GEOPOLITICA
Um homem residente na Califórnia confessou ter ajudado o regime da Coreia do Norte a adquirir armas e tecnologias militares restritas em um esquema sofisticado, afirmaram procuradores federais na terça-feira (3). Shenghua Wen, um cidadão chinês que vivia ilegalmente nos EUA, foi preso sob a acusação de colaborar com autoridades norte-coreanas desde 2012. As informações são da rede CNN.
Wen teria entrado nos EUA como estudante, mas permaneceu no país após o vencimento do visto. De acordo com documentos judiciais, ele afirmou acreditar que o governo norte-coreano usaria as armas, munições e outros equipamentos militares em um ataque contra a Coreia do Sul. Wen teria recebido US$ 2 milhões para cumprir as ordens de Pyongyang.
Entre as exigências feitas a Wen, o regime norte-coreano também pediu uniformes militares americanos que seriam usados para disfarçar soldados norte-coreanos no ataque surpresa, conforme detalha a denúncia apresentada pelo Departamento de Justiça dos EUA.
Para facilitar o esquema, Wen criou uma empresa de exportação no Texas, onde adquiriu armas e munições que, segundo os procuradores, foram transportadas para a área de Los Angeles. A carga era então enviada para a Coreia do Norte em contêineres com documentos falsificados. A última remessa teria ocorrido em 2023.
Na casa de Wen, agentes do FBI apreenderam 50 mil cartuchos de munição, equipamentos sofisticados para detecção química e dispositivos para identificar escutas, que ele planejava enviar ao regime comunista. Além disso, mensagens no celular de Wen incluíam imagens de armas e dispositivos eletrônicos compartilhados com colaboradores norte-coreanos.
“As consequências dessas ações não podem ser subestimadas quando tecnologia e itens sensíveis caem nas mãos erradas, especialmente de nações hostis”, alertou Shawn Gibson, agente especial de Investigações de Segurança Nacional.
O procurador Martin Estrada destacou a gravidade do caso: “Não há como medir o dano adicional que o Sr. Wen poderia ter causado sem a intervenção das autoridades.” Se condenado por violar o Ato de Poderes Econômicos de Emergência Internacional, Wen poderá enfrentar até 20 anos de prisão.
Norte de Gaza vive etapas finais de limpeza étnica, denuncia ONG
A organização não governamental Oxfam denuncia que Israel promove as etapas finais de uma limpeza étnica no norte da Faixa de Gaza e, assim como outras organizações humanitárias, a entidade não consegue acessar o local há cerca de 50 dias para prestar auxílio as cerca de 50 mil a 75 mil pessoas que se estima que ainda vivam no norte do território palestino.
“Nossa equipe em Gaza tem tentado, desesperadamente, por quase dois meses, alcançar civis famintos, mas foi bloqueada pelo Exército israelense. Sabemos que muitas crianças estão presas e morrerão de fome”, afirmou o diretor-executivo da Oxfam, Amitabh Behar, em nota divulgada nesta quarta-feira (27).
O termo limpeza étnica é usado para descrever a remoção ou eliminação de determinados grupos étnicos de uma região. A Oxfam faz parte de um grupo de agências internacionais que denunciam que são impedidas de entrar no norte de Gaza desde que Israel intensificou o cerco ao local, a partir de 6 de outubro.
“Israel está construindo infraestrutura para uma presença militar de longo prazo - uma anexação de fato da terra - e destruindo qualquer esperança restante de uma solução justa e pacífica”, denuncia Behar.
A Agência da ONU para Refugiados Palestinos (Unrwa), banida de Israel em outubro, confirma que existe um bloqueio de ajuda humanitária no norte da Faixa de Gaza desde o início de outubro.
De acordo com último boletim do Escritório de Assuntos Humanitário das Nações Unidas (Ocha), a ONU tentou levar ajuda humanitária 41 vezes para o norte de Gaza entre 1º e 25 de novembro, sendo 37 missões negadas previamente.
“Quatro [missões] foram inicialmente aprovadas, mas então severamente impedidas no local, de modo que a assistência não pôde ser entregue às pessoas presas na área sitiada. Desde que o cerco apertado começou no início de outubro, nenhuma das tentativas da ONU de apoiar as pessoas sitiadas naquela área foi totalmente facilitada”, informou a Ocha.
Por sua vez, Israel nega as acusações e diz que tem permitido a entrada de ajuda humanitária no território. No domingo (24), as Forças de Defesa de Israel informaram que transferiram 323 pacientes do Hospital Kamal Adwan, que teria recebido combustível e suprimentos médicos.
“[Israel] continua a agir de acordo com o direito internacional para facilitar e apoiar respostas humanitárias para os moradores de Gaza, particularmente na área médica”, afirmou, em nota, o governo israelense.
Nesta quarta-feira, o exército israelense informou que continua as operações militares no norte do território. “A artilharia atingiu dezenas de instalações de armazenamento de armas do Hamas, estruturas militares e locais significativos de infraestrutura terrorista durante a noite”, informou.
Deslocamento forçado
A Oxfam estima que 100 mil pessoas foram expulsas do norte de Gaza nas últimas semanas, e informa que os funcionários da organização têm tentando ajudar essas famílias.
“As transferências forçadas para o sul, para a região vizinha ao redor da cidade de Gaza, criaram uma superlotação tão grande que as condições ali agora são semelhantes à fome”, diz a organização.
A equipe da Oxfam que está na cidade de Gaza, na área central da faixa, diz que a situação no local é de extrema fome. “As pessoas que foram deslocadas do norte estão em um estado realmente alarmante. Enquanto isso, a parte sul de Gaza parece um país completamente separado de nós”, diz a entidade.
“Como poder ocupante em Gaza, Israel está vinculado pelo Direito Internacional Humanitário a fornecer as necessidades e a proteção da população de Gaza”, lembra a Oxfam.
Conceitos para explicar a transição hegemônica entre China e EUA
A ascensão chinesa e o declínio estadunidense são condicionados pela dinâmica do capitalismo neoliberal
A ascensão de Trump à segunda presidência dos EUA confirma a mudança dramática no cenário mundial. O avanço da direita, a intensificação das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio e a proximidade de conflitos comerciais dramáticos entre as principais potências acentuam as convulsões dos últimos anos.
Para avaliar essa conjuntura traumática em termos das principais mutações subjacentes, alguns analistas do espectro progressista usam dois termos que estão muito em voga: transição hegemônica e reconfiguração do Norte e do Sul Global. Ambas as noções ganharam centralidade ao retratar a época atual.
A transição hegemônica tem algum parentesco com a tese da ascensão e queda dos impérios, que concebe a história contemporânea como uma sequência de lideranças seculares e substitutas desde o século 16. Ele lembra que as cidades italianas foram seguidas pelos Países Baixos, depois pela Grã-Bretanha e, mais tarde, pelos Estados Unidos. Eles contrastam essa lista de potências vitoriosas com o destino azedo de seus rivais em declínio (Portugal, Espanha, Alemanha, Japão).
A atualização dessa visão recorre ao conceito de sucessões hegemônicas para investigar a mudança em curso. Ela postula que a China conquistará a liderança do sistema mundial ao afirmar sua primazia econômica, sua influência territorial, sua gravidade militar ou sua astúcia geopolítica.
Mas a novidade dessa substituição também pode estar em uma certa distribuição do poder global. O gerenciamento multipolar consertado substituiria o domínio unipolar excludente do passado. A transição hegemônica envolveria, então, uma inversão do comando do Norte global sobre seus pares do Sul. O novo protagonismo do Oriente incluiria modalidades consensuais de globalização inclusiva.
Essa decolagem histórica do Sul em detrimento do Norte é interpretada em um sentido econômico ou político e não geográfico. Ele contrasta graus de desenvolvimento e não localizações no mapa planetário, razão pela qual a Austrália é colocada no Norte e o Marrocos no Sul.
Essa nova dualidade entre os dois polos substitui o esquema anterior de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Essa divisão incluía os países capitalistas desenvolvidos, as nações localizadas no chamado campo socialista e os conglomerados da periferia. A implosão da URSS levou a uma reordenação desse tripé, em torno de duas articulações globalizadas do Norte e do Sul que reconfiguraram o cenário internacional.
O conceito de transição hegemônica é suficiente para esclarecer essa transformação ou são necessárias outras noções para explicar a mudança atual? A avaliação dessas questões exige vários esclarecimentos nos campos econômico, geopolítico e prospectivo.
Caminhos contrastantes
Na esfera econômica, a transição hegemônica é um processo altamente visível no declínio dos Estados Unidos e de seus parceiros ocidentais. Esse declínio é determinado pelo retrocesso econômico desta potência, que nas últimas décadas tem estado no epicentro de crises financeiras agudas.
Essas turbulências complementam a regressão competitiva da indústria estadunidense, que é duramente atingida pelo declínio da produtividade. Por esse motivo, a Casa Branca está cada vez mais inclinada a recriar o protecionismo e a evitar a assinatura de novos acordos de livre comércio. Washington sabe que perderá para Pequim em tais acordos.
O declínio industrial dos Estados Unidos aumentou a tensão tradicional entre os setores globalistas no litoral e os segmentos estadunidenses no interior do país. Essa divisão das classes dominantes é acentuada pela perda da preeminência econômica da primeira potência.
A mesma fratura foi gerenciada no passado com reequilíbrios periódicos que renovaram o domínio dos EUA. Mas o declínio vem se arrastando há décadas e não foi contido pelo globalismo de Clinton, pelo expansionismo de Bush, pelo ajuste neoliberal de Obama, pelo protecionismo do primeiro Trump e pelo neokeynesianismo fracassado de Biden.
Essa regressão não equivale a um declínio na economia dos EUA, que continua a apresentar reinicializações periódicas. A primeira potência se beneficia da senhoriagem do dólar, da centralidade de Wall Street, da gravitação das empresas digitais e da relevância internacional do complexo industrial-militar. Mas sua crise de longo prazo está corroendo a primazia da qual o país desfruta há muito tempo.
A transição hegemônica na esfera econômica também pode ser vista no polo oposto da China, que fez um progresso impressionante nas últimas décadas. Esses resultados podem ser explicados por estratégias baseadas em fundamentos socialistas, complementos mercantis e parâmetros capitalistas.
A China esteve ligada à globalização com altos retornos, porque retinha a maior parte do excedente gerado no país. Ela desenvolveu um modelo que dispensou as adversidades do neoliberalismo e da financeirização. Esse desenvolvimento não teria sido viável se o capitalismo tivesse sido restaurado em sua plenitude. Uma importante classe capitalista foi forjada no gigante asiático, que até então não havia conseguido obter o controle do Estado, e essa obstrução facilitou a ascensão do novo poder.
Essa ascensão também levou a uma relação muito desigual com a maior parte das economias periféricas. A China acumula lucros às custas desse segmento, absorvendo a mais-valia e a renda das regiões mais negligenciadas do mundo.
A lógica das assimetrias
A ascensão da China e o declínio dos Estados Unidos são condicionados pela dinâmica do capitalismo neoliberal que liga as duas potências. Ambas operam em torno do modelo globalizado, precário, financeirizado e digital, que nas últimas décadas substituiu o modelo keynesiano anterior.
O modelo atual confirma a validade de um novo estágio de funcionamento diferenciado do capitalismo que gera enormes desequilíbrios. O colapso financeiro de 2008 ilustrou essa dimensão e deixou um rastro de medo agudo, que reaparece a cada quebra significativa de Wall Street. Essas tensões agravam o ressurgimento da inflação e da dívida pública fora de controle, em um modelo que introduziu desigualdades sociais sem precedentes no século passado.
Como esse esquema também exacerbou a competição pelo lucro, a tragédia da mudança climática se intensifica com suas terríveis consequências de secas, enchentes e incêndios. Nenhuma dessas calamidades será resolvida pelas expectativas fantasiosas criadas pela Inteligência Artificial. Esse dispositivo está cercado por um grande perigo de investimento excessivo e consequentes bolhas tecnológicas.
Os neoliberais ignoram esses desequilíbrios e seus oponentes heterodoxos os percebem, atribuindo seu impacto à ausência de regulamentação. Mas eles ficam sem palavras quando essas intervenções não melhoram as tensões que eles alegam erradicar. Ao contrário do marxismo, eles não reconhecem que essas crises são inerentes ao capitalismo atual. Esse sistema erodiu a norma do consumo estável com a precarização e o desemprego e acentuou a superprodução com pressões competitivas incontroláveis. Eles também não percebem que o próprio capitalismo conduz à diminuição da porcentagem da taxa de lucro com o aumento do investimento e aumenta a hipertrofia financeira, com suas consequências devastadoras da especulação.
Mas a mais relevante dessas contradições para a transição hegemônica é seu impacto sobre o epicentro do capitalismo neoliberal nos EUA. Esse efeito supera o impacto das mesmas tensões sobre o modelo de gestão regulada que prevalece na China. Devido a essa diferença, a grande mudança na política econômica que se seguiu à crise de 2008 foi localizada em Washington, não em Pequim.
O neoliberalismo persiste no Ocidente após o resgate estatal dos bancos falidos, mas coexiste com uma presença renovada do Estado. Na mesma fase neoliberal, houve uma mudança para o intervencionismo, o protecionismo e a promoção do investimento público. Nenhuma dessas tendências altera o declínio produtivo dos Estados Unidos em face do avanço chinês.
As mudanças da última década também não alteraram o padrão econômico geral de baixo crescimento no Ocidente, crescimento crescente no Oriente e expansão global reduzida. Esse tripé persiste em uma fase neoliberal marcada por turbulência em vez de estagnação.
As últimas quatro décadas não registraram uma onda grande ascendente ou descendente. Prevaleceu uma mistura de desdobramentos, o que contrasta com o postulado de repetição regular e tônica uniforme sugerido pelos ciclos de Kondratiev.
A hipótese de uma onda ascendente foi refutada pelo fraco desempenho econômico dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, e a previsão inversa de uma sequência descendente se chocou com o forte crescimento da China e de seus vizinhos.
O que aconteceu até agora na economia mundial corrobora a dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado, com seus componentes descontínuos à vista de todos e seus amálgamas verificáveis em várias regiões do mundo. O amálgama mais marcante foi o da China, que consumou o salto típico das novas potências que adotam as tecnologias desenvolvidas por seus antecessores.
O gigante oriental copiou essas inovações, economizando o custo suportado pelos gerentes desses instrumentos. As potências precursoras, por outro lado, sofreram com a adversidade de sua reduzida adaptação ao novo cenário. O desenvolvimento desigual e combinado é a dinâmica subjacente da transformação monumental do relacionamento sino-estadunidense.
Os conceitos ausentes
O declínio econômico dos EUA é o principal, mas não o único, sinal de transição hegemônica. O mesmo declínio se estende à Europa e ao Japão e, portanto, a toda a Tríade, que impulsionou a recomposição do capitalismo no pós-guerra no século 20.
Essa regressão dos pilares do Norte Global não é uniforme, uma vez que os Estados Unidos estão descarregando grande parte de sua crise em seus parceiros, usando o dólar, as finanças, o Pentágono e as empresas digitais.
A assimetria também está muito presente no Sul Global, já que a China não enfrenta parceiros equivalentes dentro dessa rede. Pelo contrário, o gigante asiático se distanciou dessa vizinhança para se tornar uma potência no centro, disputando a supremacia com os Estados Unidos.
Outros países importantes do Sul Global permanecem no status inferior de semiperiferias. Eles compõem o grupo de economias intermediárias articuladas em torno do BRICS, que apresentam relevância no fornecimento de energia ou na supervisão de rotas comerciais. Com base nisso, eles sustentam dinâmicas de desdolarização e modalidades de crédito que são autônomas em relação ao FMI e ao Banco Mundial.
A Rússia mantém seu complexo militar-industrial altamente desenvolvido, mas opera como uma economia de exportação de commodities. A Índia tem alto crescimento, mas preserva níveis chocantes de subdesenvolvimento. O Brasil e a África do Sul apresentam os desequilíbrios clássicos das economias dependentes.
Se os parceiros intermediários da China não compartilham a decolagem da nova potência, o restante do Sul Global desconhece completamente esse horizonte. Eles estão fora do círculo de gestão do BRICS e persistem na África, na Ásia ou na América Latina, como o segmento típico das economias despossuídas. São vítimas e não participantes da transição hegemônica. Mantêm o antigo perfil do Terceiro Mundo, ocupando o último degrau da divisão internacional do trabalho. O conceito que resume seu status não é Sul Global, mas capitalismo dependente. São economias sujeitas a um processo de degradação sistemática.
Seu status subdesenvolvido é perpetuado por sequências intensas de transferência de valor. Por esse motivo, enfrentam uma lacuna crescente em relação às economias que recebem o excedente drenado de suas fronteiras. Essa transferência é consumada por meio de dispositivos produtivos baseados em mão de obra barata, mecanismos de troca desigual no comércio e acordos de dívida externa que multiplicam a hemorragia financeira. A teoria marxista da dependência apresenta em detalhes essa sucessão de apropriações sofridas pela periferia.
As correntes de pensamento que ignoram (ou se opõem a) essa drenagem não conseguem explicar o contínuo rebaixamento sofrido pela América Latina, África, Europa Oriental e a maior parte da Ásia. Elas ignoram o fato de que a acumulação global de capital está sujeita a uma apropriação do excedente de um polo em detrimento do outro. Esse confisco impede que a distância entre as duas zonas diminua. Com a principal exceção da China (e, em outro sentido, da Coreia do Sul), o capitalismo neoliberal estabilizou essa hierarquia sufocante.
É óbvio que a economia latino-americana está localizada no espectro desfavorecido da atual ordem capitalista. Nas últimas décadas, ela consolidou essa localização com o agravamento da pobreza, do desemprego e da desigualdade. As políticas neoliberais impulsionaram a primarização extrativista, a remodelação regressiva da indústria e o velho pesadelo da dívida.
Assim, o cenário econômico contemporâneo inclui inúmeros aspectos que não se encaixam no simples apelido de transição hegemônica, marcada pelo recuo do Norte e pela ascensão do Sul Global. Os importantes elementos de verdade nessa afirmação só se tornam significativos se forem enquadrados no contexto de conceitos mais decisivos da época atual.
O significado marxista de cinco dessas noções é indispensável para essa compreensão. Essas categorias são: capitalismo neoliberal, desenvolvimento desigual e combinado, centro-semi-periferia-periferia, capitalismo dependente e transferência de valor. Sem esses fundamentos teóricos, é muito difícil atribuir à transição hegemônica e ao Norte ou Sul Global um conteúdo específico que esclareça a mutação em curso.
Agressores e defensores
No nível geopolítico, a apresentação usual da transição hegemônica destaca o contraste entre a agressividade militarista do Norte e a disposição pacifista do Sul Global. Esse contraponto tem uma base sólida no registro da reação dos EUA ao seu declínio. O primeiro está tentando combater essa reação com incursões militares e exigências de alinhamento. Com essa atitude, o Pentágono tem sido a força motriz, o responsável e a causa das grandes tragédias humanitárias das últimas décadas.
Mas essa política belicista exacerba os gastos improdutivos, perpetua a proeminência dos fornecedores de armas e agrava as armadilhas da hipertrofia militar. Embora o remédio escolhido seja pior do que a doença, os Estados Unidos não têm escolha a não ser preservar sua primazia internacional.
A primeira potência perpetrou uma intervenção devastadora no Oriente Médio para administrar o petróleo, subjugar rebeliões populares e dominar seus rivais. Ela comandou o derramamento de sangue da Primavera Árabe, facilitou o terrorismo jihadista e consumou a demolição de três Estados (Iraque, Líbia e Afeganistão).
Atualmente, é o principal apoiador dos massacres implementados por seu parceiro israelense. A Casa Branca financia e apoia a limpeza étnica dos palestinos para reforçar o seu controle do Oriente Médio por meio do esquema sionista de anexações e apartheid.
Os EUA também foram os gestores da guerra ucraniana, pois tentaram trazer Kiev para a rede de mísseis da OTAN que cerca a Rússia. Para afetar a estrutura defensiva de seu rival, promoveu a revolta Maidan, incentivou o nacionalismo contra Moscou e sustentou as hostilidades em Donbass. Buscou enredar seu adversário em um conflito com o objetivo de impor a agenda de rearmamento em toda a Europa.
Os resultados dessa dinâmica militarista têm sido invariavelmente adversos. O fracasso no Iraque e a derrota no Afeganistão abriram caminho para as vantagens que a Rússia está tendendo a obter na guerra na Ucrânia. Na prolongada guerra de trincheiras, a supremacia de tropas e recursos de Moscou desgasta Kiev.
No outro cenário de guerra deste momento, Israel não consegue lidar com a variedade de frentes abertas. Está tentando travar uma guerra sem fim em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano, provocando o Iêmen, atacando a Síria e ameaçando o Irã. Mas o descontentamento interno, o mal-estar com o projeto e o colapso da legitimidade internacional corroem a sociedade israelense. Em todos os conflitos, o Ocidente enfrenta a mesma dificuldade com populações não acostumadas ao recrutamento e relutantes em arcar com os custos do belicismo.
As adversidades da OTAN no campo de batalha atingem os parceiros dos EUA de forma particularmente dura, pois eles pagam a conta monumental dos gastos militares. A Europa está sofrendo com esse impacto de forma excepcionalmente severa, com a Alemanha suportando o peso dessa subordinação. A guerra na Ucrânia privou seu aparato produtivo de energia barata fornecida pela Rússia, e o aumento do custo desse fornecimento prejudicou a competitividade da principal força motriz da UE.
Do outro lado do globo, o Japão tende a sofrer um efeito semelhante com a OTAN do Pacífico patrocinada pelo Pentágono, que foi projetada para assediar Pequim no Mar da China. Washington está novamente transferindo os custos de armamento para Tóquio e Berlim. O país tem uma longa experiência nesse tipo de transferência, pois sustentou sua moeda nos anos 70 com a inconversibilidade do dólar e com os acordos do Plaza na década seguinte. A adaptação do iene e do marco alemão às necessidades da moeda estadunidense tem sido uma característica do século 21 que o Fed está renovando.
O Norte imperial
O comando dos EUA continua a definir a geopolítica do Norte Global, mas qual é a dinâmica orientadora desse processo? Aqui também, os conceitos de transição hegemônica e Norte-Sul Global são insuficientes. Para entender o que está acontecendo, é preciso recorrer ao conceito geral de imperialismo. Esse dispositivo é usado pela primeira potência para garantir o funcionamento do capitalismo e para expropriar a periferia em favor do centro.
Esse instrumento está em pleno funcionamento na América Latina. Nessa região, os Estados Unidos disputam um espólio de matérias-primas que precisam controlar. Eles não podem exercer o domínio global sem exibir a primazia em seu quintal. Por essa razão, retomam a Doutrina Monroe, enviam tropas sob o pretexto de erradicar o tráfico de drogas e exigem alinhamento diplomático contra a Rússia e os palestinos.
Mas, também nesse caso, a ausência de resultados prevalece. Os Estados Unidos não impõem a subjugação do passado e não conseguem deter a presença da China na região. Diante do avanço da Rota da Seda, Washington tentou erguer um muro defensivo com o projeto concorrente America Growth (Estados Unidos cresce). Depois de vários anos, essa iniciativa não decolou e continua anos-luz atrás da Aliança para o Progresso, que os Estados Unidos promoveram na década de 1960 para conter a revolução cubana.
O imperialismo explica a política adotada pelos EUA, mas esse conceito não é relevante em qualquer sentido. O que importa é sua variedade contemporânea, que é muito diferente das formas anteriores. Ele se distingue claramente dos impérios pré-capitalistas da antiguidade, do império britânico informal do século 19 e do imperialismo clássico do século passado, marcado pela guerra mundial entre potências concorrentes. Tampouco é apropriada a imagem do império global de classes e estados transnacionalizados que alguns teóricos difundiram na década de 1990.
O que tem prevalecido desde a segunda metade do século 20 é um sistema imperial hierárquico sob o comando estrito dos Estados Unidos. É uma estrutura com parceiros europeus, que mantém certa autonomia alter-imperial em seu antigo ambiente colonial, e com apêndices co-imperiais, que cumprem as ordens do Pentágono em diferentes regiões do mundo (Israel, Austrália, Canadá). Essa aliança controla a ordem mundial e seus membros resolvem as diferenças internas por meios econômicos, financeiros ou diplomáticos, sem nunca recorrer a meios militares.
O sistema imperial no epicentro do Norte Global é muito agressivo com seus inimigos, adversários e vítimas. Essa belicosidade, por sua vez, reforça a transição hegemônica que gera a crise do sistema imperial. A equivalência entre o poder econômico e o poder militar mantida pelos Estados Unidos em meados do século passado foi diluída. A primeira potência perdeu a supremacia econômica, mas mantém sua liderança militar e tenta, sem sucesso, usar esse instrumento para sustentar sua liderança na ordem global.
O Sul distante do anti-imperialismo
A apresentação do Sul Global como um conglomerado defensivo é genericamente verdadeira. Essa configuração resiste às agressões de sua contraparte. No tremendo derramamento de sangue na Iugoslávia, no Iraque, no Afeganistão, na Ucrânia e na Palestina, Washington arrastou consigo seus aliados do Norte, diante das posturas não beligerantes do outro campo. A nova guerra fria está se desenrolando na mesma sequência.
Mas essa observação não esclarece o que está em jogo, porque o Sul Global é uma articulação geopolítica muito heterogênea. O comando imperial que prevalece no Norte não tem contrapartida simétrica no Sul. O Sul é hostil ao militarismo da OTAN, mas não é alheio a outras formas de dominação externa.
Até o momento, a China não se encaixa em nenhum epíteto imperial. Ela captura os excedentes da periferia explorando suas vantagens produtivas e impõe sua dominação econômica sem recorrer à força. Esse modo de supremacia a coloca fora do quadro das potências imperialistas.
O gigante asiático não envia tropas para o exterior, evita se envolver em conflitos militares e mantém uma política externa muito prudente. Em todas as áreas, ele segue uma estratégia defensiva, em contraste com seu virulento rival norte-americano. Ele favorece o esgotamento econômico de seu concorrente e sua única intervenção militar relevante contra Taiwan tem como objetivo proteger suas fronteiras.
Mas esse status remoto da tentação imperial não se estende à Rússia, que alguns analistas colocam no Sul, outros no Norte e muitos no limbo. Moscou enfrenta a hostilidade externa afirmando seu poderio militar em todo o espaço pós-soviético. Ela desempenha o papel duplo de intimidadora e intimidada, usando ameaças, dissuasões e incursões diretas.
A Rússia está localizada fora do sistema imperial, não faz parte da equipe belicista do Ocidente e tem que lidar com a pressão estadunidense. Mas ela não limita sua reação à mera defesa. Ela apoia os interesses de grupos domésticos dominantes com ações que vão além de suas fronteiras, enviando tropas para a Síria e mercenários para a África. Foi ameaçado pela OTAN na Ucrânia e respondeu com uma invasão injustificada. Essa reação ilustra as características de um império em formação, fora do raio hegemônico do Norte Global.
Variedades menores do mesmo comportamento são exibidas pelas potências médias, que fazem fronteira com o sistema imperial, sem integrá-lo e sem confrontá-lo. Essas formações priorizam sua ação em relação ao sistema imperial, mas não o enfrentam. Essas formações priorizam sua ação em seu entorno imediato com ações subimperiais, a fim de disputar a primazia com seus rivais na área.
Esse é o caso da Turquia (e provavelmente da Índia), mas não do Brasil ou da África do Sul, que permanecem distantes da tentação bélica. As inúmeras situações de governantes regionais que estão passando por cima de suas próprias periferias (Rússia em relação à Ucrânia, Turquia em relação ao Curdistão, Arábia Saudita em relação ao Iêmen) retratam a ausência de um mero bloco defensivo em desacordo com o Norte.
O mesmo conglomerado do Sul Global também inclui a maior parte da periferia que foi atropelada pelos Estados Unidos e seus parceiros. A América Latina compartilha esse destino com a África e a maior parte da Ásia. Os membros desse espaço não têm as cercas defensivas construídas por seus pares intermediários para conter as invasões imperiais.
Essa diversidade de situações no Sul Global não só difere do comando do Pentágono no Norte. Também é uma evidência da ausência de um contraste entre os atores imperialistas e anti-imperialistas. O belicismo da OTAN não enfrenta uma contraparte determinada e simétrica.
Aqui reside outra diferença entre o Sul Global e seu antecessor do Terceiro Mundo. O BRICS não tem a menor semelhança com Bandung, os Não Alinhados ou os Tricontinentais. A gestação de organizações que adotam essa plataforma anti-imperialista é uma tarefa inacabada, que está apenas iniciando com iniciativas como a ALBA. Essa falta, por sua vez, determina a atual preponderância de uma transição hegemônica divorciada dos interesses populares.
O Norte invariavelmente unipolar
A visão convencional apresenta a transição hegemônica como um projeto político em disputa entre dois adversários: o Norte unipolar e o Sul multipolar. O primeiro adversário está se desenvolvendo por meio da concentração do poder mundial em torno da supremacia estadunidense. O mandato de Bush e a aliança ocidental que o acompanhou na demolição do Iraque são a imagem definitiva dessa centralização. Após o colapso da URSS, essa matriz parecia um sinal definitivo de um cenário mundial marcado pelo “fim da história”.
Os fracassos subsequentes da Casa Branca demonstraram as deficiências dessa crença, desmentida pela profunda crise do sistema imperial. A imagem do projeto unipolar como um destino inexorável perdeu sua preeminência, mas a reivindicação americana de dominação global persiste. Como esse objetivo se baseia na simbiose do capitalismo atual com o porto seguro dos EUA, a perspectiva unipolar reaparece repetidamente.
A invariável liderança estadunidense é contestada e relativizada por autores próximos ao liberalismo crítico, que alertam contra a dinâmica autodestrutiva do belicismo dos EUA. Eles propõem combatê-la com estratégias de autocontenção e retirada negociada, seguindo o caminho tomado pela Grã-Bretanha no século passado.
Mas essa proposta omite a liderança estadunidense de um sistema imperial que a Grã-Bretanha nunca administrou. Ela ignora a falta de um substituto para a custódia do capitalismo global. Como a transferência para a Europa ou para o Japão não é viável, a primeira potência não tem ninguém para quem transferir a responsabilidade.
A abordagem que propõe aliviar a proteção do sistema mundial pelo Pentágono também relativiza a gravidade da violência na sustentação do capitalismo. É por isso que ele evita o termo imperialismo, que geralmente é identificado com o uso da força. Ele opta pela noção mais vaga de hegemonia, que prioriza o impacto da ideologia na perpetuação da ordem atual.
A proposta de administrar o declínio dos Estados Unidos baseia-se na lógica geral das sucessões hegemônicas e em seu fundamento histórico, que é a tese da ascensão e queda de potências. Como pressupõe a inevitabilidade desse curso, ela promove sua moderação com um gerenciamento sábio do declínio. Em algumas versões, essa visão está inscrita nos processos históricos de mudança de poder de uma potência para outra, que determinam as mudanças nos ciclos sistêmicos de acumulação. Supõe-se que esses períodos tenham regido a dinâmica do capitalismo desde a gestação desse regime no século 16.
O postulado básico dessa visão é altamente controverso. Ele atribui ao resultado do comando global entre potências concorrentes uma gravitação dominante de todos os desenvolvimentos históricos, em detrimento de outros determinantes desse desenvolvimento. Ele também atribui ao capitalismo um passado de cinco séculos, o que omite a presença, a combinação ou a primazia de outros modos de produção (tributário, feudal, escravagista) nesse longo período.
Essa avaliação da dinâmica histórica que privilegia a substituição das potências dominantes no sistema mundial recupera periodicamente sua influência como explicação do curso geopolítico. Ela teve um grande impacto na década de 1980, quando o ressurgimento econômico do Japão foi percebido como uma ameaça à preeminência dos EUA. O nascimento da União Europeia criou uma impressão semelhante e, por algum tempo, estabeleceu a imagem de um novo concorrente para a supremacia de Washington em Bruxelas.
Ambas as expectativas foram desfeitas, confirmando a centralidade unipolar do comando imperial dos EUA. Mas essa percepção está sendo revisada agora em contraponto ao desafiante chinês e à ascensão geral do Sul Global.
Multipolaridades opressivas
A tese da transição hegemônica inclui duas dimensões complementares. Por um lado, é uma interpretação dos atuais desenvolvimentos geopolíticos e, por outro lado, em seu sentido progressivo, é uma proposta para a gestação de uma ordem mundial mais auspiciosa.
Frente à perspectiva despótica de um ianque dominante, ele promove uma alternativa multipolar que inclui a dispersão consensual do poder global. Com essa perspectiva, incentiva uma proposta histórica inédita, já que o sistema mundial nunca foi coordenado dessa forma de apaziguamento e renúncia ao exercício da primazia.
Essa iniciativa sugere que também a possibilidade de gerenciar os recursos econômicos de uma forma conveniente para todas as partes. Ela propõe o estabelecimento de formas de negociação que gerem apenas vencedores. Dessa forma, a globalização traumática de hoje seria transformada em uma globalização inclusiva e benéfica. Essa variedade graciosa de multipolaridade seria muito diferente de todas as conjunturas de equilíbrio de poder que, no passado, sucederam ou precederam os resultados de guerra entre potências concorrentes.
No entanto, esses apelos por um modelo de coexistência global pacífica não explicam como esse esquema poderia ser administrado sobre as próprias bases capitalistas que destroem essa harmonia. As regras atuais de competição pelo lucro explorador impedem essa coexistência e corroem todas as aspirações de consenso global.
Se a persistência desses fundamentos for levada em conta, o que poderia surgir nessas condições como contrapartida à crise prolongada do Norte Global é uma rede do Sul com pilares semelhantes aos de seu rival. O desempenho real de tal configuração estaria, de fato, muito distante das expectativas propagadas por seus patrocinadores.
Essa variante consagraria, de fato, o surgimento de uma multipolaridade opressiva. Ela consolidaria sua conformidade com o capitalismo neoliberal, sob o controle de classes dominantes que consolidariam seus privilégios, privando as maiorias populares de melhorias sociais e direitos democráticos. Essa distopia já é visível no tom de direita de muitos governos do Sul Global.
Essas administrações são semelhantes à maré reacionária que está varrendo o mundo atualmente. Essa maré obteve grande apoio eleitoral e conseguiu canalizar a seu favor grande parte do descontentamento popular com a crise econômica, a degradação social e o sistema político corrupto.
Os direitistas se aproveitam da grande penetração da ideologia neoliberal. Eles também moldaram sua retórica e sua forma de comunicação de acordo com as transformações da era atual, aproveitando os resultados adversos da luta de classes e a contínua fraqueza da esquerda. Sua expansão não implica um retorno ao fascismo clássico, mas introduz formas de autoritarismo reacionário que podem levar a processos de fascistização.
Essa maré de direita penetrou em todos os interstícios da multipolaridade. Ela não está confinada ao Norte e atravessa muitos países do Sul Global. É verdade que o centro desta fogueira está localizado nas grandes potências, lideradas por Trump, com a ajuda de [Marine] Le Pen e [Giorgia] Meloni. No entanto, o mesmo se aplica a [Narendra] Modi,[Javier] Milei, Bolsonaro e [Viktor] Orbán do outro lado.
A divisão esperada entre um Norte Global reacionário e um Sul Global progressista é puramente imaginária. E a inexistência de tal polarização prejudica a expectativa de forjar uma multipolaridade amigável, inclusiva e voltada para o futuro. A impossibilidade de construir esse modelo com líderes furiosos de extrema direita é flagrantemente óbvia.
Aqui também há outra diferença em relação à era dos "Não Alinhados". Nos anos de maior protagonismo político do Terceiro Mundo, os projetos desse conglomerado tinham um perfil inequivocamente anti-imperialista e de esquerda. Esse não é o caso hoje entre os gestores oficiais da multipolaridade.
Protagonismo popular
Um projeto emancipatório, alternativo e popular não pode se limitar a promover a transição hegemônica por meio do surgimento genérico do Sul Global. Ele tem de ir além dessas afirmações para se basear em outros pilares, usando também outras denominações.
Existe, por exemplo, uma tese que promove propostas pluripolares, opondo-se à ilusão multipolar de alcançar transformações progressivas por meio de um braço de ferro exclusivo com as potências do Norte. A tese defende a combinação dessa dimensão geopolítica com a luta dos povos, atribuindo um papel central aos sujeitos envolvidos nessa última ação.
Essa visão rejeita as abordagens da realidade social que se concentram nas formas de gestão do Estado, que predominam na ciência política convencional. Essas abordagens omitem completamente as lutas vindas de baixo. Elas tendem a investigar como as classes dominantes governam articulando consenso, dominação e hegemonia. Elas limitam suas observações à combinação de duas lógicas (uma econômica e outra geopolítica) para desvendar a evolução da sociedade, ignorando a gravitação da mobilização popular.
Para superar essa deficiência, é necessário introduzir uma terceira lógica de análise dos processos sociais, centrada na dinâmica desses protestos. A história contemporânea é um enigma incompreensível se o impacto da resistência, das rebeliões e das revoluções no curso dos acontecimentos for omitido.
A atenção a esse protagonismo, por sua vez, nos permite conceber outros caminhos futuros. Esse caminho não se limitaria a substituir a unipolaridade capitalista pela multipolaridade capitalista. Patrocinaria ações populares para reverter o atual cenário opressor, impondo conquistas que sustentem uma desmercantilização dos recursos básicos, com redução da jornada de trabalho, nacionalização dos bancos e socialização das plataformas digitais, de modo a criar as bases para uma economia igualitária.
A avaliação da luta popular também introduz outra visão da transição hegemônica. Ela explora as variantes desse curso como cenários contestados resultantes do confronto social.
Com essa abordagem, o contexto atual também pode ser avaliado como resultado de revoltas populares fracassadas. Primeiro, veio a trágica derrota da Primavera Árabe, com repressão, ditaduras, destruição de países e a predominância da brutalidade jihadista. Em seguida, houve um refluxo nos protestos dos indignados espanhóis, dos militantes gregos e dos coletes amarelos franceses. Por fim, surgiram obstruções à continuidade dos movimentos globais do feminismo e do ambientalismo.
Em todo o Sul Global, rebeliões periódicas eclodiram repetidas vezes, mas não desenvolveram cursos revolucionários. Diferentemente da segunda metade do século 20, a dinâmica dessas revoltas não levou a construções estatais paralelas baseadas na expansão do poder popular.
Esses resultados foram influenciados pela segmentação social gerada pela precariedade e pela diminuição do papel do proletariado. A perda de gravidade da ideologia socialista entre os trabalhadores e a consequente penetração ideológica da direita nas camadas populares também tiveram um impacto.
Nenhuma dessas tendências negativas é definitiva, na medida em que a resistência popular possibilitou contrabalançar a ofensiva do capital. A sequência de lutas e conquistas ressurge com intensidade periódica em diferentes cantos do planeta.
Atualmente, há uma grande recomposição das mobilizações salariais nos Estados Unidos e na Europa com vitórias democráticas, como a obtida com a libertação de Assange. A extraordinária força do movimento de solidariedade palestina está lançando as bases para uma Intifada global, que lembra as grandes batalhas contra a Guerra do Vietnã e o Apartheid na África do Sul. A ação popular definiu o curso da história passada e determinará o sinal de qualquer transição futura.
Horizontes socialistas
A primazia atribuída ao tema popular introduz um raciocínio não-fatalista e não-confuso ao considerar o futuro eventual do Norte e do Sul Global. Esse critério diverge das abordagens estruturalistas, guiadas por parâmetros rígidos de raciocínio inspirados em ciclos sistêmicos. Com uma visão crítica, não é mais possível simplesmente esperar que uma transição hegemônica predeterminada chegue cedo ou tarde. Outros cenários estão abertos, derivados da natureza multiforme e imprevisível dos resultados históricos.
Essa visão, oposta a qualquer inexorabilidade, é inspirada pela lógica do desenvolvimento desigual e combinado, que estuda as complexas contradições do capitalismo em estreita sincronia com a ação popular, destacando o impacto recíproco de ambos os processos. Esse princípio inspirou até mesmo algumas teorias ambiciosas da revolução contemporânea.
É uma abordagem que propõe diferentes enfoques para as "Grandes Ondas" e as sucessões hegemônicas. Ela enfatiza a centralidade dos sujeitos sociais e a consequente gravitação da luta de classes no resultado de cada dilema enfrentado pela sociedade. Enfatiza as tensões internas do capitalismo e não a previsão do futuro desse sistema.
Essa abordagem é altamente relevante para o estudo de uma região tão condicionada pelo protagonismo popular como a América Latina. O primeiro ciclo de rebeliões que começou em 1989 (Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina) foi sucedido por uma segunda onda que começou em 2019 (Bolívia, Chile, Colômbia, Peru, Haiti, Guatemala). Nenhum dos processos resultou em triunfos de magnitude histórica, mas também não resultou em derrotas de magnitude parecidas com as sofridas nos anos 1970.
As revoltas dos últimos anos contiveram a restauração conservadora e tiveram efeitos eleitorais progressistas. No contexto negativo gerado pela degradação social, esses triunfos estão agora enfrentando uma intensa contraofensiva da direita.
No latino-americano, fica muito clara a impossibilidade de compreender os acontecimentos sem levar em conta a centralidade da mobilização popular. Essa é também a base para a formulação de um projeto de emancipação, que tem arestas convergentes com a transição hegemônica, sem se conformar com a versão mais comum dessa mutação.
A América Latina precisa, acima de tudo, lutar contra a dominação dos Estados Unidos, porque não poderá empreender nenhum projeto avançado sem conquistar a soberania política acima do sufoco que as embaixadas, as bases militares e a pressão do Departamento de Estado colocam. A Casa Branca veta qualquer curso regional diferente de seu roteiro, e por isso, nesse campo, há uma total sobreposição com as transições concebidas em confronto frontal com o Norte Global.
Mas a América Latina também precisa de uma renegociação econômica como um bloco com a China para superar as consequências econômicas ruinosas do status quo. O gigante asiático está se aproveitando da fragmentação de seus clientes para obter maiores lucros, e o resultado é visível na primarização, na ausência de transferências tecnológicas e no investimento em áreas não prioritárias. Nesse nível, é possível observar tensões que poderiam ser superadas dentro do próprio Sul Global, se as contradições e disputas que afetam essa estrutura forem reconhecidas.
O terceiro pilar de um projeto de esquerda para a América Latina é a integração regional. Esse caminho é essencial para erradicar o subdesenvolvimento e a desigualdade, forjando a soberania financeira, energética e alimentar de que a região precisa. Aqui, também, emerge a singularidade da região como um bloco específico. Ela poderia convergir, como na era do Terceiro Mundo, com alianças mais amplas, mas essa convergência não será indistinta, nem será uniforme entre todo o Sul Global.
Para entender essas singularidades, é preciso ir além da apresentação atual da transição hegemônica como um contraponto simplificado entre o Norte Global e o Sul Global. Esses termos são úteis e proveitosos, se forem enquadrados em noções mais ordenadas da época atual.
O ponto de partida para essa conceitualização são as contradições inerentes ao capitalismo que a era neoliberal promoveu. A mudança drástica nas relações econômicas internacionais provocada pelo desenvolvimento desigual e combinado é um corolário indispensável dessa avaliação. Por sua vez, o agravamento de todos os desequilíbrios do capitalismo dependente (que a periferia sofre como consequência das transferências de valor) é outro processo decisivo do período atual.
O contraste entre o Norte e o Sul Global só assume um conteúdo efetivo se for enquadrado na lógica do imperialismo e do sistema imperial, nos cenários hierárquicos do centro, da semiperiferia e da periferia.
Por fim, a transição hegemônica não é um destino inexorável do futuro. Assim como a ascensão do Sul Global, ela pode tomar um rumo que seja lucrativo ou oneroso para as maiorias populares. Isso depende do perfil que esse caminho assume, como uma trajetória de validação ou reversão da opressão capitalista.
O primeiro caminho pressagia novas versões dos pesadelos enfrentados pelos despossuídos. O segundo caminho abre as comportas para o antigo sonho de bem-estar popular, igualdade social e coexistência política. Esse curso ganharia força com projetos multipolares, dinâmicas anti-imperialistas e horizontes socialistas, o que traria um ideal renovado para a transição protagonizada pelo Sul Global.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Cockburn: Oriente Médio em trevas
Reeclode a guerra civil na Síria, com possível participação de Israel e EUA. Agora, duas pinças oprimem o mundo árabe – Tel-Aviv e as monarquias conservadoras do Golfo Pérsico. Chama da descolonização esmaeceu, mas não está extinta
Por Patrick Cockburn, em INews | Tradução: Glauco Faria
Estamos testemunhando uma nova divisão do mundo árabe, mais radical do que qualquer outra coisa que tenha acontecido desde que o Reino Unido e a França, como potências imperiais, se retiraram a contragosto da região nos 20 anos após a Segunda Guerra Mundial.
O ataque amplamente bem-sucedido de Israel ao Hamas, aos palestinos em Gaza e ao Hezbollah e aos muçulmanos xiitas no Líbano é o último estágio da atual dissolução do poder árabe.
O presidente Joe Biden, mantendo seu hábito bem estabelecido de clamar pela paz enquanto fornece os meios para a guerra, expressou esperança de que o cessar-fogo instável desta semana no Líbano seja seguido por outro em Gaza. Tal redução da violência é improvável, dado que Biden acaba de aprovar a venda de US$ 680 milhões em armas e munições para Israel.
A violência está se espalhando rapidamente enquanto a supremacia israelense apoiada pelos EUA reacende conflitos profundamente congelados no Oriente Médio. Enquanto o domínio do Hezbollah é abalado no Líbano, animosidades sectárias com potencial para violência extrema ressurgem entre diferentes comunidades muçulmanas e cristãs que lutaram uma guerra civil devastadora entre 1975 e 1990.
Indicação sinistra
Nos últimos dias, as forças antigovernamentais sírias lançaram seu maior ataque às forças governamentais em anos a oeste de Aleppo, uma indicação ameaçadora de que a guerra civil síria, na qual pelo menos 300 mil residentes morreram e 5,5 milhões se tornaram refugiados, pode estar recomeçando. Hayat Tahrir al-Sham, a facção rebelde mais poderosa, antes ligada à Al-Qaeda, está liderando um avanço do enclave de Idlib, controlado pela oposição, em direção a Aleppo. A trégua que prevaleceu desde 2019 está entrando em colapso, com pelo menos 242 pessoas, a maioria combatentes, supostamente mortas nos combates.
Israel está intensificando seus ataques aéreos contra alvos na Síria para impedir o presidente Basharal-Assad de ajudar ou reabastecer o Hezbollah com armas iranianas. O diário israelense Haaretz cita um especialista apontando para um ataque aéreo israelense perto de Idlib como um sinal de que Israel “se considera livre para atacar especificamente instalações do exército sírio, alvos que ele havia se abstido de atacar até agora, pelo menos não intencionalmente”.
Enquanto isso, os curdos sírios estão expressando temores de que seu enclave no norte da Síria esteja prestes a ser atacado por islâmicos sírios apoiados pela Turquia, um movimento que pode precipitar a limpeza étnica de um milhão de curdos que vivem no lado sírio da fronteira com a Turquia.
Característica marcante das guerras em Gaza e no Líbano
Embora esse êxodo forçado traga uma grande angústia para os curdos, ele não é o maior ato de limpeza étnica atualmente concebível no Oriente Médio. Enquanto o presidente eleito Donald Trump se prepara para assumir o cargo dentro de algumas semanas, cresce na região o discurso sobre a possibilidade de o novo governo dos EUA permitir que Israel empurre alguns dos 2,3 milhões de palestinos de Gaza para o Egito, atravessando a fronteira.
Com Israel encorajado pelos seus sucessos contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã, o seu primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, poderá assistir à expulsão dos palestinos – uma repetição da “Nakba” palestina de 1948 – como uma meta alcançável durante a presidência de Trump.
Ministros israelenses poderosos apoiam abertamente essa opção. O ministro das Finanças Bezalel Smotrich, falando no início deste ano, disse que a “solução correta” para o conflito israelense-palestino é “encorajar a migração voluntária dos moradores de Gaza para países que concordarão em receber os refugiados”. Ele previu que “Israel controlará permanentemente o território da Faixa de Gaza”, onde estabeleceria assentamentos judeus.
O mundo árabe espera que esta transferência em massa de palestinos seja tudo menos “voluntária”, mas é pouco provável que os árabes possam fazer muito para impedi-la. De fato, uma característica marcante das guerras em Gaza e no Líbano é a falta de reação dos 456 milhões de árabes e dos 22 países pertencentes à Liga Árabe.
Espectadores
Até cerca de 30 anos atrás, os Estados árabes – Egito, Síria, Iraque, Líbia, Sudão, Argélia – ainda eram atores importantes na determinação do futuro da região. Mas hoje eles são, na melhor das hipóteses, espectadores depois que seus países foram dilacerados ou gravemente enfraquecidos por guerras civis, invasões estrangeiras e golpes militares.
A liderança dos árabes passou para as monarquias árabes do Golfo, ricas em petróleo e com muito dinheiro. Mas elas têm demonstrado uma incapacidade crônica de transformar esse dinheiro em força política. Durante as guerras de Gaza e do Líbano, os governantes da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos permaneceram ineficazes à margem da crise, procurando evitar qualquer envolvimento.
Onde a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos usaram seu dinheiro para financiar mudanças políticas, o resultado foi uniformemente desastroso. Isso foi verdade quando a Arábia Saudita apoiou a ascensão do Talibã no Afeganistão na década de 1990 e igualmente quando os Emirados Árabes Unidos apoiaram os rebeldes das Forças de Apoio Rápido contra o exército regular no Sudão, na feroz guerra civil que começou em abril de 2023 e desde então devastou seus 50 milhões de habitantes, metade dos quais agora precisa de ajuda para sobreviver. Anteriormente, nas revoltas da Primavera Árabe de 2011, os Estados petrolíferos desempenharam um papel fundamental no financiamento de grupos rebeldes na Líbia e na Síria, ao mesmo tempo em que garantiam que as autocracias não fossem substituídas por democracias.
O mundo árabe foi esmagado entre duas mandíbulas: uma das quais é Israel e a outra as monarquias árabes do Golfo. Não há evidências de cumplicidade entre os dois, mas, ambos fortemente apoiados pelos EUA, eles juntos eliminaram Estados-nação árabes capazes de exercer autodeterminação. Vários desses Estados eram governados por ditadores como Saddam Hussein e Muammar Gaddafi, mas, com suas quedas, ficou evidente que o objetivo daqueles que os eliminaram não era a democracia e os direitos humanos.
Anarquia sombria
Depois que as forças lideradas pelos EUA capturaram Bagdá em 2003, eles fizeram todos os esforços para adiar as eleições e não viram necessidade de o Iraque ter um exército regular, exceto em sua fronteira com o Irã. Na Líbia, um dos primeiros atos do novo governo de transição que substituiu Gaddafi foi acabar com sua proibição à poligamia.
Em 1916, o Reino Unido e a França concordaram em dividir o mundo árabe entre os territórios do Império Otomano, que logo seria derrotado, e as partes não árabes do mesmo. O domínio colonial foi, por sua vez, substituído nas décadas após 1945 por regimes nacionalistas árabes e por uma dispersão de reinos árabes ricos em petróleo no Golfo. Esse novo status quo nunca foi estável, abalado como foi pelas derrotas militares de Israel e pelas divisões sectárias entre muçulmanos xiitas e sunitas, mas esse mundo tóxico está sendo substituído por algo pior.
Não haverá um novo acordo Sykes-Picot delineando zonas de influência estrangeira, mas de Damasco a Cartum e de Trípoli a Sanaa, o destino dos árabes será mais uma vez determinado por forças externas, com pouca consideração pelos interesses de seus habitantes. Regimes brutais e repressivos presidirão sociedades arruinadas, atoladas nessa anarquia sombria.
“Onde eles fazem um deserto, chamam-no de paz”, foi o veredito amargo de um chefe britânico há dois mil anos sobre a devastação que o Império Romano havia infligido a seu povo. Suas palavras ecoaram ao longo dos séculos e constituem um epitáfio adequado para o mundo árabe nos dias de sua destruição.
Mais reflexões
O triunfo da economia neoliberal e das desregulamentações a partir da década de 1980 produziu um aumento inevitável da corrupção. A elevação do mercado como o “bem supremo” naturalmente levou políticos e autoridades a venderem sua influência e suas conexões – embora acreditassem ser sua experiência – pelo maior lance.
Os regimes populistas-nacionalistas aceleraram ainda mais as negociações desonestas, ignorando os conflitos de interesse. O declínio constante dos padrões do Reino Unido em cargos públicos se reflete em sua queda para o 20º lugar no Índice de Percepção da Corrupção (CPI) da Transparência Internacional. A Transparência Internacional cita como exemplos dessa tendência a via rápida de EPIs para VIPs durante a pandemia de covid-19, que permitiu que as pessoas ligadas ao Partido Conservador ganhassem contratos superfaturados no valor de bilhões que não estavam qualificadas para cumprir.
A Transparência Internacional enfatiza a velocidade do declínio para 71 de uma pontuação máxima possível de 100 em seu índice: “A pontuação do Reino Unido no IPC de 2023 representa a queda mais significativa na Europa Ocidental nos últimos cinco anos (-9), mais acentuada do que na Polônia (-6) e na Áustria (-5). Esse declínio desde 2018 é semelhante em tamanho ao de países como Mianmar (-9), Nicarágua (-8), Libéria (-7) e Turquia (-7).”
Os britânicos se referem delicadamente ao problema como “compadrio” e “desonestidade” e raramente falam de “corrupção”, mesmo quando ela é mais flagrante. As somas em jogo nos escândalos de suborno chegaram a dezenas ou centenas de milhões de libras, superando em muito qualquer coisa já vista antes. Os políticos pegos em inegáveis conflitos de interesse apontam corretamente que seu lobby pode não ser realmente ilegal, por mais evidente que seja o abuso do cargo público.
A nostalgia excessiva de tempos mais honestos provavelmente é descabida, pois sempre houve um cheiro ruim em grande parte do que acontecia na cidade, no governo local e no setor de construção. No entanto, durante o governo de Boris Johnson, a tolerância em relação aos negócios sujos tornou-se grotesca.
Sir Keir Starmer prometeu, antes da eleição geral, acabar com o lobby, mas começou mal com o escândalo sobre sua aceitação de presentes caros – e suas explicações tortuosas sobre o motivo de ter feito isso.
Um estudo realizado por Ben Worthy, da Birkbeck, e Michelle Crepaz, da Queen’s University Belfast, faz um relato gráfico do sistema de lobby e das tentativas pouco animadoras de reformá-lo. Eles escrevem que, ironicamente, se Starmer “for bem-sucedido, ele enfrentará uma espécie de paradoxo da virtude. A experiência internacional mostra que regras e sanções mais rígidas podem – em um primeiro momento – levar a uma maior exposição da corrupção ou da influência indevida. Portanto, qualquer governo que esteja ‘limpando a política’ pode parecer, pelo menos a curto prazo, mais corrupto”. Sir Keir Starmer prometeu antes das eleições gerais acabar com o lobby, mas começou mal com o escândalo sobre sua aceitação de presentes caros– e suas explicações tortuosas sobre o porquê de ter feito isso.
Abaixo do radar
O debate no Reino Unido sobre o projeto de lei da morte assistida – se pessoas com doenças terminais e com capacidade mental podem ou não receber assistência médica para morrer – que a Câmara dos Comuns aprovou na sexta-feira, tem sido maduro e inteligente. O motivo da alta qualidade da discussão é que a maioria se baseia em experiências e conhecimentos pessoais profundos.
Minha opinião é que a morte assistida deve ser permitida em circunstâncias muito limitadas e altamente controladas, embora o projeto de lei possa causar tantos problemas quanto resolver. Por exemplo, ele abre a opção de suicídio – autoinfligido ou medicamente assistido – para aqueles que sentem que são um fardo terrível para suas famílias, como de fato são. Esse fardo é geralmente suportado heroicamente pelas famílias, muitas vezes com poucos recursos, que cuidam de parentes desesperadamente doentes.
Um ponto na discussão sobre a morte assistida me parece não ter recebido a devida atenção. É incorreta a suposição de que os médicos podem prever com segurança quanto tempo uma pessoa muito doente sobreviverá – e em que condição.
Fui influenciado por algo que aconteceu comigo em um hospital de Londres, há uma década, quando me envolvi de forma periférica em uma decisão familiar sobre aceitar ou não o conselho forçado de um médico de que um paciente não sairia do coma e que o suporte à vida deveria ser desligado. Eu era contra isso porque havia almoçado alguns meses antes em Beirute com um amigo que, da mesma forma, havia sido considerado por um médico do mesmo hospital como estando em coma permanente – e o suporte à vida deveria ser desligado. Sem dúvida, o conselho médico foi sincero, mas a capacidade de sobrevivência ainda não é uma ciência exata.
A escolha de Cockburn
Há muitas reportagens de guerra da Ucrânia, mas muitas delas são tão tendenciosas que as desvalorizam seriamente como fonte de informações sobre o que realmente está acontecendo na guerra. Fazer reportagens de guerra é fácil – dada a natureza dramática do conflito – mas difícil é fazer bem feito. Não é apenas a parcialidade que obscurece a verdade, mas a complexidade genuína dos eventos e a tendência da mídia de diluí-los e simplificá-los demais. O melhor relato informativo e equilibrado de uma testemunha ocular da Ucrânia que vi recentemente foi o de James Meek na London Review of Books, intitulado “Nobody Wants to Hear This” (Ninguém quer ouvir isso).
O título vem de uma conversa – uma das muitas com soldados e civis ucranianos nesse artigo de 9.500 palavras – que Meek teve com um soldado chamado Yegor.
“Conversei com soldados em serviço. Um deles, Yegor, da unidade de drones da 93ª brigada, me disse que ‘as pessoas que viram com seus próprios olhos o que a guerra realmente é, não na TV, mas de verdade, estão prontas para parar e fazer um acordo, porque estão cansadas de perder seus amigos, seus conhecidos. E estão cansadas de se surpreenderem por ainda estarem vivos. Aqueles que dizem o contrário não sabem o que é a guerra. É fácil dizer “vamos lá, em frente, para a batalha” se você está apenas assistindo tudo na tela. É claro que haverá muitas pessoas gritando que temos que seguir para a vitória, para as fronteiras de 1991. Mas os soldados reais nas trincheiras estão prontos para parar e fazer um acordo. Mesmo assim, ninguém quer ouvir isso”.
Os EUA e sua acumulação militarizada
Entre os fatores da guerra na Ucrânia, um é pouco explorado. Sob risco de recessão, EUA resgatam uma velha artimanha capitalista: crescer com base nos conflitos e na produção de armamentos. A particularidade, agora, foi forçar o endividamento e a dependência da Europa
A guerra da Otan contra Rússia na Ucrânia é uma imposição dos Estados Unidos à Europa. Uma nova fase da exploração capitalista, denominada de “acumulação militarizada” (William I. Robinson), por meio da corrida armamentista capaz de impulsionar a economia estadunidense a entrar numa nova onda de crescimento, tendo como referência novos padrões tecnológicos baseados na nanotecnologia, bioengenharia e inteligência artificial.
William I. Robinson, renomado teórico sobre o capitalismo, é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Ele usa o termo “acumulação militarizada” para descrever um fenômeno onde a acumulação capitalista se torna cada vez mais dependente da militaMilitarismoMilitarismorização e dos conflitos. Robinson alerta que quanto mais a economia global se torna militarizada, há um aumento dos focos de guerra e de conflitos armados, alimentados pelos interesses dos donos do capital transnacional.
Foi estratégico para os EUA promover a guerra em solo europeu, na Ucrânia, para disparar a produção massiva de armamentos produzidos pelo seu complexo militar – como Raytheon, General Dynamics, Lockheed Martin, Northrop Grumman e Boeing – impondo compras à Europa, gerando mais dependência comercial e monetária dos países daquele continente com os EUA.
Já em 1990, o governo de George W. Bush prometera verbalmente a Mikhail Gorbachev, Secretário-Geral da União Soviética, que não haveria expansão da Otan. Entretanto, com o fim da Guerra Fria, tal promessa foi quebrada em 1994 quando Bill Clinton deu início à política de Estado de expansão da Otan ao Leste Europeu, a qual absorveu quatorze países da Europa Central e Oriental: 1) em 1999, República Checa, Hungria e Polônia; 2) em 2004, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia; 3) em 2009, Albânia e Croácia; 4) em 2017, Montenegro; 5) em 2020, Macedônia.
Como já afirmara anteriormente o primeiro secretário-geral da Otan, Hastings Ismay (1952-1957): “O objetivo da Aliança do Tratado do Atlântico Norte é manter a União Soviética [Rússia] fora da Europa, os americanos dentro e os alemães embaixo”. Eis o centro do confronto em solo europeu atual. A força militar intervencionista dos EUA-Otan sobrepôs-se e destruiu a possibilidade da união entre as nações, no caso, da integração da Rússia com a União Europeia.
O renomado jornalista investigativo Seymour Hersh ganhou, em 1970, o Prêmio Pulitzer pelo papel que desempenhou ao revelar para a opinião pública internacional o covarde massacre de soldados estadunidenses a cerca de 500 civis desarmados, cujas vítimas foram homens, mulheres, crianças e idosos, o qual ficou conhecido como o Massacre de My Lai, ocorrido em 16 de março de 1968, durante a Guerra do Vietnã.
Em 8 fevereiro de 2023, Seymour publicou um artigo (How America Took Out The Nord Stream Pipeline) descrevendo minuciosamente como a Marinha estadunidense bombardeou o Nord Stream que transportava gás natural, a preços baixíssimos, da Rússia para a Alemanha.
Segundo o renomado jornalista, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jack Sullivan, havia convocado, em dezembro de 2021, antes do início da guerra na Ucrânia, uma reunião da força-tarefa formada pelos Chefes do Estado Maior Conjunto, a CIA, os Departamentos do Estado e do Tesouro, requerendo que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois dutos do Nord Stream.
Com a sabotagem militar aos dutos, obrigou-se a Alemanha a manter-se na guerra da Ucrânia e a comprar GNL (Gás Natural Liquefeito), embarcado em navios dos EUA, a preços e fretes infinitamente superiores.
Entre os danos causados pela destruição, houve uma forte redução no fornecimento de gás natural, resultando em aumento de preços de energia na Alemanha e em toda a Europa, afetando tantos as populações como as empresas, que tiveram que arcar com custos muito mais altos para aquecimento dos lares e para a produção de bens e serviços.
Consequentemente, acarretou um desarranjo na economia alemã, reduzindo a competitividade de suas empresas em função do aumento dos custos de produção, provocando de forma incisiva a queda do consumo doméstico pela alta da inflação. A destruição dos gasodutos gerou incerteza e instabilidade no mercado de energia, dificultando o planejamento e tomada de decisões.
Não é diferente com o genocídio que acontece na Palestina pelos ataques indiscriminados de Bibi Netanyahu, há mais de um ano, provocando um morticínio covarde e insano de populações civis – mulheres e crianças em sua maioria – visando ao extermínio étnico do povo palestino. Atualmente, numa nova fase de sua guerra, amplia-se o horror para as populações civis do Líbano, incluindo ataques a bases das tropas de paz plurinacional da ONU, Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil), contestados por diversos Estados-Nação, inclusive o Brasil.
Não nos enganemos: essas guerras, na Europa e no Médio Oriente, são imposição imperialista dos EUA.
O ataque que pode incendiar o mundo
Apesar de todos os riscos e advertências, Israel mantém planos de agredir o Irã. Arrogância, fanatismo religioso e aposta no apoio dos EUA alimentam a insensatez. Um Biden alienado e confuso e uma mídia cúmplice compõem o quadro
Por Patrick Cockburn, no iNews | Tradução: Glauco Faria
Depois que o “gabinete de segurança” de Israel autorizou ataques aéreos contra o Irã, os objetivos de guerra ampliaram-se e incluem o risco de uma guerra regional contra o Irã, que teria o objetivo de remodelar radicalmente o cenário político do Oriente Médio a favor de Tel Aviv
Essa meta ambiciosa, até mesmo fantasiosa, está repleta de perigos para a região e para o mundo. Israel não pode alcançá-la sem o apoio total e indisfarçável dos EUA. Apesar de a alegação do presidente Joe Biden, de que teria insistido infrutiferamente com Benjamin Netanyahu para um cessar-fogo, ele sempre endossou todas as escaladas israelenses. É razoável que Israel conclua que pode atacar o Irã com impunidade, pois, se algo der errado, terá o apoio das forças armadas estadunidenses.
Os historiadores podem um dia chegar a uma conclusão sobre até que ponto a cauda israelense está abanando o cachorro americano, aproveitando a fraqueza de Biden para atrair os EUA a outra aventura militar imprudente no Oriente Médio. É muito fácil atribuir a culpa pela diplomacia displicente e ineficaz dos Estados Unidos ao declínio cognitivo de Biden nos últimos três anos. Mas, se não for Biden, não está claro quem são os verdadeiros responsáveis por tomar as decisões na Casa Branca e nos escalões superiores do governo.
Julgando a Casa Branca por suas ações e não por suas palavras, ela vê uma vantagem geopolítica em derrotar o Irã – um aliado da Rússia e da China, embora distante – e seus aliados.
O pensamento positivo provavelmente desempenha um papel importante. Israel tem sido muito mais bem-sucedido em matar os líderes e comandantes de nível médio do Hezbollah do que se esperava. Será que um ataque agressivo ao Irã e ao seu “Eixo de Resistência” não poderia produzir vitórias semelhantes?
Essa é uma perspectiva atraente, embora as intervenções militares dos EUA – da Somália em 1992/93 ao Afeganistão em 2001 e ao Iraque em 2003 – tenham fracassado em grande parte devido à arrogância e à subestimação do inimigo.
Um perigo inédito
O histórico de Israel é semelhante. Tel Aviv forçou a mão de forma arrogante na Cisjordânia, após derrotar o Egito e a Síria em 1967 e invadir o Líbano em 1982. No entanto, décadas depois, o exército de Israel (que se intitula Forças de Defesa — ou IDF, em inglês) ainda está lutando em ambos os lugares.
Essas analogias históricas são frequentemente citadas por comentaristas ocidentais como avisos sinistros sobre o que pode dar terrivelmente errado para os EUA e Israel quando dependem exclusivamente da força. No entanto, as comparações são um pouco enganosas, pois o cenário político, tanto na política interna israelense quanto na região como um todo, foi transformado nos últimos 20 anos. São essas mudanças que tornam a crise atual muito mais perigosa do que as anteriores.
O governo israelense formado por Netanyahu após vencer as eleições gerais em novembro de 2021 foi imediatamente reconhecido como o mais fanaticamente de direita e ultranacionalista da história de Israel. Para citar apenas um exemplo, Itamar Ben-Gvir, líder do partido Poder Judaico, tornou-se ministro da segurança nacional – um cargo recém-criado que o coloca no comando da força policial nacional. Colono religioso de Kiryat Arba, próximo à cidade de Hebron, na Cisjordânia, ele já havia sido condenado no passado sob a acusação de incitar o racismo e apoiar o terror. Ameaçou o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ao vivo pela televisão e tinha pendurada em sua casa uma fotografia de Baruch Goldstein, que assassinou 29 palestinos enquanto rezavam na mesquita de Hebron em 1994.
Considerando a composição ideológica do gabinete israelense, não é de surpreender que os objetivos de Israel em Gaza e na Cisjordânia pareçam ter se alargado, a ponto de incluir agora o fim de toda a vida normal para os cinco milhões de palestinos que vivem lá. Um ataque aéreo a uma escola no centro de Gaza na quinta-feira (10/10) matou 28 pessoas, muitas das quais, segundo a Unicef, eram mulheres e crianças que faziam fila para receber tratamento contra a desnutrição.
O exército de Israel justificou o ataque alegando que a escola abrigava um posto de comando do Hamas. Mesmo supondo que isso seja verdade, em sua tentativa de se justificar, as IDF estão confessando que o Hamas está presente em todos os lugares de Gaza um ano após a invasão israelense.
Israel alega que a cifra de 42 mil mortos em Gaza é exagerada pelo ministério da Saúde palestino, mas está repetindo exatamente o mesmo padrão de promover ataques aéreos, independentemente de vítimas civis, no Líbano. Um ataque em Beirute, no mesmo dia do ataque em Gaza, matou 22 pessoas, incluindo três crianças de uma família de oito pessoas, que haviam fugido do sul do Líbano.
A nova elite
O que torna a crise atual duplamente perigosa é o fato de que Israel não tem apenas uma liderança política etnonacionalista. Um desenvolvimento paralelo ocorreu entre a liderança da elite do Estado israelense – serviço civil, polícia, Judiciário e, cada vez mais, o exército – que são oriundos da ala fundamentalista e messiânica da sociedade.
Essa nova elite é menos sofisticada do que seus antecessores (embora esses também fossem muitas vezes linha-dura), mais propensa a ver os inimigos de Israel como demoníacos e ameaçadores, mas vulneráveis quando confrontados com o uso implacável da força.
O curso da guerra até agora no Líbano tende a confirmar isso, e há outros argumentos poderosos a seu favor. Os EUA estão dando carta branca a Israel de uma forma sem precedentes e é improvável que oponha resistência a uma estratégia israelense agressiva em relação ao Irã.
Ameaças iminentes
Os Estados-nações árabes que já foram hostis a Israel, incluindo Síria, Iraque, Líbia e Sudão, estão todos gravemente enfraquecidos por guerras civis nos últimos 20 anos. Os líderes árabes estão mudos ou são ineficazes em relação a Gaza e ao Líbano. O Irã está mais isolado do que nunca desde o fim da guerra Irã-Iraque em 1988.
No entanto, a vulnerabilidade do Irã e de seus aliados pode ser um pouco enganosa. Um grupo de Estados dominados por muçulmanos xiitas, que se estende pelo norte do Oriente Médio – Irã, Iraque, Síria e Líbano – não vai desaparecer.
Israel e os EUA podem tentar provocar conflitos religiosos e étnicos em países como o Líbano, que testemunhou uma guerra civil sectária e cruenta entre 1975 e 1990. Já há relatos de muçulmanos xiitas que fogem dos bombardeios israelenses e são vistos com hostilidade quando buscam refúgio em áreas não xiitas.
Quanto ao Irã, ele pode concluir que não pode deter Israel, que está preparado para arriscar uma guerra regional, mas que seria melhor ampliar o conflito por meio de ataques às rotas de comércio de petróleo, aos aliados ou às bases dos EUA. Seu objetivo seria forçar os EUA a conter Israel – a alegação de Washington de que não pode fazer isso é amplamente desacreditada no Oriente Médio.
Está se tornando cada vez mais difícil ver como uma guerra regional pode ser evitada – e ainda mais difícil ver como ela pode ser encerrada.
Abaixo do radar
Na corrida para a eleição presidencial dos EUA, é fascinante ver como a mídia anti-Trump evita qualquer referência às dificuldades cognitivas de Biden. Esta mídia ficou feliz em divulgar isso em julho, quando pressionou o presidente a desistir de sua candidatura à reeleição, mas desde então há poucas referências ao fato de que o homem supostamente responsável por empurrar os Estados Unidos para a guerra no Oriente Médio é incapaz de pensar direito.
Ocasionalmente, há evidências visíveis disso quando Biden se liberta de seus manipuladores, ao caminhar em direção ao helicóptero presidencial e falar com os repórteres. Quando suas palavras são coerentes, elas tendem a causar medo e pânico, como quando ele murmurou que os EUA estavam conversando com Israel sobre atacar instalações petrolíferas iranianas.
Na década de 80, os assessores do presidente Ronald Reagan tiveram um problema semelhante com seu chefe, que talvez já estivesse sofrendo do mal de Alzheimer, fato admitido publicamente vários anos depois. Sabendo do risco de Reagan ouvir e responder às perguntas dos repórteres a caminho do helicóptero presidencial – e, ao fazê-lo, revelar sua saúde mental em processo de deterioração – , eles determinaram aos pilotos que ligassem os motores mais cedo, para que todas as palavras fossem abafadas pelo barulho.
Israel X Irã: a Rússia entrou no jogo
Um grande analista do Oriente Médio sustenta: os mísseis iranianos já são capazes de penetrar o “domo de ferro” israelense. Há indícios claros de que Moscou está apoiando Teerã – e de que ambos firmarão, em breve, um pacto de defesa mútua
Apesar da brilhante gestão de mídia de Israel, surgiram relatos de que o ataque de mísseis iranianos em 1º de outubro foi um sucesso espetacular. Foi uma demonstração da capacidade de dissuasão do Irã para esmagar Israel, se necessário. O fracasso dos EUA em interceptar os mísseis hipersônicos iranianos trouxe uma mensagem própria. O Irã afirma que 90% de seus mísseis penetraram no sistema de defesa aérea de Israel.
Will Schryver, engenheiro técnico e comentarista de segurança, escreveu no X: “Não entendo como alguém que viu os muitos vídeos dos ataques de mísseis iranianos contra Israel pode não reconhecer e admitir que foi uma demonstração impressionante das capacidades iranianas. Os mísseis balísticos do Irã ignoraram as defesas aéreas dos EUA/Israel e realizaram vários ataques com grandes ogivas contra alvos militares israelenses.”
Evidentemente, na situação de pânico que se seguiu em Israel, até 4/10 ainda havia decisão sobre qual tipo de resposta dar contra o Irã. Como disse o presidente dos EUA, Joe Biden, “se eu estivesse no lugar deles [israelenses], estaria pensando em outras alternativas além de atacar campos de petróleo”. A fala foi feita em uma rara aparição na sala de imprensa da Casa Branca, um dia depois de autoridades israelenses dizerem que uma “retaliação significativa” era iminente.
Biden acrescentou que os israelenses “ainda não concluíram como — o que eles vão fazer” em retaliação. Biden também disse a repórteres que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, deveria lembrar do apoio dos EUA a Israel ao decidir os próximos passos. Ele afirmou que estava tentando mobilizar o mundo para evitar uma guerra total no Oriente Médio.
Nesta pantomina, é mais seguro acreditar em Biden, já que a verdade é que, sem a ajuda prática e financeira — e intervenção direta — dos EUA Israel simplesmente não tem fôlego para enfrentar o Irã. A dominância regional de Israel se restringe a executar planos de assassinato e atacar civis desarmados.
Mas, mesmo aqui, é discutível o quão autossuficiente Israel é, comparada com o Irã. Surgiram relatos de que a nova inteligência tecnológica dos EUA localizou o paradeiro do líder do Hezbollah, Sayyed Nasrallah, que foi passada a Israel, levando ao seu assassinato.
Curiosamente, o diretor da CIA, William Burns, interveio para refutar os rumores de que o Irã tenha conduzido um teste nuclear no último sábado, 5/10. Falando em uma conferência de segurança na segunda-feira, Burns afirmou que os EUA monitoraram de perto a atividade nuclear do Irã em busca de qualquer sinal de que o país esteja acelerando em direção a uma bomba nuclear.
“Não vemos evidências hoje de que tal decisão tenha sido tomada. Observamos isso muito cuidadosamente”, disse ele. Burns desfez suavemente outro pretexto para atacar o Irã.
Um fator crítico que obrigou Israel/EUA a adiar qualquer ataque ao Irã foi o severo aviso de Teerã de que qualquer ataque à sua infraestrutura por Israel seria respondido com uma reação ainda mais dura. “Ao responder, não hesitamos nem agimos precipitadamente”, citou o ministro das Relações Exteriores, Abbas Araghchi, que, aliás, fez uma viagem ao Líbano e à Síria no fim de semana para enviar uma “mensagem” desafiadora a Israel — como ele colocou — de que “o Irã apoiou fortemente a resistência e sempre a apoiará.”
No início de 4 de outubro, o Líder Supremo, Aiatolá Ali Khamenei, usou um raro sermão público para defender o ataque de mísseis do Irã contra Israel, dizendo que foi “legítimo e legal” e que, “se necessário”, Teerã o faria novamente. Falando em persa e árabe durante as orações de sexta-feira em Teerã, Khamenei disse que o Irã e o Eixo da Resistência não recuarão diante de Israel. O Irã não “procrastinará nem agirá apressadamente ao cumprir seu dever” de confrontar Israel, declarou Khamenei.
No entanto, o que desmotiva os israelenses e causa desconforto nos EUA é outra coisa — as crescentes sombras da Rússia sobre o cenário do Oriente Médio.
Analistas militares norte-americanos divulgaram que certas armas altamente avançadas da Rússia foram transferidas para o Irã nas últimas semanas, apoiadas pelo envio de pessoal militar russo para operar esses sistemas, incluindo mísseis S-400. Há especulações de que o secretário do Conselho de Segurança da Rússia (ex-ministro da Defesa) Sergei Shoigu fez duas visitas secretas ao Irã no período recente.
Aparentemente, Moscou também respondeu ao pedido iraniano de dados de satélite sobre alvos israelenses para seu ataque de mísseis em 1º de outubro. A Rússia também forneceu ao Irã o sistema de guerra eletrônica de longo alcance “Murmansk-BN”.
O sistema “Murmansk-BN” é um poderoso sistema de guerra eletrônica, capaz de bloquear e interceptar sinais de rádio inimigos, GPS, comunicações, satélites e outros sistemas eletrônicos a até 5.000 km de distância, neutralizando munições “inteligentes” e sistemas de drones — e é capaz de interromper sistemas de comunicação via satélite de alta frequência pertencentes aos EUA e à OTAN.
Sem dúvida, o envolvimento russo no impasse do Irã com Israel é potencialmente um divisor de águas. Do ponto de vista dos EUA, isso levanta o espectro preocupante de um confronto direto com a Rússia, algo que Washington quer evitar.
É nesse cenário que agências de notícias oficiais russas citaram o assessor presidencial Yury Ushakov, no domingo, afirmando que Putin planeja se encontrar com seu homólogo iraniano, Masud Pezeshkian, na capital do Turcomenistão, Ashgabat, em 11 de outubro.
Ushakov não elaborou sobre a reunião. De fato, isso é uma surpresa, já que os dois líderes programaram se encontrar novamente na cúpula do BRICS, na cidade russa de Kazan, de 22 a 24 de outubro.
Claro, os iranianos também estão sendo discretos. Tanto Moscou quanto Teerã anunciaram que seus presidentes visitariam Ashgabat em 11 de outubro para participar de uma cerimônia marcando o 300º aniversário de nascimento do poeta e pensador turcomano Magtymguly Pyragy. Fumaça e espelhos! (aqui e aqui)
É totalmente concebível que, em meio às crescentes tensões regionais, Moscou e Teerã possam ter pensado em antecipar a assinatura formal do pacto de defesa russo-iraniano, originalmente programado para acontecer em Kazan.
Se for assim, o evento de sexta-feira será semelhante à visita não programada do então ministro das Relações Exteriores soviético, Andrei Gromyko, a Nova Délhi para a assinatura do histórico Tratado de Paz, Amizade e Cooperação entre Índia e URSS, em 9 de agosto de 1971.
Curiosamente, Ushakov acrescentou que Putin não tem planos de se encontrar com Netanyahu. Putin ainda não respondeu a um pedido de Netanyahu para uma conversa telefônica, feito há cinco dias. Uma lenda que Netanyahu criou, nos últimos anos, para impressionar seu público doméstico (e confundir as ruas árabes) — de que ele tinha um relacionamento especial com Putin — está desmoronando.
Por outro lado, ao marcar uma reunião urgente em Ashgabat — na verdade, o presidente do Turcomenistão, Serdar Berdimuhamedov, esteve em Moscou apenas na segunda-feira/terça-feira para uma visita de trabalho — o Kremlin está deixando claro para Washington e Tel Aviv que Moscou está irrevogavelmente alinhado com Teerã e ajudará este último, não importa o que for necessário. (Veja, em meu blog, “Crise na Ásia Ocidental leva Biden a quebrar o gelo com Putin”, 5/10/24)
A história não está se repetindo? O Tratado Indo-Soviético de 1971 foi o tratado internacional mais consequente assinado pela Índia desde sua independência. Não foi uma aliança militar. Mas a União Soviética aumentou a capacidade militar da Índia para uma guerra iminente e criou espaço para que o país fortalecesse as bases de sua autonomia estratégica e sua capacidade de ação independente.
Terror no Líbano
Israel amplia, com 500 mortes, a guerra que não é capaz de vencer, mas que pode incendiar o Oriente Médio e o mundo. Uma cientista política libanesa relata, de Londres, os laços sociais e familiares que estão sendo destroçados pelo massacre
Por Loubda El Amine | Tradução: Antonio Martins
Demorou um pouco para as pessoas entenderem o que estava acontecendo, quando milhares de pagers biparam e depois explodiram em todo o Líbano na semana passada: nos bolsos, nas mãos, na frente dos rostos; nas ruas, nos carros, em casa; em supermercados, escolas e escritórios. “Eu reportei os fatos à medida que surgiam, mas não entendi o que estava dizendo”, me disse um amigo jornalista. Quando ocorrem ataques e explosões no Líbano, como tem ocorrido frequentemente na história recente, as mensagens nos grupos de WhatsApp da minha família costuam chegar em cascata. Desta vez, nenhuma chegou. Soube mais tarde que as pessoas foram aconselhadas a não ligar ou enviar mensagens para proteger a identidade dos alvos, presumivelmente combatentes do Hezbollah. O silêncio foi preenchido pelas sirenes das ambulâncias.
Os milhares que perderam olhos e dedos, cujos rostos foram desfigurados e cujas virilhas foram dilaceradas; as dezenas mortas durante os dois dias de ataques com pagers; as dezenas mais que morreram e ficaram feridas no assassinato de um comandante do Hezbollah no dia seguinte; e os muitos outros – pelo menos 182, até o momento desta escrita – mortos no bombardeio desta manhã [de 23/9; um dia depois, as mortes são calculadas em pelo menos 500 (Nota de Outras Palavras)]no sul do país: são todas de meus compatriotas libaneses. Tenho menos ligação com eles por unidade cívica ou fervor nacional do que pela nossa experiência compartilhada das guerras e das tréguas inquietas entre elas.
Nasci durante a guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990, e cresci ouvindo disparos de projéteis e bombas e escutando anúncios sombrios no noticiário. Meus pais me contaram suas próprias histórias. Meu irmão mais velho nasceu em 17 de setembro de 1982, quando as falanges de direita, apoiadas pelo exército israelense, que havia invadido Beirute, massacraram refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila. Meu pai hasteou uma bandeira branca no carro enquanto levava minha mãe ao parto no hospital.
A guerra civil terminou quando eu tinha seis anos. O que me lembro mais vividamente são os bombardeios israelenses nos anos que se seguiram, quando eu tinha doze, quinze e depois 22. Atingiram pontes, aeroportos, usinas elétricas e edifícios nos subúrbios do sul. O vidro do meu quarto de infância tremia tão forte que eu tinha medo de que ele se quebrasse em cima de mim enquanto dormia.
Pensei muito sobre o último desses episódios, a guerra de julho de 2006, quando estive em Beirute no verão, enquanto o conflito entre o Hezbollah e Israel se intensificava. Ao decidir se deveria ficar ou partir, imaginei viver isso de novo, desta vez com três crianças pequenas. Eu aguentaria submetê-las a esses sons? Quando os aviões israelenses começaram a romper a barreira do som em Beirute — eles já vinham fazendo isso há algum tempo no sul —, soubemos que tínhamos que ir.
Os alvos dos ataques com pagers também são contra meu povo, em um sentido mais particular: pertenço à comunidade que vive nos subúrbios do sul de Beirute e no sul do Líbano, de onde o Hezbollah recruta seus membros. Pertenço a ela não tanto porque meus documentos de registro nacional me classificam como “muçulmana xiita”, mas porque cresci dentro de seus rituais, práticas e ideias.
Em 1979, quando se casaram, meus pais mudaram-se para o centro de Beirute, mas visitávamos com frequência avós, tios, tias e parentes nos subúrbios e vilarejos do sul. Nos últimos anos, a rua onde meus pais moram — que já foi lar de sunitas, drusos e armênios — tornou-se predominantemente xiita.
Os xiitas representam cerca de um terço da população do Líbano. O canto específico do mundo xiita no qual cresci incluía tanto os esquerdistas quanto os religiosos. Vários dos meus onze tios e quatro tias se juntaram ao Partido Comunista durante a guerra civil, quando os movimentos de esquerda e nacionalistas árabes eram ativos nos subúrbios do sul.
Os xiitas sentiam-se marginalizados na formação do Estado libanês, liderado pelas elites muçulmano-sunitas e cristãs. Eles também tendiam a ser mais pobres, menos educados e mais isolados do que seus compatriotas. Quando o Hezbollah ganhou destaque após a invasão de Beirute por Israel em 1982 e sua ocupação do sul, muitos xiitas passaram a ver o grupo como provendo o que o Estado não oferecia: segurança contra Israel, assistência social na forma de escolas e hospitais e um senso de dignidade.
O papel do Hezbollah na libertação do sul em 2000, após quinze anos de ocupação formal israelense, foi amplamente celebrado, mas os desacordos lentamente surgiram a respeito da contínua influência militar do grupo. Nos almoços de família, meus parentes discutiam sobre o direito do grupo de portar armas, seu envolvimento na guerra civil síria ao lado de Bashar al-Assad e suas relações com o Irã. A inimizade em relação a Israel, por outro lado, nunca foi tema de debate. A ocupação israelense do sul do Líbano constituiu nossa história recente compartilhada, e a ocupação das terras palestinas parecia uma continuação da história colonial britânica e francesa que moldou nossa região.
O Hezbollah predomina na vila do meu pai, que fica ao sul do rio Litani, logo do outro lado da fronteira com vilarejos do sul, que Israel havia ocupado. Na vila da minha mãe, mais ao norte e oeste, é o partido xiita Amal, fundado pelo clérigo Musa al-Sadr em 1974 como “o Movimento dos Privados”, que comanda e vence nas eleições. O Amal lutou — com o regime sírio — contra o Hezbollah e a Organização para a Libertação da Palestina na Guerra dos Campos nos anos 1980, mas desde então tornou-se aliado do Hezbollah. Seu líder atual, Nabih Berri, ocupou o posto de presidente do Parlamento – a principal posição dos xiitas no Estado – nos últimos trinta 32 anos. Durante nossa visita neste verão, vi num poste de luz perto do prédio onde meus pais moram uma foto de Berri e do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, com a legenda “o par sagrado”. Mas o Amal carece de clareza ideológica, e da disciplina do Hezbollah. Para seus críticos, onde o Hezbollah é autoritário, o Amal é corrupto.
A libertação do sul deu a meus pais segurança para comprar um pequeno pedaço de terra e construir uma casa. Até outubro passado, eles passavam os fins de semana lá, e mais tempo durante as férias de verão quando nós os visitávamos. Eles mostravam aos netos como colher amoras e os apresentavam aos comerciantes locais, que, em nossa última viagem, cumprimentaram as crianças pelo nome. Todos estamos inscritos para votar na vila, até mesmo para as eleições municipais. Quando estava lá no momento certo, votei em pequenos partidos de esquerda, e suspeito que alguns parentes também, embora soubéssemos que o Hezbollah venceria.
Quando penso nos jovens que foram mortos pelos pagers detonados, minha mente se volta para os rostos de alguns que conheci nos últimos anos na vila. Eu não compartilho muitos de seus valores. Eles não apertam minha mão, e alguns desviam o olhar para evitar ver meu cabelo descoberto. Mas as pessoas ao redor deles também não necessariamente compartilham seus engajamentos. Nas famílias que conheço, alguns irmãos são mais religiosos do que outros, alguns pais estão mais cansados do envolvimento militar do que seus filhos, e muitas mães não querem entregar seus filhos por uma causa, por mais que acreditem nela.
O fato de não podermos conhecer os membros do Hezbollah de forma clara não se deve apenas à preocupação do partido com o sigilo. Também é porque seus membros, que carregam pagers, estão inseridos em redes de relações familiares, laços locais e solidariedades políticas. Seus parentes, as pessoas que vivem nas mesmas vilas e bairros, e aqueles cujas vidas se cruzam com as deles, os apoiam sem necessariamente concordar com todas as suas decisões, políticas ou ideias. Um pager que explode em um ambiente cotidiano, arrancando membros e cegando olhos, nunca inflige danos de maneira limitada, tanto porque inevitavelmente afeta civis quanto porque atinge seu alvo em meio ao seu mundo social. Isso espalha medo, mas também reforça solidariedades comunitárias — ou, pelo menos, a convicção de que Israel é o inimigo.
Já passamos por isso antes. A guerra de julho de 2006 foi tida como um momento de dúvidas sobre o Hezbollah entre seus apoiadores, mas também foi um lembrete de que Israel tinha a capacidade e a vontade de causar danos indiscriminados no Líbano.
Quando ouvi as notícias sobre as explosões dos pagers, eu estava buscando passagens para Beirute em dezembro. Para aliviar minha tristeza e culpa por termos encurtado nossa viagem neste verão, prometi voltar em breve: para ver meus filhos brincarem na casa onde cresci, para que eles compartilhem uma refeição com os filhos dos meus primos e amigos, e para ouvi-los falar em árabe na rua. Em minhas conversas com amigos e familiares no Líbano desde então, falamos menos sobre a possibilidade de irmos e mais sobre a possibilidade de que eles precisem partir.
Bifo Berardi: A psicopatia de Israel
Barbárie sofrida pelos judeus nas mãos dos nazistas exigiu compensação psíquica, diz pensador. Tornaram-se, então, carcereiros e genocidas do povo palestino. Agora, pagam o preço: espiral de ódio, cisão em seu próprio país e guerra sem fim
Por Franco “Bifo” Berardi, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
O documentário Born in Gaza de Hernán Zin pode ser encontrado na Netflix e na Filmin. Se me permitem, recomendo a todos que assistam: conta a história de dez crianças entre seis e quatorze anos, durante a guerra de 2014, uma das muitas guerras que Israel desencadeou contra os palestinos e os palestinos desencadearam contra Israel.
Estas crianças falam dos bombardeios, das feridas que receberam, do terror que experimentam todos os dias, da fome que sofrem; dizem que a vida que vivem não é vida, que morrer seria melhor. É provável que estas pessoas, que eram crianças em 2014, sejam agora militantes do Hamas e tenham participado na orgia de terror de 7 de outubro.
Se eu estivesse no seu lugar em vez de ser eu, um velho intelectual que vive confortavelmente na sua casa numa cidade italiana onde neste momento não há bombardeios, se eu fosse um daqueles que foram crianças sob as bombas de 2014, hoje eu seria um terrorista que só quer matar um israelense. Eu ficaria horrorizado?
É claro que ficaria horrorizado, mas o meu pacifismo silencioso é simplesmente um privilégio de que desfruto porque não passei a minha infância em Gaza, ou em lugares como Gaza.
Portanto, acredito que Israel só tem uma forma de erradicar o Hamas: matar todos os palestinos que vivem em Gaza, nos territórios ocupados e também em outros lugares: todos, todos, todos, especialmente as crianças.
Afinal, é isso que eles estão fazendo, certo? Chama-se genocídio, mas é completamente racional.
Os governos europeus, muito racionais, apoiam o genocídio; Macron disse que gostaria de participar no genocídio com uma coligação.
Scholz disse que desde que a Alemanha cometeu genocídio no passado, agora tem o dever de apoiar aqueles que cometem genocídio hoje.
Será esta a única forma de erradicar o terrorismo?
Talvez houvesse outra forma de erradicá-lo: paz incondicional, renúncia à vitória, amizade, deserção, aliança entre as vítimas: as vítimas de Hitler e as vítimas de Herodes-Netanyahu.
Mas as vítimas, ao que parece, apenas aspiram a tornar-se algozes, e muitas vezes conseguem. Portanto, a espiral não irá parar e não sabemos qual vórtice ela pretende alimentar.
Há algo de monstruoso nas mentes dos palestinos que viveram em terror. E há algo igualmente monstruoso nas mentes dos israelitas.
Mas como julgar o comportamento dos povos, como julgar as explosões de violência que se multiplicam na vida coletiva?
Podemos julgar o comportamento dos militantes do Hamas ou dos israelenses em termos éticos ou políticos?
A razão ética está fora do jogo, porque a ética está totalmente apagada do panorama coletivo do nosso tempo.
A ética é a valorização da ação do ponto de vista do bem do outro como continuação de si mesmo. Mas nas condições de guerra generalizada em que se move a sociedade contemporânea, o outro é apenas o inimigo: este é o efeito da infecção liberal-competitiva e da infecção nacionalista: a defesa do território físico e imaginário significa guerra.
A ética está morta assim como a piedade está morta. Não pode haver ética no comportamento dos jovens que cresceram na prisão de Gaza, porque as suas mentes não podem considerar o outro (o soldado israelense que espera por você com uma arma em punho em cada encruzilhada), exceto como um carcereiro, um torturador, um inimigo, mortal. Cada fragmento (pessoas, grupo étnico, máfia, organização, partido, família, indivíduo) luta desesperadamente pela sua própria sobrevivência, como lobos lutando contra lobos.
Tal como a razão ética, a razão política deixa de ser relevante numa situação em que a decisão estratégica é substituída por microdecisões de sobrevivência imediata.
Israel reage à violência brutal do Hamas de uma forma que pode ou não ser militarmente eficaz. Mas certamente não é politicamente eficaz.
O grupo governante de Israel é um grupo de mafiosos corruptos que há anos dão espetáculo com o seu cinismo e oportunismo. Agora encontram-se perante uma situação que nem sequer imaginavam e que ultrapassa os seus poderes de compreensão política.
Israel perdeu a cabeça. Tudo no comportamento dos israelenses mostra que está ocorrendo uma crise psicótica, que irá prejudicar gravemente os palestinos, mas também irá prejudicar gravemente os israelitas.
Do ponto de vista ético, Israel há muito se esqueceu, desde o início da sua existência, que o outro tem a mesma humanidade que você, tem a mesma sensibilidade que você e, naturalmente, tem os mesmos direitos que você.
Mas também do ponto de vista político, os israelenses estão tomando medidas que se revelarão terrivelmente contraproducentes para eles.
Li as declarações dos políticos e soldados que governam Israel: falam de animais humanos que devem ser exterminados, falam do corte de eletricidade, combustível, comida e água aos habitantes de Gaza (dois milhões e meio). Eles não apenas falam sobre isso, mas fazem.
Como eles podem? Não há explicação ética ou política. A única explicação para seu comportamento é a psicopatia, o sofrimento psíquico, o desejo de sangue, o horror, a morte.
Portanto, é necessário explicar esta guerra em termos de psicopatogênese, como efeito da incapacidade das vítimas de curar a sua dor.
Há já algum tempo que estou convencido de que o único método cognitivo capaz de compreender a cadeia de violência que se desenvolve no Oriente Médio, e em grande parte do mundo, é o da psicanálise, o da psicopatogenealogia.
O que está acontecendo agora no Oriente Médio nada mais é do que o último elo de uma cadeia que começa com a Primeira Guerra Mundial, a derrota dos alemães e o castigo infligido ao povo alemão pelos franceses e ingleses no Congresso de Versalhes em 1919. A opressão e a humilhação levaram o povo alemão a procurar vingança: esse desejo de vingança materializou-se em Adolf Hitler. Os judeus foram a vítima escolhida, acusados sem qualquer razão de terem causado a derrota de 1918.
A perseguição e extermínio dos judeus nos anos da Segunda Guerra Mundial causou um sofrimento imenso e duradouro que buscou alívio na violência e na vingança contra um povo que nada teve a ver com o Holocausto, mas que era fraco o suficiente para se tornar vítima da vítima.
A humilhação sofrida nas mãos dos nazistas exigiu uma compensação psíquica, e esta compensação é a perseguição e o extermínio do povo palestino.
Acredito que Israel não irá se recuperar desta terrível experiência: o povo de Israel já estava irreparavelmente dividido, Netanyahu será responsabilizado pela divisão causada e pela falta de preparação que se seguiu. Mas não será suficiente, porque a direita abertamente racista de Israel está destinada a tornar-se mais forte neste tsunami de ódio.
Poderemos pensar que mesmo no caso de uma vitória militar israelense após dezenas de milhares de mortes palestinas e israelenses, a dialética política poderá continuar no Estado de Israel?
Acredito que Israel está caminhando para a desintegração. Quantos israelenses quererão ficar naquele deserto, depois do que está acontecendo e do que irá acontecer? Acredito que só permanecerá quem tem armas, só quem sabe matar e quer matar. Foi agora desencadeado um vórtice de ódio contra o Hamas, amanhã surgirá um sentimento de culpa por terem se tornado autores de um genocídio certificado.
A política não será capaz de governar ou compreender este vórtice.
Só a visão clínica pode entender, mas não acredito que possa curar. Estamos diante de uma psicose massiva com um poder de contágio muito elevado.
A primeira coisa que devemos fazer é evitar o contágio, evitar acabar como os políticos israelenses que gritam frases de bêbados para acalmar a ansiedade.
Mas também precisamos de produzir uma vacina cultural e psíquica contra o contágio, e esta tarefa que a psicanálise não conseguiu realizar no século passado é a tarefa que temos diante de nós, se não for tarde demais.
O presidente norte-americano Joe Biden aprovou em segredo uma nova estratégia de dissuasão nuclear que prepara os EUA para enfrentar a crescente ameaça representada pela China; e, em segundo plano, por Rússia e Coreia do Norte. A informação foi revelada pelo jornal The New York Times (NYT) na terça-feira (20).
O documento, redigido em março deste ano, destaca o rápido crescimento do arsenal nuclear da China, que deverá igualar o tamanho e a diversidade dos estoques de EUA e Rússia na próxima década. Além disso, cita a ameaça do presidente russo Vladimir Putin de usar armas nucleares na guerra da Ucrânia.
Atualizada a cada quatro anos ou mais, a estratégia de dissuasão nuclear é altamente confidencial, com apenas algumas cópias impressas distribuídas a oficiais de segurança nacional e comandantes do Pentágono. Não são feitas cópias eletrônicas do documento.
Funcionários do governo Biden já haviam indicado essa mudança anteriormente. Em junho, Pranay Vaddi, diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional, mencionou em uma conferência de controle de armas que, diante das “novas realidades de uma era nuclear”, Biden havia ampliado a política para enfrentar as ameaças desses países.
Uma pesquisa do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo revelou que, em janeiro, a China tinha cerca de 500 ogivas nucleares, um aumento em relação às 410 de janeiro de 2023. Tanto os EUA quanto a Rússia possuem mais de cinco mil ogivas cada, mas acredita-se que o arsenal da China esteja crescendo a uma taxa muito mais rápida que o de qualquer outro país.
O mesmo estudo projetou que o número de mísseis balísticos intercontinentais da China, atualmente cerca de 238, pode superar os 800 dos EUA e os 1.244 da Rússia na próxima década. Esses números preocupam Washington a ponto de a estratégia de dissuasão nuclear ter sido alterada.
Vaddi também revelou que Washington estava avaliando a expansão de seu arsenal para conter as capacidades ofensivas de seus adversários. Isso representaria uma mudança significativa em relação à era pós-Guerra Fria, quando os EUA iniciaram esforços diplomáticos para reduzir os estoques nucleares globais.
“Rússia, China e Coreia do Norte estão ampliando e diversificando seus arsenais nucleares a uma velocidade impressionante, demonstrando pouco ou nenhum interesse pelo controle de armas”, afirmou o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional.
Em uma breve declaração após a publicação da reportagem, o porta-voz da Casa Branca Sean Savett declarou que, embora “o texto específico da orientação seja confidencial, sua existência não é secreta”. Ele afirmou que a orientação emitida no início deste ano não é uma resposta a qualquer país, entidade ou ameaça específica.
No passado, era improvável que adversários dos EUA representassem uma ameaça nuclear real ao país. Essa percepção mudou devido à aliança entre Rússia e China e ao suporte de Coreia do Norte e Irã a Moscou na guerra da Ucrânia.
Atualmente, russos e chineses realizam exercícios militares conjuntos frequentes, e a inteligência dos EUA investiga se o Kremlin está ajudando nos programas de mísseis de Pyongyang e Teerã.
Os EUA e a China começaram a negociar informalmente sobre controle de armas nucleares em março, após cinco anos sem conversas nesse sentido. No entanto, os debates foram suspensos em julho devido às vendas de armas dos EUA para Taiwan. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China Lin Jian afirmou que essas vendas prejudicaram a continuidade das discussões.
Segundo o NYT, o novo documento mostra que, a partir de 20 de janeiro, o futuro presidente dos EUA enfrentará um cenário nuclear muito mais instável que o de três anos atrás. Putin fez várias ameaças de usar armas nucleares contra a Ucrânia, incluindo durante uma crise em outubro de 2022. À época, Biden e seus assessores temiam que a chance de um ataque nuclear era de 50% ou mais, com base em conversas interceptadas entre altos comandantes russos.
O último dia da vida de
Benjamin Netanyahu
“Líder terrorista sucumbe em seu bunker, após provocar a morte de milhares de pessoas – especialmente mulheres e crianças. O Irã diz que ataque foi um ato de defesa”. Essa paródia provoca: e se a mídia ocidental tratasse a morte de Nasrallah sem antolhos sionistas?
Por Jonathan Cook, no blog de Rafael Poch | Tradução: Rôney Rodrigues
Uma paródia de Jonathan Cook sobre o jornalismo que sofremos.
Tel Aviv (30 de setembro) – Benjamin Netanyahu, homem forte de longa data de Israel, foi morto na segunda-feira em um ataque aéreo na maior cidade de Israel, por meio de poderosas bombas destruidoras de bunkers.
O grupo libanês Hezbollah confirmou que o ataque ocorreu em retaliação a uma série de atentados terroristas perpetrados por Israel nas últimas semanas.
Segundo informações, o Hezbollah teria rastreado Netanyahu até uma sala de guerra subterrânea no prédio do Ministério da Defesa de Israel, no centro de Tel Aviv. A partir deste local, ele dirigiu ataques que mataram centenas de pessoas no Líbano nas últimas duas semanas, incluindo muitas mulheres e crianças.
Acredita-se que alguns generais tenham morrido na explosão, juntamente com o polêmico primeiro-ministro israelense.
Analistas qualificaram a operação, cuidadosamente planejada do Hezbollah, de uma medida ousada que provavelmente representaria um grave revés militar para Israel.
Os serviços de emergência se esforçaram para lidar com seis grandes explosões que abalaram o ministério de HaKirya e vários edifícios vizinhos na segunda-feira.
O centro comercial Azrieli, perto de HaKirya, foi completamente destruído. Cerca de 284 pessoas morreram, de acordo com os primeiros relatórios do Ministério da Saúde israelense, controlado pelos sionistas. As agências de notícias não puderam verificar os números de forma independente.
O momento do ataque, no meio da manhã, significa que poderia haver centenas de clientes do centro comercial presos sob os escombros. O número de vítimas mortais pode levar dias, ou até semanas, para ser conhecido.
Especialistas em Oriente Médio temem que o ataque do Hezbollah aumente a tensão na região e conduza a uma escalada dos combates.
Uma série de movimentos letais do Hezbollah nos últimos dias já tinha semeado confusão entre os altos escalões das FDI israelenses, um representante dos EUA designado como organização terrorista pelos governos de todo o Oriente Médio.
Numa das operações mais sofisticadas, acredita-se que o Hezbollah tenha estado por trás de centenas de carros usados por soldados das FDI. Dezenas deles foram mortos e milhares ficaram feridos enquanto circulavam pelas estradas israelenses. Transeuntes e familiares também morreram.
O Hezbollah aparentemente conseguiu colocar os detonadores dentro dos motores dos automóveis depois de se infiltrar nas cadeias de abastecimento internacionais. Os carros foram importados de Taiwan, mas vieram de uma empresa obscura que operava no Kuwait.
Bezalel Smotrich, ministro das Finanças de Israel e líder do partido fascista Sionista Religioso, prometeu infligir uma “vingança bíblica” ao Líbano.
Smotrich é um dos principais candidatos para substituir Netanyahu.
Autoridades de Beirute afirmaram que o Hezbollah continuará seus ataques contra Israel até que as FDI sejam “completamente eliminadas”.
“As FDI têm levado a cabo ataques terroristas há décadas, incluindo o que o Tribunal Internacional de Justiça [CIJ] declarou como um genocídio ‘plausível’ em Gaza. Israel é o eixo central de uma rede terrorista global financiada pelos EUA”, disse um porta-voz.
O funcionário acrescentou: “Instituições como as Nações Unidas falharam repetidamente em responsabilizar Israel de forma significativa pela ameaça que representa para a região. A paz só pode ser garantida impondo um preço elevado aos líderes israelenses. Devemos escalar para diminuir a escalada.”
O Irã afirmou que o ataque a Tel Aviv foi uma “medida de justiça”, dado o número de civis em todo o Oriente Médio que Netanyahu foi responsável pela morte.
O presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, declarou que tem estado “trabalhando incansavelmente” para um cessar-fogo, mas acrescentou que Israel e os Estados Unidos estão obstruindo os esforços para chegar a um acordo.
Na semana passada, Teerã aprovou a entrega de mais 8,7 mil milhões de dólares em armas ao Hezbollah, dizendo que ele tem o direito de se defender do terrorismo israelense.
Por sua vez, as autoridades iranianas acusaram os Estados Unidos de contrabandear armas para as FDI e de ajudá-las a construir uma rede formidável de instalações de lançamento de mísseis e esquadrões de aviões de combate.
Os aviões de guerra israelenses têm violado o espaço aéreo libanês com sobrevoos regulares durante décadas, o que os especialistas consideram crimes de guerra.
O Hezbollah afirmou repetidamente que só será possível pôr fim ao conflito quando Israel obedecer ao direito internacional e se retirar dos territórios palestinos que ocupa ilegalmente há mais de meio século.
Além disso, o Hezbollah declarou que Israel deve parar o bombardeamento do sul do Líbano, que forçou cerca de 100.000 libaneses a abandonarem as suas casas no ano passado.
Numa decisão proferida no início deste ano, os juízes do TIJ concluíram que a ocupação israelense dos territórios palestinos foi um ato ilegal de agressão contra o povo palestino que deve terminar imediatamente. Ele também julgou Israel por genocídio em Gaza.
Antes de sua morte, Netanyahu foi acusado de corrupção e fraude. No entanto, dados os sistemas jurídicos e políticos profundamente enviezados de Israel, ele conseguiu permanecer no poder e escapar a um julgamento justo durante anos.
O ataque contra a ONG World Central Kitchen
Na segunda-feira 1º, sete funcionários da ONG World Central Kitchen foram assassinados por um drone Hermes 450 operado pelas forças armadas de Israel, apesar de estarem em um comboio de veículos identificados em uma zona de desconflito e de terem coordenado seus movimentos com as forças israelenses.
Em uma intervenção na CNN, o jornalista israelense Barak Ravid lembrou que episódios como esse ocorrem rotineiramente na Faixa de Gaza, pois as forças armadas de Israel estão se provando uma corporação totalmente indisciplinada.
Na Al-Jazeera, o analista Omar Ashour afirma, por outro lado, que não se trata exatamente de uma situação de indisciplina, mas de um quadro derivado da doutrina militar israelense, que concede enorme autonomia para os comandantes que estão na linha de frente.
Na terça-feira 2, fontes militares informaram ao Haaretz que o ataque aconteceu porque “as unidades no terreno decidem lançar ataques sem qualquer preparação, em casos que nada têm a ver com a proteção das nossas forças”. Ainda segundo o jornal, um homem armado havia sido identificado no comboio, mas ele já havia deixado os veículos quando o ataque ocorreu.
Em uma outra reportagem publicada no mesmo dia, o jornal refuta a tese do Ministério da Defesa de Israel de que o ataque ocorreu por um problema de coordenação com a WCK. Uma fonte do ramo de inteligência afirmou ao repórter que a liderança israelense “sabe exatamente qual foi a causa do ataque – em Gaza, cada um faz o que quer”.
O episódio agravou a situação já desesperadora na Faixa de Gaza. Na quarta-feira 3, o site The New Arab mostrou que, para muitos palestinos, o ataque ao comboio da WCK foi uma tentativa israelense de agravar ainda mais o cenário da fome na Faixa de Gaza.
Também na quarta-feira 3, a ONG Oxfam publicou um levantamento estimando que os palestinos no norte de Gaza estão sobrevivendo com um consumo médio diário de apenas 245 calorias, 12% do recomendado como valor mínimo. A organização acusa Israel de estar “fazendo uma escolha deliberada de matar civis de fome”.
Na quinta-feira 4, o jornal The Washington Post publicou uma reportagem detalhando mais casos de palestinos que sofrem com a crise de fome criada por Israel e também os efeitos de médio e longo prazo sobre quem passa fome, em especial as crianças.
Grande produtor mundial de mineiras cruciais ao processo de transição energética, o Brasil integrou em setembro um painel da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o tema ao lado de outros 23 países, mais União Africana (UA), União Europeia (UE) e representantes da sociedade civil e da indústria de mineração. No evento foi debatida a importância dos minerais para o processo de geração de energia limpa, uma questão urgente ante às mudanças climáticas.
“A janela para limitar o aumento da temperatura global a 1,5º C acima dos níveis pré-industriais e atingir as metas do Acordo de Paris está se fechando”, diz a ONU no relatório fruto do painel. “Ainda há tempo, a humanidade com um futuro compartilhado deve agir decisivamente para acelerar uma transição energética global.”
O Brasil surge como protagonista no debate porque, de acordo com artigo publicado pelo Jornal da USP (Universidade de São Paulo), possui a segunda maior reserva global de elementos de terras raras (ETRs), que compreendem 17 metais essenciais à fabricação de produtos de alta tecnologia, usados para fazer os ímãs utilizados tanto para fins comerciais quanto de uso militar.
Esses mineiras são protagonistas no setor de energia limpa, com os ímãs de terras raras usados em turbinas eólicas, motores de veículos elétricos e dispositivos eletrônicos diversos. Atualmente, porém, mais de 90% desses componentes são importados da China, o que leva o Brasil a buscar alternativas estratégicas.
Embora tenha a segunda maior reserva do mundo, atrás apenas da China e rivalizando com o Vietnã, o Brasil aparece apenas na décima posição do ranking mundial de produtores de ETRs segundo o site Statista. A primeira mina brasileira, em Goiás, começou a operar comercialmente neste ano, através da empresa Mineração Serra Verde, enquanto a produção de ímãs por aqui está apenas engatinhando.
“O processo de produção de ETRs é mais complexo que o de outras matérias-primas. Devido à falta de recursos, existe o risco de uma grande escassez destes elementos, que pode atrasar a substituição de combustíveis fósseis em nível mundial. Atualmente, a China responde por aproximadamente 91% da produção global de terras raras refinadas”, diz a Serra Verde.
Diante de tal cenário, o Brasil aproveitou o painel da ONU para cobrar mais espaço no setor, defendendo que a transição energética contribua para reduzir “desigualdades globais, permitindo que países em desenvolvimento deixem de servir como meros exportadores de matérias-primas e possam agregar valor aos minerais, gerando emprego e renda localmente”. Destacou, ainda, a “importância do acesso a mercados consumidores e a financiamentos para projetos nesses países”.
A ONU concordou com a reivindicação e afirmou que países com grandes reservas de mineiras de minerais críticos à transição energética poderiam, “com um planejamento cuidadoso e orientado para a ação, ter uma oportunidade de transformar economias, criar empregos verdes e promover o desenvolvimento local, regional e global sustentável, especialmente para países e comunidades em desenvolvimento”.
Hoje, segundo o relatório produzido após o painel, o cenário é distinto. O documento afirma que a “atividade econômica de enclave” registrada atualmente no setor gera “poucas ligações de longo prazo com economias locais”, que assim perdem uma valiosa oportunidade de utilizar esses minerais para uma transformação econômica maior.
“Não podemos repetir os erros do passado com uma exploração sistemática de países em desenvolvimento reduzida à produção de matérias-primas básicas”, disse o secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, idealizador do painel. “A corrida para o zero líquido não pode atropelar os pobres. A revolução das energias renováveis está acontecendo. Mas devemos guiá-la em direção à justiça.”
Teerã está conduzindo negociações secretas entre Moscou e os rebeldes Houthis para transferir mísseis antinavio avançados ao exército insurgente iemenita apoiado pelo Irã, segundo a agência Reuters na terça-feira (24).
De acordo com a reportagem, a Rússia ainda não tomou uma decisão sobre o envio dos mísseis de cruzeiro P-800 Oniks, também conhecidos como Yakhont. Especialistas afirmam que esses mísseis permitiriam ao grupo atingir navios comerciais no Mar Vermelho com mais precisão, aumentando a ameaça aos navios de guerra americanos e europeus que protegem as rotas comerciais.
Duas autoridades regionais familiarizadas com as negociações informaram que houthis e russos se reuniram em Teerã pelo menos duas vezes este ano, e que as discussões para fornecer dezenas de mísseis com alcance de aproximadamente 300 km estão em andamento. Novos encontros no Irã estão previstos para as próximas semanas.
A Rússia já entregou o míssil Yakhont ao Hezbollah, apoiado pelo Irã. Segundo uma das fontes, as negociações começaram durante o governo do presidente iraniano Ebrahim Raisi, que morreu em um acidente de helicóptero em maio.
“Há negociações em andamento entre a Rússia e os Houthis para a transferência de mísseis antinavio supersônicos Yakhont“, afirmou uma fonte de inteligência ocidental. “Os iranianos estão atuando como intermediários, mas preferem não deixar sua marca direta nessas negociações”.
O Wall Street Journal informou em julho que a Rússia estava avaliando a transferência de armas para os Houthis, mas é a primeira vez que se relata que o Irã está atuando como intermediário.
Os Houthis começaram a atacar navios comerciais em novembro de 2023, argumentando que servem a Israel e declarando apoio aos palestinos de Gaza durante o conflito, que já está perto de completar um ano. Com o tempo, porém, mesmo navios sem relação com Israel passaram a ser atacados.
A ofensiva rebelde levou a uma ação retaliatória dos EUA e do Reino Unido, que formaram uma coalizão naval para assegurar a navegação livre e evitar um choque econômico ainda maior. As rotas visadas pelos Houthis recebem cerca de 15% do comércio internacional, e os ataques forçaram muitas companhias a mudarem o trajeto de suas embarcações, encarecendo o frete mundial.
Tortura é ‘uma prática comum e aceitável’ na guerra da Ucrânia, dizem investigadores da ONU
As autoridades russas estão usando tortura “com uma sensação de impunidade” na guerra em curso na Ucrânia, ouviu o Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra na segunda-feira (23).
Em uma atualização oral aos membros, Erik Mose, presidente da Comissão de Inquérito sobre a Ucrânia, disse que documentou novos casos de tortura cometidos por autoridades russas contra civis e prisioneiros de guerra em áreas ocupadas da Ucrânia e na Rússia.
“Reunimos evidências de violência sexual usada como tortura, principalmente contra vítimas do sexo masculino detidas, e de estupros contra mulheres em aldeias sob controle russo”, disse ele.
“A ampla distribuição geográfica de locais onde a tortura foi cometida e a prevalência de padrões compartilhados demonstram que a tortura tem sido usada como uma prática comum e aceitável pelas autoridades russas, com uma sensação de impunidade ”, acrescentou.
Consistência e coordenação
A Comissão de três membros foi criada cerca de uma semana após o início da invasão russa em larga escala da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Ela já havia destacado como a tortura cometida pelas autoridades russas tem sido generalizada e sistemática.
Mose disse que investigações recentes mostram que autoridades russas cometeram tortura em regiões ucranianas sob controle russo, reforçando assim a descoberta de que a tortura tem sido generalizada, enquanto elementos comuns adicionais sustentam que ela tem sido sistemática.
“Um elemento é a consistência das práticas em centros de detenção onde detidos da Ucrânia foram mantidos na Federação Russa, e a replicação dessas práticas em vários grandes centros penitenciários em áreas ocupadas da Ucrânia”, disse ele.
“Outro elemento comum que emerge das evidências aponta para um uso coordenado de pessoal de serviços específicos da Federação Russa que está envolvido em tortura em todas as instalações de detenção investigadas pela Comissão. Outra característica comum é o uso recorrente de violência sexual como forma de tortura em quase todos esses centros de detenção.”
Tratamento brutal tolerado
A Comissão também citou os depoimentos de ex-detentos que disseram que funcionários de prisões na Federação Russa se referiram a ordens para infligir tratamento brutal. Além disso, em algumas instalações, autoridades de alto escalão ordenaram, toleraram ou não tomaram nenhuma ação para impedir isso.
“Por exemplo, em um centro de detenção em territórios ocupados da Ucrânia, uma testemunha descreveu a chegada de um funcionário penitenciário da Federação Russa que se apresentou aos detidos, afirmando: ‘Eu quebrei todo mundo e farei o mesmo com vocês’”, disse Mose.
Ele observou que “um fator perturbador” relatado em muitas unidades de detenção foi a falta de assistência médica adequada. “ Em uma unidade, até mesmo médicos penitenciários participaram da tortura ”, acrescentou.
Explosão na prisão de Olenivka
Mose disse que uma ilustração flagrante foi fornecida por meio de depoimentos convincentes de ex-detentos na Colônia Correcional de Volnovakha, na Ucrânia, conhecida como Olenivka, onde uma explosão em 29 de julho de 2022 levou à morte de muitos prisioneiros de guerra ucranianos.
“De acordo com eles, nenhum suporte médico imediato foi fornecido a dezenas de outros que sofreram ferimentos com risco de vida. Médicos militares ucranianos, detidos na colônia, foram os únicos que tentaram prestar primeiros socorros naquela noite”, disse ele.
“Eles contaram que ajudaram outros soldados, no escuro e sem equipamento médico vital, usando a pequena quantidade de suprimentos restantes em seus próprios kits de primeiros socorros e lençóis para curativos. Eles viram muitos morrerem naquela noite, enquanto a liderança da colônia de Olenivka ficou parada e assistiu.”
Vítimas pedem justiça
Mose disse que essas violações deixaram muitas vítimas com danos físicos e traumas graves ou irreparáveis, com profundos impactos psicológicos para elas e suas famílias.
“Muitas vítimas expressaram uma necessidade vital de que a justiça seja feita ”, ele disse. “A Comissão reitera a importância de investigações contínuas, identificação de perpetradores e responsabilização, bem como apoio abrangente às vítimas.”
Ataques a hospitais e supermercados
A Comissão também continuou documentando ataques com armas explosivas que atingiram objetos civis em áreas povoadas, com consequências devastadoras.
Ele investigou ataques que atingiram instituições médicas, objetos culturais, edifícios residenciais e supermercados em territórios sob controle do governo ucraniano.
Ele disse que as repetidas ondas de ataques em larga escala da Rússia à infraestrutura energética da Ucrânia resultaram em cortes de energia, às vezes afetando milhões de pessoas, sendo idosos e pessoas com dificuldades particularmente afetados.
As quedas de energia também causaram interrupções na educação online, resultando em maiores perdas para crianças deslocadas e crianças com deficiência, que têm maior probabilidade de se matricular no ensino remoto.
Comissão de Inquérito
A Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre a Ucrânia foi criada em 4 de março de 2022 para investigar todas as supostas violações e abusos de direitos humanos, violações do direito internacional humanitário e crimes relacionados no contexto da agressão da Rússia contra a Ucrânia.
A Comissão recebe seu mandato do Conselho de Direitos Humanos e seus membros não são funcionários da ONU e não recebem pagamento por seu trabalho.
Fonte Portal Membro Outras Palavras
Rússia contesta presença da Otan no Ártico e diz estar pronta para se defender ‘militarmente’
A tensão entre a Rússia e o Ocidente vem crescendo gradualmente no Ártico. Na sexta-feira (20), o ministro das Relações Exteriores russo Sergei Lavrov culpou a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pela situação e sugeriu que um confronto na região não pode ser descartado.
“Vemos a Otan intensificando exercícios relacionados a possíveis crises no Ártico. Nosso país está totalmente pronto para defender seus interesses militarmente, politicamente e do ponto de vista das tecnologias de defesa”, disse Lavrov, segundo a agência estatal russa Tass.
A região, no norte do planeta, tem áreas pertencentes a sete nações da Otan, além da própria Rússia: Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Canadá, Estados Unidos e Islândia.
A região movimenta também interesses econômicos, e o Departamento de Defesa dos EUA chegou a manifestar em julho preocupação com a presença crescente de russos e também de chineses. A parceria entre Moscou e Beijing está focada sobretudo na exploração de novas rotas comerciais, embora tenha fins também militares.
“Cada vez mais, a RPC (República Popular da China) e a Rússia estão colaborando no Ártico por meio de múltiplos instrumentos de poder nacional”, disse o Pentágono na ocasião. “Embora ainda existam áreas significativas de desacordo entre a RPC e a Rússia, seu crescente alinhamento na região é preocupante, e o Pentágono continua monitorando essa cooperação.”
Para Moscou, as rotas árticas se tornaram uma importante alternativa para entrega de petróleo a Beijing em meio às sanções ocidentais impostas à Rússia em função da guerra da Ucrânia. Já a China consegue diversificar suas rotas de navegação, hoje concentradas no Oceano Índico.
Atualmente, o governo chinês depende excessivamente do Estreito de Malaca, que liga os oceanos Índico e Pacífico e por onde passa cerca de 40% do comércio mundial, bem como 80% de todo petróleo e 11% de todo gás importados pela China. Trata-se de uma importante vulnerabilidade estratégica apontada por especialistas em segurança.
Lavrov, que classificou Beijing como ‘parceiro estratégico”, legitimou os interesses chineses no Ártico e afirmou que a atuação militar ocidental não se restringe a Washington, citando ainda a Noruega como um incômodo. Segundo ele, a aliança militar transatlântica “também tem seus próprios interesses, devido à localização geográfica”, mas não tem o direito de tratar o Ártico como seu território.
Em julho, Moscou disse que enviou jatos militares para evitar que bombardeiros norte-americanos cruzassem a fronteira russa sobre o Mar de Barents. Os militares dos EUA minimizaram a situação e alegaram que frequentemente realizam voos sobre águas internacionais. As operações, segundo eles, ocorrem em espaço aéreo neutro e estão em conformidade com o direito internacional.
Turquia diz que ONU deveria recomendar uso da força para barrar invasão de Israel ao Líbano
Preisdente turco também pediu boicote a Israel; número de mortos em ataques israelenses nas últimas 24h chegou a 136
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, disse que a Assembleia Geral da ONU deveria "recomendar o uso da força" se o Conselho de Segurança das Nações Unidas não conseguir impedir os ataques de Israel em Gaza e no Líbano.
“A Assembleia Geral da ONU deve implementar rapidamente a autoridade para recomendar o uso da força, como fez com a resolução Uniting for Peace de 1950, se o Conselho de Segurança não demonstrar a vontade necessária”, disse Erdogan após uma reunião do gabinete em Ancara.
A resolução citada pelo presidente turco foi criada no século passado como uma manobra ocidental para driblar vetos da antiga União Soviética a operações durante a Guerra da Coreia (1950-1953). Ela prevê que, em caso de divergência no Conselho de Segurança, "a Assembleia Geral deverá considerar o assunto imediatamente [...] para medidas coletivas, incluindo no caso de violação da paz ou ato de agressão o uso de força armada quando necessário".
Erdogan também pediu aos países muçulmanos que tomem medidas econômicas, diplomáticas e políticas contra Israel para pressioná-lo a aceitar um cessar-fogo, e acrescentou que os ataques de Israel também os atingiriam se não fossem interrompidos logo.
As Forças Armadas israelenses exigiram na noite desta segunda-feira (30) que os moradores de três bairros do subúrbio sul de Beirute, capital do Líbano, deixem suas casas, indicado que os ataques seguirão atingindo a cidade.
Já o Exército libanês ordenou um reposicionamento de suas tropas no sul do país no momento em que Israel instaurou uma "zona militar fechada" em localidades fronteiriças e ameaça uma invasão terrestre ao território.
Pelo menos 45 pessoas foram mortas em Ain al-Delb, no Líbano, ao sul da capital Beirute, aumentando o número de mortos em ataques israelenses nas últimas 24 horas para 136, de acordo com as autoridades libanesas.
Segundo a rede local Al Manar, afiliada ao Hezbollah, "disparos sionistas de artilharia" foram produzidos perto das localidades fronteiriças de Wazzani, Vale Khiam, Alma al Shaab e Naqura, e a agência nacional de notícias libanesa relatou "tiros de artilharia significativos contra Wazzani".
Estas aldeias estão localizadas em frente a cidades israelenses declaradas "zona militar fechada" pelo Exército de Israel. Horas antes dos relatos de disparos, o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, havia insinuado que poderiam ser realizadas operações terrestres contra o Hezbollah.
Gallant, disse que a "próxima fase da guerra contra o Hezbollah começará em breve e permitirá que os moradores do norte retornem para casa".
Ataques contra o Líbano
O Exército israelense iniciou na última semana uma campanha de bombardeios em larga escala contra o Hezbollah no Líbano, após um ano de confrontos na fronteira, com o objetivo de enfraquecer o grupo libanês, aliado do Hamas e organizações palestinas que resistem em Gaza.
"Não queremos presenciar nenhum tipo de invasão terrestre", declarou Stephane Dujarric, porta-voz de Antonio Guterres que, por sua vez, assinalou que os capacetes azuis no Líbano tiveram que suspender suas patrulhas devido à "intensidade" dos combates.
Irã descarta enviar tropas
O Irã, um aliado essencial do Hezbollah, descartou a possibilidade de enviar combatentes ao Líbano e para Gaza. "Não é necessário enviar forças auxiliares ou voluntárias iranianos", declarou o porta-voz da diplomacia do país, Naser Kanani, antes de acrescentar que o Líbano e os combatentes nos territórios palestinos "têm a capacidade e o poder necessários para enfrentar a agressão do regime sionista".
A Arábia Saudita, ator importante na região, pediu respeito à "soberania e integridade territorial" do país e expressou "grande preocupação" com a intensificação do conflito entre Hezbollah e Israel, enquanto a ofensiva israelense prossegue na Faixa de Gaza.
O Hamas anunciou nesta segunda-feira que seu líder no Líbano morreu em um ataque aéreo no sul do país, onde a imprensa estatal relatou um bombardeio contra um campo de refugiados palestinos. "Fatah Sharif Abu al Amine, o líder do Hamas no Líbano e membro da direção do movimento no exterior, morreu em um bombardeio contra sua casa no campo de Al Bass, sul do Líbano", afirma um comunicado do movimento. A organização informou que ele morreu ao lado da esposa, do filho e da filha no que chama de "assassinato terrorista e criminoso".
Mais de mil mortes e 100 mil deslocados
Mais de mil pessoas morreram no Líbano desde meados de setembro na ofensiva de Israel, segundo as autoridades. Além disso, o primeiro-ministro libanês Nayib Mikati afirmou que o país tem quase um milhão de deslocados, o que representaria o maior deslocamento populacional da história da nação.
A ONU afirmou que quase 100 mil pessoas – cidadãos libaneses e sírios – fugiram do Líbano para a Síria devido aos bombardeios. Na madrugada desta segunda-feira, o Exército israelense anunciou que atacou dezenas de alvos do Hezbollah na região do Bekaa, leste do Líbano e conseguiu "interceptar um projétil aéreo que entrou no território do país procedente do Líbano".
O Ministério da Saúde libanês afirmou que seis socorristas do Comitê Islâmico da Saúde, vinculado ao Hezbollah, morreram em um ataque israelense no Vale do Bekaa.
*Com Al Jazeera e AFP
Edição: Leandro Melito
Terror no Líbano
Israel amplia, com 500 mortes, a guerra que não é capaz de vencer, mas que pode incendiar o Oriente Médio e o mundo. Uma cientista política libanesa relata, de Londres, os laços sociais e familiares que estão sendo destroçados pelo massacre
Por Loubda El Amine | Tradução: Antonio Martins
Demorou um pouco para as pessoas entenderem o que estava acontecendo, quando milhares de pagers biparam e depois explodiram em todo o Líbano na semana passada: nos bolsos, nas mãos, na frente dos rostos; nas ruas, nos carros, em casa; em supermercados, escolas e escritórios. “Eu reportei os fatos à medida que surgiam, mas não entendi o que estava dizendo”, me disse um amigo jornalista. Quando ocorrem ataques e explosões no Líbano, como tem ocorrido frequentemente na história recente, as mensagens nos grupos de WhatsApp da minha família costuam chegar em cascata. Desta vez, nenhuma chegou. Soube mais tarde que as pessoas foram aconselhadas a não ligar ou enviar mensagens para proteger a identidade dos alvos, presumivelmente combatentes do Hezbollah. O silêncio foi preenchido pelas sirenes das ambulâncias.
Os milhares que perderam olhos e dedos, cujos rostos foram desfigurados e cujas virilhas foram dilaceradas; as dezenas mortas durante os dois dias de ataques com pagers; as dezenas mais que morreram e ficaram feridas no assassinato de um comandante do Hezbollah no dia seguinte; e os muitos outros – pelo menos 182, até o momento desta escrita – mortos no bombardeio desta manhã [de 23/9; um dia depois, as mortes são calculadas em pelo menos 500 (Nota de Outras Palavras)]no sul do país: são todas de meus compatriotas libaneses. Tenho menos ligação com eles por unidade cívica ou fervor nacional do que pela nossa experiência compartilhada das guerras e das tréguas inquietas entre elas.
Nasci durante a guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990, e cresci ouvindo disparos de projéteis e bombas e escutando anúncios sombrios no noticiário. Meus pais me contaram suas próprias histórias. Meu irmão mais velho nasceu em 17 de setembro de 1982, quando as falanges de direita, apoiadas pelo exército israelense, que havia invadido Beirute, massacraram refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila. Meu pai hasteou uma bandeira branca no carro enquanto levava minha mãe ao parto no hospital.
A guerra civil terminou quando eu tinha seis anos. O que me lembro mais vividamente são os bombardeios israelenses nos anos que se seguiram, quando eu tinha doze, quinze e depois 22. Atingiram pontes, aeroportos, usinas elétricas e edifícios nos subúrbios do sul. O vidro do meu quarto de infância tremia tão forte que eu tinha medo de que ele se quebrasse em cima de mim enquanto dormia.
Pensei muito sobre o último desses episódios, a guerra de julho de 2006, quando estive em Beirute no verão, enquanto o conflito entre o Hezbollah e Israel se intensificava. Ao decidir se deveria ficar ou partir, imaginei viver isso de novo, desta vez com três crianças pequenas. Eu aguentaria submetê-las a esses sons? Quando os aviões israelenses começaram a romper a barreira do som em Beirute — eles já vinham fazendo isso há algum tempo no sul —, soubemos que tínhamos que ir.
Os alvos dos ataques com pagers também são contra meu povo, em um sentido mais particular: pertenço à comunidade que vive nos subúrbios do sul de Beirute e no sul do Líbano, de onde o Hezbollah recruta seus membros. Pertenço a ela não tanto porque meus documentos de registro nacional me classificam como “muçulmana xiita”, mas porque cresci dentro de seus rituais, práticas e ideias.
Em 1979, quando se casaram, meus pais mudaram-se para o centro de Beirute, mas visitávamos com frequência avós, tios, tias e parentes nos subúrbios e vilarejos do sul. Nos últimos anos, a rua onde meus pais moram — que já foi lar de sunitas, drusos e armênios — tornou-se predominantemente xiita.
Os xiitas representam cerca de um terço da população do Líbano. O canto específico do mundo xiita no qual cresci incluía tanto os esquerdistas quanto os religiosos. Vários dos meus onze tios e quatro tias se juntaram ao Partido Comunista durante a guerra civil, quando os movimentos de esquerda e nacionalistas árabes eram ativos nos subúrbios do sul.
Os xiitas sentiam-se marginalizados na formação do Estado libanês, liderado pelas elites muçulmano-sunitas e cristãs. Eles também tendiam a ser mais pobres, menos educados e mais isolados do que seus compatriotas. Quando o Hezbollah ganhou destaque após a invasão de Beirute por Israel em 1982 e sua ocupação do sul, muitos xiitas passaram a ver o grupo como provendo o que o Estado não oferecia: segurança contra Israel, assistência social na forma de escolas e hospitais e um senso de dignidade.
O papel do Hezbollah na libertação do sul em 2000, após quinze anos de ocupação formal israelense, foi amplamente celebrado, mas os desacordos lentamente surgiram a respeito da contínua influência militar do grupo. Nos almoços de família, meus parentes discutiam sobre o direito do grupo de portar armas, seu envolvimento na guerra civil síria ao lado de Bashar al-Assad e suas relações com o Irã. A inimizade em relação a Israel, por outro lado, nunca foi tema de debate. A ocupação israelense do sul do Líbano constituiu nossa história recente compartilhada, e a ocupação das terras palestinas parecia uma continuação da história colonial britânica e francesa que moldou nossa região.
O Hezbollah predomina na vila do meu pai, que fica ao sul do rio Litani, logo do outro lado da fronteira com vilarejos do sul, que Israel havia ocupado. Na vila da minha mãe, mais ao norte e oeste, é o partido xiita Amal, fundado pelo clérigo Musa al-Sadr em 1974 como “o Movimento dos Privados”, que comanda e vence nas eleições. O Amal lutou — com o regime sírio — contra o Hezbollah e a Organização para a Libertação da Palestina na Guerra dos Campos nos anos 1980, mas desde então tornou-se aliado do Hezbollah. Seu líder atual, Nabih Berri, ocupou o posto de presidente do Parlamento – a principal posição dos xiitas no Estado – nos últimos trinta 32 anos. Durante nossa visita neste verão, vi num poste de luz perto do prédio onde meus pais moram uma foto de Berri e do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, com a legenda “o par sagrado”. Mas o Amal carece de clareza ideológica, e da disciplina do Hezbollah. Para seus críticos, onde o Hezbollah é autoritário, o Amal é corrupto.
A libertação do sul deu a meus pais segurança para comprar um pequeno pedaço de terra e construir uma casa. Até outubro passado, eles passavam os fins de semana lá, e mais tempo durante as férias de verão quando nós os visitávamos. Eles mostravam aos netos como colher amoras e os apresentavam aos comerciantes locais, que, em nossa última viagem, cumprimentaram as crianças pelo nome. Todos estamos inscritos para votar na vila, até mesmo para as eleições municipais. Quando estava lá no momento certo, votei em pequenos partidos de esquerda, e suspeito que alguns parentes também, embora soubéssemos que o Hezbollah venceria.
Quando penso nos jovens que foram mortos pelos pagers detonados, minha mente se volta para os rostos de alguns que conheci nos últimos anos na vila. Eu não compartilho muitos de seus valores. Eles não apertam minha mão, e alguns desviam o olhar para evitar ver meu cabelo descoberto. Mas as pessoas ao redor deles também não necessariamente compartilham seus engajamentos. Nas famílias que conheço, alguns irmãos são mais religiosos do que outros, alguns pais estão mais cansados do envolvimento militar do que seus filhos, e muitas mães não querem entregar seus filhos por uma causa, por mais que acreditem nela.
O fato de não podermos conhecer os membros do Hezbollah de forma clara não se deve apenas à preocupação do partido com o sigilo. Também é porque seus membros, que carregam pagers, estão inseridos em redes de relações familiares, laços locais e solidariedades políticas. Seus parentes, as pessoas que vivem nas mesmas vilas e bairros, e aqueles cujas vidas se cruzam com as deles, os apoiam sem necessariamente concordar com todas as suas decisões, políticas ou ideias. Um pager que explode em um ambiente cotidiano, arrancando membros e cegando olhos, nunca inflige danos de maneira limitada, tanto porque inevitavelmente afeta civis quanto porque atinge seu alvo em meio ao seu mundo social. Isso espalha medo, mas também reforça solidariedades comunitárias — ou, pelo menos, a convicção de que Israel é o inimigo.
Já passamos por isso antes. A guerra de julho de 2006 foi tida como um momento de dúvidas sobre o Hezbollah entre seus apoiadores, mas também foi um lembrete de que Israel tinha a capacidade e a vontade de causar danos indiscriminados no Líbano.
Quando ouvi as notícias sobre as explosões dos pagers, eu estava buscando passagens para Beirute em dezembro. Para aliviar minha tristeza e culpa por termos encurtado nossa viagem neste verão, prometi voltar em breve: para ver meus filhos brincarem na casa onde cresci, para que eles compartilhem uma refeição com os filhos dos meus primos e amigos, e para ouvi-los falar em árabe na rua. Em minhas conversas com amigos e familiares no Líbano desde então, falamos menos sobre a possibilidade de irmos e mais sobre a possibilidade de que eles precisem partir.
Adeus ao mundo eurocêntrico?
Um pensador destacado do altermundismo sustenta: o poder do Ocidente nunca foi tão frágil. É possível esperar um novo Sul Global? Por que a China é muito diferente da antiga URSS? Que esperar dela numa nova ordem mundial?
Walden Bello, entrevistado a Néstor Restivo, em Tektónicos | Tradução: Antonio Martins
A primeira vez que encontrei Walden Bello foi no verão de 2001, em Porto Alegre. Por ocasião do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), há mais de duas décadas, esse sociólogo das Filipinas, ex-membro do parlamento de seu país viajou para o sul do Brasil como tantos ativistas, líderes e acadêmicos ou pesquisadores que esperavam que esse fórum, e os que o seguiram por vários anos, se consolidasse como uma tribuna internacionalista de resistência ao neoliberalismo – então em seu momento de expansão – e, ao mesmo tempo, uma plataforma para ideias alternativas. Bello, pouco conhecido na América do Sul, já era presença importante nos movimentos “altermundistas”. Dirigia uma rede de organizações sul-asiáticas denominada Focus on the Global South, cujo nome me chamou atenção.
O termo “Sul Global” apareceu pela primeira vez em 1969, quando o professor e ativista norte-americano Carl Oglesby escreveu um artigo sobre a Guerra do Vietnã no qual mencionou a “dominação do Norte sobre o Sul Global” — causa, segundo ele, de uma “ordem social intolerável”.
“Certamente não fomos os inventores nem os pioneiros em falar do ‘Sul Global'””, diz Walden Bello na Casa de las Madres de Plaza de Mayo, no inverno de 2024 em Buenos Aires, uma cidade que ele está visitando pela primeira vez. Ele conta que a Focus on the Global South foi estabelecida em Bangkok, Tailândia, em 1995, acrescentando:”de qualquer forma, adotamos esse nome, sintonizando-nos no momento certo com o que estava começando a acontecer no mundo”.
Walden Bello visitou à capital argentina (e não deixou de observar com perplexidade tudo o que emerge do governo de Javier Milei) a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e da Fundação para a Pesquisa Social e Política (FISYP). Palestrou sobre o “Impacto e oportunidades da crise da hegemonia dos EUA” e conversou com a Tektónikos sobre esse tema.
O que o Sul Global significa para você hoje?
– O que chamamos de países em desenvolvimento, subdesenvolvidos ou colonizados costumava ser chamado de “Terceiro Mundo”. Mas a União Soviética e a Europa Oriental entraram em colapso, entre 1989 e 91. Isso pôs fim à ideia de que havia um “segundo mundo”, um mundo comunista. Ficou difícil manter estes termos. Então, o termo Sul Global, que já havia sido inventado, ressurgiu como uma ideia na década de 1990, sob a premissa de reivindicar o fim de sua dominação.
Quais foram os principais desafios — e quais ainda são agora — nesse novo mundo em formação?
Continuam a ser o fim da dominação econômica e política dos Estados Unidos e de suas potências aliadas no Ocidente. São forças estruturais que dominaram o mundo por 500 anos, um cenário que, no entanto, está sendo questionado neste século XXI. Isso se dá principalmente por causa do surgimento de um grande ator como a China. Isso criou algum espaço para que o Sul Global pudesse se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas – e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos Estados Unidos.A disputa da União Soviética com os EUA abriu espaço de manobra para o Terceiro Mundo. Mas a diferença é que agora a China possibilita outro cenário: é uma grande potência econômica e política de uma forma que a URSS não era – ou era apenas militarmente, mas não em outros níveis. Em outras palavras, agora a China tem grandes recursos econômicos e pode cooperar muito melhor com o mundo em desenvolvimento. Essas são condições muito diferentes daquelas da Guerra Fria.
Qual é o papel do BRICS?
É uma nova formação importante, hoje já com 10 países que se juntaram ao chamado BRICS+. Isso significa que não apenas os quatro e depois cinco fundadores do início (Brasil, Rússia, Índia, China e depois África do Sul), mas agora o dobro de nações (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se juntaram desde 2024). Além disso, outros países querem aderir. Em outras palavras, agora temos um nível maior de recursos que podem ser usados para o desenvolvimento do Sul Global. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, temos a China novamente, não apenas como uma potência econômica, mas oferecendo um modelo bem-sucedido de desenvolvimento liderado pelo Estado, em contraste com o que o FMI ou o Banco Mundial vêm defendendo há décadas, com seu foco no mercado como condutor. E, em terceiro lugar, o peso político dos BRICS é muito importante para fornecer recursos, espaço e margem de manobra, além de crédito para o Sul Global. Os BRICS também oferecem diversidade, pois em muitos aspectos os parceiros são diferentes uns dos outros (Brasil da Arábia Saudita ou Rússia do Irã etc.). Ainda assim, o importante é que o grupo agora ampliado não pode mais, devido ao seu tamanho e peso, ser dominado pelas potências ocidentais.
E quanto ao papel da China em particular, sendo a mais poderosa desse grupo?
É claro que a China lidera o grupo, é a principal fornecedora de recursos e impulsionadora dos bancos de desenvolvimento que estão sendo criados nesse novo ambiente, dos fundos de contingência, que têm formatos e exigências diferentes dos esquemas do FMI (o que mostra uma alternativa em potencial à ordem multilateral existente). A liderança da China é muito interessante. Pequim forneceu uma quantidade impressionante de recursos aos países do Sul Global e é um modelo, insisto nisso, em que o Estado controla as forças de mercado. Cada vez mais países estão olhando para isso como uma alternativa às economias orientadas pelo mercado. E, por fim, há o peso político e militar da China, embora ainda seja muito menor do que o dos EUA. A China tem muito cuidado para não se apresentar como um substituto dos EUA e disse explicitamente que bancos como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) ou o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) não querem substituir o sistema de Bretton Woods. Entretanto, os EUA afirmam que a China é uma potência revisionista e ambiciosa, que quer ser a número um, substituir tudo, não se integrar ao capitalismo e que representa um desafio. Na verdade, essa é uma tentativa de justificar o primeiro objetivo dos EUA, que é conter a China com uma postura muito agressiva, presente em especial no governo Biden, que está saindo.
A guerra interna imperial
O Ocidente está inevitavelmente entrando em guerra ou há setores que querem negociar algum tipo de transição?
Acho que a Europa está sendo arrastada pelos EUA nesse objetivo de conter a China. Ela foi fortemente influenciada e isso levou à expansão da OTAN para o leste e para a Ásia. Por meios econômicos, diplomáticos e militares, os EUA têm procurado conter a China durante todos esses anos e o Partido Democrata (PD) deu sinais muito claros aos seus militares de que é isso que eles querem em relação à China. O número de missões e bases dos comandos militares dos EUA no Pacífico foi aumentado e as forças armadas receberam sinal verde para isso. O comandante da Força Aérea, Mike Minihan, chegou a ser citado como tendo falado sobre a possibilidade de entrar em guerra contra a China em 2025.
A posição da extrema direita e do Partido Republicano em geral nos Estados Unidos é menos clara, você não acha?
Vamos examinar isso com atenção. A candidata democrata Kamala Harris e os líderes democratas gostariam de manter o papel do “livre comércio”, a hegemonia dos EUA, o uso de órgãos multilaterais que controlam e o fluxo “livre” de capital. Mas basicamente essa é a velha ordem. O presidente Biden e outros disseram que os EUA são os únicos capazes de preservar tudo isso, as instituições do domínio ocidental em seu conjunto, etc. Eles também acreditam que o desafiante republicano, Donald Trump, não faria isso. Com relação a Trump, acho que ele não está tão interessado em expandir o poder econômico dos EUA no Sul Global — nem no fluxo de capitais, nem na promoção de uma economia global ou transfronteiriça. Pense que, em seu primeiro governo, uma das ações imediatas de seu governo, em janeiro de 2017, foi retirar-se da Parceria Transpacífica (TPP). Isso é muito diferente do que o Partido Democrata quer. A mesma coisa aconteceu com a forma diferente de lidar com a ocupação do Afeganistão durante a mudança de governo de Trump para Biden. Acho que Trump está basicamente interessado em trazer o capital de volta para os EUA, o chamado reshoring, porque ele acusa as corporações de levar empregos para fora do país. Toda essa ideia de colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” é seu ponto de apoio. E seus apoiadores odeiam as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e de Wall Street. Embora o próprio Trump seja obviamente um grande capitalista, ele explora esses sentimentos contra o grande capital. Entretanto, sua ideia não é tanto expandir os EUA, mas priorizar o mercado doméstico.
Será que o trumpismo se posiciona como completamente alheio aos problemas globais?
Eu diria que, em geral, sim, embora obviamente preservando o poder unilateral em questões mundiais. Ele é claramente anti-imigração. Em termos militares, eu o vejo mais comprometido e interessado em ter um país poderoso em si mesmo novamente, não um país de alianças como a OTAN, pois ele não gosta disso. Em resumo, vejo uma perspectiva diferente da dos democratas. Há diferenças reais entre os dois candidatos e os dois projetos. A pergunta que faço é se nós, no Sul Global, devemos escolher uma dessas duas opções. Minha resposta é que não precisamos fazer isso, não temos interesse na ordem liberal ou na ordem “América em primeiro lugar”. Mas precisamos prestar atenção em qual das duas posições prevalece e tentar tirar proveito dessas contradições.
Olhando das Filipinas, qual é o papel do Sudeste Asiático na reconfiguração global em andamento?
Há muitas contradições. O Vietnã e as Filipinas são muito críticos em relação à China pelo mesmo motivo: a disputa de limites no Mar do Sul da China, onde a China assumiu unilateralmente uma posição. É um mar com seis países reivindicantes e a China estabeleceu unilateralmente que 90% dele lhe pertence. Pode-se entender que a razão chinesa não é expansionista, mas defensiva – porque o Sudeste Asiático está muito próximo do núcleo industrial da China (Xangai, Guangzhou, suas áreas adjacentes etc.) e a ideia é que ela precisa proteger ou impedir um ataque dos EUA à sua infraestrutura produtiva. Em um cenário de guerra, isso é fundamental para a China, e os norte-americanos têm muitos ativos militares na área. Isso é compreensível do lado chinês, o que não é compreensível foi seu método unilateral de dizer “isso é nosso e, por ser nosso, vamos desenvolvê-lo de tal maneira”. A China deveria ter negociado isso com os outros países. Então, talvez fosse possível avançar na desmilitarização da área. É por isso, entre outros motivos, que o Vietnã critica a China nesse ponto. O país tem uma política externa independente. Como você sabe, já lutou no passado contra os norte-americanos e os franceses e exerce neutralidade diplomática.
E quanto ao seu país?
As Filipinas são diferentes. São totalmente aliadas militarmente aos EUA com o atual presidente Ferdinand Marcos Jr. Os norte-americanos têm nove bases militares e Marcos não tem nenhum senso de nacionalismo. Ele não se importa, só se preocupa com a fortuna de sua família, seu grupo central de pessoas próximas, a dinastia, seus investimentos milionários nos EUA e em outros países ocidentais, que podem ser facilmente expropriados se ele não fizer o que Washington quer. O governo de Marcos está completamente vendido aos EUA e não tem controle sobre a política de defesa.
E quanto ao cenário global, o restante das nações do Sudeste Asiático?
O restante da ASEAN, a associação que integra todas essas nações, é diversificado, mas a maioria da população tem uma opinião melhor sobre a China do que sobre os Estados Unidos, especialmente na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e na Malásia. A maioria prefere a China como parceira aos EUA, de acordo com relatórios recentes. Os únicos dois países que se opõem a isso são, não surpreendentemente pelo que expliquei, embora por motivos diferentes, o Vietnã e as Filipinas. Essa é a situação atual na região, que se tornou decisiva no tabuleiro de xadrez global.
Fonte Portal Membro Outras Palavras
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