente ligada à quase inexistência de cobertura no interior por veículos maiores e à precariedade da cobertura nas capitais. Em agosto, o Jeduca lançou o guia Educação nas Eleições Municipais para a cobertura de 2024. A mesa sobre uso de IA no jornalismo teve representantes de O Globo, Estadão e Núcleo Jornalismo, e deixou evidente que grandes veículos (numa distância enorme dos pequenos) já têm suas próprias ferramentas desenvolvidas e em uso, servindo tanto aos profissionais quanto aos leitores. Sempre com supervisão humana. Mas será que é preciso sempre avisar ao leitor sobre o uso? O destaque foi o “Nuclito Resume”, do Núcleo, que apresenta apenas matérias resumidas em três tópicos. Para quem ainda não conhece, vale acessar. Para a pergunta “os jornalistas vão ser substituídos por IA?”, a resposta foi categórica: “Não. Mas, certamente, jornalistas que usam IA irão substituir os que não usam”. Assunto ainda quente devido ao escândalo ocorrido no Colégio Bandeirantes, o tema do bullying apareceu no congresso. O caso de racismo contra a filha da atriz Samara Felippo também foi citado, lembrando o cuidado que jornalistas devem ter para não expor as vítimas e os agressores que também são crianças. Sem ser nomeada, a escolha da Revista Piauí de divulgar informações sobre o estudante do Bandeirantes que cometeu suicídio sofreu críticas, que foi seguida do lembrete de que responsabilidade e senso crítico é o que ainda diferencia o jornalismo do que é feito por não-jornalistas nas mídias sociais. (CC)


❄️ Notícias da indústria e links diversos. Silvio Santos e a ética na cobertura da morte de figuras públicas: há espaço para a crítica? (objETHOS) | A solução fundamental para o problema do Google e a mídia (Washington Monthly) | Google tenta matar solução sustentável para jornalismo local em acordo secreto (Tech Policy Press) | O Google concordou em pagar milhões pelas notícias da Califórnia, e os jornalistas dizem que foi um mau negócio (ABC News) | Os desafios da cobertura local em debate no Projor (Observatório da Imprensa) | Este agregador de notícias/aplicativo de namoro ajuda os nerds de notícias a se conhecerem (Nieman Lab) | Pablo Marçal nas eleições municipais (Observatório da Imprensa) | Big techs têm retrocesso em ferramentas para monitorar redes na eleição (Folha de S. Paulo) | A agressão contra jornalistas jamais pode ser considerada como um fato normal (Fenaj). | Aos Fatos lança Fátima 3.0, expansão do chatbot com IA generativa (Aos Fatos). (GC)


💎 Oportunidades e desafios na relação entre jornalistas e acadêmicos. Não tá fácil fazer jornalismo, a gente sabe. Diante de cenários por vezes hostis, profissionais de mercado têm buscado na academia insights para enfrentar os desafios impostos à indústria em tempos recentes. A gente sabe também que essa relação nem sempre é suava. Mas o contexto exige interdisciplinaridade, e o esforço acaba valendo a pena, apesar das diferenças e de eventuais tensões. É isso que os pesquisadores Leonie Wunderlich, Sascha Hölig e Meinolf Ellers procuram mostrar no artigo “Academia and journalism: Two different worlds? How scientific institutions can successfully collaborate with journalistic organizations” (Academia e jornalismo: dois mundos diferentes? Como instituições científicas podem colaborar com sucesso com organizações jornalísticas), publicado em agosto na Journalism – um dos periódicos mais importantes do campo. Os três fazem parte de um projeto na Alemanha que une mercado e academia para entender como os jovens se informam e como o jornalismo pode melhorar a comunicação com esse público. Criada em 2020, a iniciativa #UseTheNews envolve mais de 500 parceiros, entre profissionais de mídia, iniciativas educacionais e pesquisadores. É um exemplo, segundo os autores, dos poucos esforços institucionais de longa duração com essa natureza. Nos três primeiros anos, novos formatos noticiosos – desenvolvidos a partir de dados científicos sobre padrões no consumo de notícias – foram oferecidos ao público-alvo. Na segunda fase, que ainda está rolando, o foco está em como as notícias são usadas e na educação midiática. Como o projeto está em andamento, os autores do artigo se debruçaram sobre relação entre jornalistas e acadêmicos envolvidos no projeto, tentando responder às seguintes questões de pesquisa:

  • Como instituições científicas podem estabelecer colaborações de longo prazo com organizações jornalísticas? 

  • Até que ponto essa cooperação oferece valor agregado para os parceiros? 

  • Quais oportunidades e desafios podem ser observados em relação aos métodos de trabalho dos parceiros neste contexto?

Querem saber como foi? E quais resultados, insights e sugestões os pesquisadores oferecem para tirar o melhor possível da relação entre mercado e academia?...


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