EDUCAÇÃO
A A | Como estão as escolas sem celulares?Nos primeiros meses do ano escolar, já é possível notar indícios de melhora na atenção de estudantes. Mas foi só o primeiro passo: combater a dependência de jovens em smartphones e a redução da sociabilidade depende também da regulação das redes sociais Dispersão, desconcentração, música nos fones de ouvido, troca de mensagens e likes em rede social, jogos online, bets, bullying. Cenas que se tornaram comuns no cotidiano escolar brasileiro há alguns anos. Em resumo, os smartphones e todo seu universo de interações virtuais invadiram o processo formativo de uma geração de adultos que terão de encarar um mundo cujas dinâmicas estão em transformação. Esta breve descrição de uma sala de aula qualquer sintetiza alguns dos motivos que levaram o governo brasileiro a editar a lei 15.100/25, sancionada em janeiro pelo presidente Lula, que proibiu o uso de celulares e outros dispositivos digitais em todas as escolas do país. Antes do governo federal, a prefeitura do Rio de Janeiro já tinha editado lei semelhante, reconhecida pelo Ministério da Educação como importante referencial. Movimentos similares têm sido ensaiados em outros países e novas leis de teor associado seguem em tramitação. “Não estou dizendo que concordo com a lei, eu concordo com a necessidade dela. A escola, em geral, não deu conta de achar um equilíbrio para o uso desse equipamento de forma que ele pudesse colaborar. Não encontramos um caminho, essa é a grande verdade”, analisou Hélida Lança, professora da rede pública de São Paulo e pesquisadora, em entrevista ao Outra Saúde. A análise de Hélida reconhece a importância da ação do Estado, mas obriga a reflexões mais amplas. A gravidade do problema era flagrante — algo que, na visão de muitos educadores, foi potencializado pela pandemia, quando o fechamento das escolas fez os governos tomarem a irrefletida decisão de manter o calendário escolar online, num caótico e excludente processo de ensino a distância, cujo acesso só poderia ser feito pelos dispositivos eletrônicos. De todo modo, como explicam especialistas ouvidos por este boletim, a situação era alarmante. “Hoje existem muitas pesquisas que mostram que excesso de tempo no celular, no tablet ou mesmo no computador, produz ansiedade, uma certa evitação de contato social, expõe crianças e jovens a conteúdos inadequados…”, explicou Ângela Soligo, psicóloga e professora aposentada da Faculdade de Educação da Unicamp. De encontro à visão de Hélida, ela apoia a legislação e afirma que os celulares jamais foram uma contribuição técnica para a melhoria do ensino e da dinâmica de aprendizagem. A seu ver, nem sequer a justificativa de sua utilidade para questões de emergência pessoal e familiar se sustenta, uma vez que cabe à escola tal responsabilidade, como sempre foi. Outro fator costumeiramente utilizado na justificação dos aparelhos celulares acusa a escola de ser um ambiente ultrapassado e pouco atrativo para os estudantes. Tal ideia foi largamente utilizada por setores liberais na construção da reforma do Novo Ensino Médio no governo Temer, que reduziu a carga horária de disciplinas obrigatórias, e colocou temas externos ao ensino generalista dentro de salas de aula. Assuntos desprovidos de qualquer método científico como “empreendedorismo” e mesmo instruções para se tornar influencer foram jogados para dentro das salas de aula pelo mesmo Estado que agora precisa reduzir danos. “É uma bobagem dizer que a escola não acompanha a evolução tecnológica. O que a escola tem de fazer, e o MEC corretamente fez, é dizer quais tecnologias são adequadas e em que momento”, acrescentou Ângela, autora de premiados trabalhos sobre discriminações em ambiente escolar, a exemplo do relatório Violência e Preconceitos na Escola, vasto estudo conduzido por universidades federais das cinco regiões do Brasil. “Não se pode romantizar a escola como um lugar que vai ser agradável, feliz e alegre o tempo todo. Isso não existe, porque aprender requer algum esforço. Claro que a escola tem que ter momentos de leveza, de distração, de entretenimento. Mas não pode ser o tempo todo assim. Tem momento de por o traseiro na cadeira e dizer, ‘bom, agora eu vou me esforçar aqui para entender isso’”, explicou Hélida Lança. Consumismo e consequências em saúdeOutro aspecto decisivo na aprovação da lei foi a explosão de transtornos relacionados à saúde mental, atribuído em grande medida ao acesso irrestrito ao mundo digital. Segundo o Ministério da Saúde, de 2014 a 2024, o número de atendimentos relacionados à questão mais que decuplicou no SUS entre jovens de 10 a 19 anos. “A lei está correta e a regulação das redes é necessária. Não podemos ter um acesso irrestrito a conteúdo sem critérios, estimulando um consumismo por parte desses jovens, o que desenvolve diversos comportamentos, como ansiedade e depressão. Neste sentido, a regulação das redes sociais também é necessária. Não pode ser tudo pelo lucro”, afirmou Evelyn Eisenstein, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Para as fontes ouvidas pelo boletim, a legislação sozinha não resolverá todos os problemas, inseridos dentro de um contexto mais amplo que o espaço escolar, mas são um primeiro passo de todo um processo de reeducação da sociedade. “As iniciativas precisam acontecer e, em geral, acontecem uma de cada vez. Portanto, não podemos diminuir a importância da lei. É que, isoladamente, não tem força como gostaríamos. Hoje, lidamos dentro da escola com crianças e adolescentes que são filhos de uma geração que já está absolutamente cooptada pela tecnologia digital individual”, aponta Hélida Lança. Em sua entrevista, ela também diretora de uma escola infantil, relata casos clínicos de dependência de telas até em crianças menores de 10 anos, grupo que têm menor acesso aos smartphones do que adolescentes de ensino fundamental e médio. Além disso, conta que os próprios pais permitem o uso das redes sociais, inclusive de forma contrária às exigências de idade mínima para se ter uma conta pessoal em plataformas como Instagram. “Precisamos da participação dos pais, inclusive no afeto, no amor, no desenvolvimento de experiências ao lado dos filhos. Isso significa que os pais também devem se desconectar dos aparelhos. As cidades devem ser amigáveis com os jovens, precisamos de espaços de passeio, lazer, prática esportiva, enfim, atividades offline que não sejam mediadas pelo consumo”, corrobora Evelyn. Como explicam as especialistas, a lei 15.100/25 foi só uma primeira reação a um quadro muito mais profundo. Em primeiro lugar, a dependência de jovens continua evidente no dia a dia, em especial fora do ambiente escolar. Para isso, contribui decisivamente a completa irresponsabilidade das grandes plataformas digitais, as chamadas Big Techs, na regulação dos conteúdos veiculados em seus espaços. No YouTube, é possível se deparar há anos com perfis infantis seguidos por milhões de pessoas. “A saúde mental não é só uma questão do indivíduo, é uma questão coletiva. Não pode, por exemplo, de repente, um grupo criminoso arrebanhar um adolescente para jogar bomba no show da Lady Gaga, e isso aconteceu, não é? Hoje, eles precisam ser protegidos nessas redes, porque isso é banditismo. Propagar racismo é banditismo”, exemplificou Ângela Soligo. Ela completa: “Somos uma sociedade enlouquecida pelo consumismo, a produtividade, a pressa. E essa sociedade adoece as nossas crianças e adolescentes. Ficar só olhando tela é limitador. Criança precisa de ação, brincar, rir, precisa de outras crianças, criar, imaginar, inventar. Não é olhando tela que isso vai acontecer”. Dessa forma, os desafios continuam na ordem dia. Em abril, a SBP lançou a campanha “Menos jogos perigosos, mais saúde”, que visa conscientizar o público sobre os perigos dessas atividades online, promovidas em comunidades virtuais pouco notadas e que se tornam um bizarro ambiente de socialização e autoafirmação. Trata-se, a partir do incentivo de influenciadores, da prática de ações que visam alguma forma de “superação” do participante, como ingerir produtos perigosos ou se automutilar. “Crianças e adolescentes são naturalmente curiosos e também influenciáveis. Estão em fase de desenvolvimento físico e cognitivo, seus órgãos, inclusive o cérebro, estão neste processo, o que significa que sua capacidade de refletir sobre uma determinada experiência ainda está em construção. Por isso se tornam um público vulnerável a esta dinâmica de jogos e desafios online”, explica Evelyn. São ao menos 56 mortes de crianças e adolescentes relacionadas a tais atividades, de acordo com dados oficiais. Duas delas ocorreram num espaço curto de tempo neste ano, no Distrito Federal, o que deflagrou a retomada da campanha pela SBP, que já a tinha realizado em anos anteriores. Primeiros resultadosDe forma geral, a experiência de coibir o uso de celulares em escolas é recente. Não há estudos sistematizados a confirmar mudanças de comportamento em contingentes relevantes. “Já temos relatos de que houve diminuição de bullying, os alunos estão descobrindo novas formas de convívio, estão abrindo espaço para sua criatividade, além da própria capacidade de atenção em sala de aula ser beneficiada”, contou Evelyn. Com uma crítica mais reflexiva, Hélida pondera os primeiros impactos, e reflete sobre todo um modo de vida que segue a orientar a população. “A socialização continua comprometida, porque é muito comum dar um passeio no pátio e ver que eles estão lá com a cara na tela. A vida de smartphone nos levou a um outro modelo de comportamento individualizado, com interações virtuais que nem sempre refletem a verdade… A tal da vida instagramável. Isso não é um problema escolar, é um problema social”. Em nota enviada ao Outra Saúde, o MEC reconhece a incipiência do processo, mas afirma que os primeiros indícios são positivos. “Muitos estudantes relatam aumento da atenção e redução das distrações em sala de aula, melhoria na convivência e até maior engajamento nas atividades escolares. Em reunião realizada em 1º de abril com jovens estudantes de diferentes regiões do país, foram destacados benefícios como: maior foco e concentração durante as aulas; melhoria na qualidade das interações sociais durante os intervalos; mais tempo e organização para realizar atividades em sala; fortalecimento da convivência e das relações interpessoais”, relatou o ministério. | A A |
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A A | O número de municípios brasileiros que estão impedidos receber recursos da complementação federal do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) em 2026, chega a 926. Os dados são do Ministério da Educação.
A pendência está relacionada ao não envio de dados contábeis, orçamentários e fiscais referentes ao exercício de 2024. A maioria dessas cidades está localizada no estado da Bahia, que conta com 99 entes bloqueados. Na sequência aparecem Tocantins, Paraná e Goiás, com 76 cidades incluídas na lista, cada. Fundeb: confira lista completa dos municípios impossibilitados de receber complementação federal
A ausência dessas informações no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope) e no Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi) impossibilita que os entes sejam habilitados ao cálculo do VAAT (Valor Anual Total por Aluno). Esse cálculo serve de base para definir se o município terá direito ao recebimento da complementação da União ao Fundeb, na modalidade VAAT, em 2026. O mesmo vale para os estados e, de acordo com o levantamento, Minas Gerais e Rio Grande do Norte também compõem a lista. Fim do prazoO prazo para o envio das informações corretas termina no dia 31 de agosto de 2025. O repasse dos dados é condição obrigatória, como prevê a Lei 14.113/2020, que regulamenta o novo Fundeb. De acordo com o Ministério da Educação, “a não regularização poderá deixar milhares de redes públicas sem acesso a recursos importantes para a manutenção e desenvolvimento da educação básica.” O Valor Anual Total por Aluno (VAAT) é um indicador que reflete o quanto cada ente federativo investe, por aluno, em educação básica pública. Já o VAAT-MIN aponta qual valor mínimo deve ser assegurado nacionalmente. Quando um estado ou município tem VAAT abaixo desse mínimo, a União complementa os recursos, desde que os critérios legais estejam cumpridos. O FundebO Fundeb é formado por recursos que vêm de impostos e transferências constitucionais dos entes federados vinculados à educação, bem como da União, por meio das complementações Valor Aluno Ano (VAAF), Valor Aluno Ano Total (VAAT) e Valor Aluno Ano Resultado (VAAR). | A A |
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Escola do MinC oferece cursos online gratuitos de formação e qualificação artísticaBrasil61Já imaginou fazer um curso totalmente gratuito de formação ou qualificação artística? Isso é possível por meio da ESCULT, a Escola Solano Trindade de Formação e Qualificação Artística, Técnica e Cultural. Desenvolvida pelo Ministério da Cultura, a plataforma virtual oferece cursos para todas as regiões do Brasil. A ESCULT já teve mais de 50 mil matrículas entre os cursos técnicos, de formação artística e pós-graduação. Os mais procurados foram de produção audiovisual e fotografia. O sucesso da plataforma é comemorado por seu idealizador, o coordenador-geral de Políticas para Trabalhadores da Cultura do MinC, Rafael Fontes. Já imaginou fazer um curso totalmente gratuito de formação ou qualificação artística? Isso é possível por meio da ESCULT, a Escola Solano Trindade de Formação e Qualificação Artística, Técnica e Cultural. Desenvolvida pelo Ministério da Cultura, a plataforma virtual oferece cursos para todas as regiões do Brasil. A ESCULT já teve mais de 50 mil matrículas entre os cursos técnicos, de formação artística e pós-graduação. Os mais procurados foram de produção audiovisual e fotografia. O sucesso da plataforma é comemorado por seu idealizador, o coordenador-geral de Políticas para Trabalhadores da Cultura do MinC, Rafael Fontes. “Acho que boa parte do sucesso da ESCULT se deve justamente à percepção do MinC da necessidade desses profissionais que já estão no mercado, que querem ser inseridos, de ter uma formação qualificada”, avalia Fontes. Após um ano de existência, a escola emitiu mais de 7 mil certificados. A iniciativa demonstra avanços no cenário de formação profissional no setor cultural. Em todo território nacional são muitos os beneficiados pela escola. A artista Romana de Sá conta que, desde que conheceu a plataforma, tem trilhado um caminho de muito aprendizado. “Sempre tive dificuldade em entender de editais e até mesmo de escrever, mas, depois que conheci a plataforma, isso mudou significativamente, porque comecei a entender melhor os processos e a desenvolver os meus próprios projetos. Gosto também da praticidade da plataforma, porque ela conta com profissionais muito capacitados, que têm uma linguagem acessível.” O interesse das pessoas comprova o potencial da ESCULT em transformar a formação cultural. O êxito também reafirma o compromisso educacional do Ministério da Cultura. A ideia é continuar oferecendo qualificação, como destaca o diretor de Políticas para os Trabalhadores da Cultura do MinC, Deryk Santana. “A demanda da ESCULT mostra que o MinC acertou em muito em construir uma plataforma pública gratuita e de qualidade, democrática e totalmente acessível, tanto que em menos de um ano chegamos a ser a segunda plataforma mais acessada do país.”. “Isso reforça o compromisso do nosso ministério com a capacitação, a profissionalização, a empregabilidade do nosso setor e a transversalidade das suas políticas, que são pensadas para chegar a toda a nossa população”, acrescenta Santana. Ficou interessado em fazer algum dos cursos de formação e qualificação artística da ESCULT? Anota aí o site: escult.cultura.gov.br. Esta é uma realização do Ministério da Cultura em parceria com o Instituto Federal de Goiás (IFG) e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Para mais informações acesse o site www.gov.br/cultura. | A A |
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A A | ![]() Zizek: o que ver em Lênin, 101 anos depoisPensador esloveno relembra um sonho célebre de Trotsky e lhe atribui dois sentidos opostos. Aposta no segundo: Lênin vive porque o comunismo, embora frágil como nunca no Ocidente, é mais necessário do que sempre, no mundo todo Lênin morreu há 101 anos, em 21 de janeiro de 2024. Levando em conta o destino de seu legado nas últimas décadas, parece apropriado lembrar este aniversário com um ano de atraso. Onde estamos hoje, não apenas em relação a Lênin, mas também em relação ao projeto revolucionário radical associado ao seu nome? Em 1922, quando os bolcheviques tiveram que recuar para a “Nova Política Econômica”, permitindo uma presença muito mais ampla da economia de mercado e da propriedade privada, Lênin escreveu um curto texto intitulado Sobre a Escalada de uma Alta Montanha. Ele usa a metáfora de um alpinista que precisa recuar até o ponto zero, até o chão, após sua primeira tentativa de alcançar um novo pico, para descrever como alguém pode recuar sem trair oportunisticamente sua fidelidade à causa. Os comunistas “que não se entregam ao desânimo e que preservam sua força e flexibilidade para ‘começar do começo’ várias vezes, ao enfrentar uma tarefa extremamente difícil, não estão condenados.” Esse é Lênin em sua melhor forma beckettiana, ecoando a frase de Worstward Ho: “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor.” Uma abordagem leninista como essa é mais necessária do que nunca hoje, quando o comunismo, a única maneira de enfrentar os desafios que enfrentamos (ecologia, guerra, inteligência artificial…), torna-se cada vez mais inoperante politicamente – o que resta da esquerda é cada vez menos capaz de mobilizar as pessoas em torno de uma alternativa viável à ordem global existente. Mas “Lênin” não representa justamente a dimensão que deveria ser apagada, se a esquerda quiser ter alguma chance de se tornar novamente uma força mobilizadora? Talvez a maneira de romper esse impasse de refletir interminavelmente sobre a fraqueza da esquerda, lamentando como é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, seja mudar de plano e focar no capitalismo. O próprio sistema não apenas imaginou com sucesso o pós-capitalismo, mas está, na realidade, transformando-se em uma nova ordem pós-capitalista. As apostas aqui são extremamente altas – ninguém estava mais ciente disso do que o próprio Trotsky, como fica claro em seu sonho sobre Lênin morto, na noite de 25 de junho de 1935:
Em sua interpretação desse sonho, Lacan se concentra no vínculo óbvio com o sonho de Freud, no qual seu pai aparece para ele, um pai que não sabe que está morto. Mas o que significa que Lênin não sabe que está morto? Há duas maneiras radicalmente opostas de interpretar o sonho de Trotsky. Segundo a primeira leitura, a figura aterrorizantemente ridícula do Lênin morto-vivo “não sabe que o imenso experimento social que ele trouxe à existência (e que chamamos de comunismo soviético) chegou ao fim. Ele permanece cheio de energia, embora morto, e as invectivas lançadas contra ele pelos vivos – de que ele foi o originador do terror stalinista, de que era uma personalidade agressiva cheia de ódio, um autoritário apaixonado pelo poder e pelo totalitarismo, até mesmo (o pior de tudo) o redescobridor do mercado na sua NEP – nenhuma dessas acusações consegue conferir-lhe a morte, nem mesmo uma segunda morte. Como é possível, como pode ser que ele ainda pense que está vivo? E qual é a nossa própria posição aqui – que seria, sem dúvida, a de Trotsky no sonho –; qual é o nosso próprio desconhecimento, qual é a morte da qual Lênin nos protege?” O Lênin morto que não sabe estar morto representa, assim, nossa própria recusa obstinada em renunciar aos grandiosos projetos utópicos e aceitar as limitações da nossa situação: não há um Grande Outro, Lênin era mortal e cometeu erros como todos os outros, então é hora de deixá-lo morrer, de pôr para descansar esse fantasma obsceno que assombra nosso imaginário político e de abordar nossos problemas de uma maneira pragmática e não ideológica… Mas há outro sentido em que Lênin ainda esteja vivo: ele está vivo na medida em que encarna o que Badiou chama de “Ideia eterna” da emancipação universal, a busca imortal pela justiça que nenhum insulto e nenhuma catástrofe conseguem matar. Deve-se lembrar aqui as palavras sublimes de Hegel sobre a Revolução Francesa, extraídas de suas Lições sobre a Filosofia da História Universal:
Isso, é claro, não impediu Hegel de analisar friamente a necessidade interna dessa explosão de liberdade abstrata se transformar em seu oposto: o terror revolucionário autodestrutivo. No entanto, nunca se deve esquecer que a crítica de Hegel é imanente, aceitando o princípio básico da Revolução Francesa (e seu complemento essencial, a Revolução Haitiana). E é exatamente essa abordagem que se deve adotar em relação à Revolução de Outubro (e, posteriormente, à Revolução Chinesa). Como Badiou apontou, foi o primeiro caso em toda a história da humanidade de uma revolta bem-sucedida dos pobres explorados. Eles eram o ponto zero da nova sociedade; eles estabeleceram os padrões. Contra todas as ordens hierárquicas, a universalidade igualitária chegou diretamente ao poder. A revolução se estabilizou em uma nova ordem social: um novo mundo foi criado e milagrosamente sobreviveu em meio a pressões econômicas e militares impensáveis e ao isolamento. Foi, de fato, “uma gloriosa aurora mental. E todos os seres pensantes compartilharam da exultação dessa época.” | A A |
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A A | O necessário resgate do Eros na escolaEducação convencional aspira ao controle por meio de protocolos e cartilhas. Deixa escapar o “radar sensível”: a ativação do desejo coletivo, o futuro aberto e o saber-fazer. O mundo é instável. E o pânico da incerteza só atrofia o aprendizado Tenho tido o privilégio de trabalhar em institutos públicos como “professor visitante” na disciplina de Filosofia há vários anos. Por que digo privilégio? Porque me parece que a escola hoje é um observatório excepcional para olhar e pensar a sociedade em que vivemos. Um microcosmo onde as tendências e os problemas que moldam o mundo compartilhado se reúnem; e onde também, talvez por razões de escala, às vezes se pode intervir, agir e tentar mudar alguma coisa. Um dos problemas que encontro nas centros públicos onde trabalho, onipresente nas conversas e preocupações da comunidade escolar, é a questão dos protocolos. A multiplicação dos protocolos escolares, expressão de uma tendência geral à tecnificação da existência. Gostaria de falar sobre isso aqui, de abordar o geral a partir do particular, de abrir uma discussão que me parece urgente. Os protocolos são caminhos a seguir. Protocolos são aplicados, por exemplo, para lidar com eventos imprevistos ou interrupções no bom funcionamento da escola: bullying, gangues, vícios. Como é sabido, o mal-estar entre os jovens de hoje tem intensidades e modos de expressão (automutilação, suicídio) que ultrapassaram os limiares da visibilidade e fizeram soar todos os alarmes. O número de protocolos abertos nas escolas por questões de segurança hoje é altíssimo. Mas o que se pretende ser um modo de “ativação da atenção” (observação e monitoramento) corre o risco de ser um modo de desativá-la. O que quero dizer? Um novo feticheO protocolo pode ser um quadro de referência, um campo de orientações possíveis, um repertório de respostas possíveis. Cristalizar um saber sobre o passado para que seja útil para o futuro. O problema é que, em meio à pressão pelo desempenho, à precariedade e à falta de tempo, ao transbordamento cotidiano e à individualização da vida escolar, o protocolo é elevado a fetiche, impondo-se de forma obrigatória. O que é um fetiche? Um objeto que se torna sujeito, convertendo sujeitos em objetos. A crítica do fetichismo é uma perspectiva clássica do pensamento crítico: as mercadorias se tornam fetiches no capitalismo segundo Marx, as máquinas se tornam fetiches no sistema industrial segundo Simone Weil, as imagens são fetichizadas na sociedade do espetáculo segundo Guy Debord. As coisas ganham vida própria (elas decidem, agem, comandam), enquanto os seres humanos se tornam coisas (força de trabalho, engrenagens, espectadores). Nossa cultura tecnológica fetichiza protocolos. Ela pressupõe que tudo tem uma solução e que sempre há um jeito de alcançá-la. E qual é o problema dessa protocolização generalizada? Em primeiro lugar, a protocolização dessingulariza o que é apresentado. O protocolo não trata de casos singulares, mas se aplica a diferentes exemplos na mesma série (assédio, etc.). Mas o que acontece na vida escolar e na vida em geral é muitas vezes da ordem dos acontecimentos. Cada mal-estar é singular, algo único que demanda uma escuta e uma resposta específica, particular, própria. O protocolo homogeneíza e torna equivalentes o que são situações distintas. Em segundo lugar, a protocolização passiva. Apresenta um caminho a seguir, uma série de etapas, uma organização do tempo em tais fases ou sequências, bloqueando assim a capacidade de ação e criação da comunidade escolar. O que percebemos nas palavras ou no comportamento desse menino, dessa menina, dessa criança? O que vamos fazer a respeito? Em qual tempo? O protocolização impede que o problema em questão se torne uma área de pesquisa e construção autônoma. Terceiro, os protocolos funcionam no dia seguinte. Ou seja, tentam evitar uma escalada ou um desfecho fatal, mas não perguntam sobre as causas, as condições, os contextos do que está acontecendo. Penso agora especialmente sobre protocolos de segurança. Eles não trabalham com “prevenção”, mas com regulação e conjuração. Gerenciam problemas, mas não transformam suas causas. Bloqueiam o pensamento. Do cuidado passamos ao controle. Por último, mas não menos importante, a protocolização confunde as responsabilidades. Como um professor me confidenciou certa vez em um momento privado: “Estou começando a me importar mais em não perder meu cabelo do que com o que está acontecendo com o menino”. A responsabilidade como assinatura com consequências legais substitui a responsabilidade de pensar e apoiar a pessoa sob sua responsabilidade. Do relacionamento passamos para a individualização, da responsabilidade para o medo. Um Eros escolarHá um problema fundamental com essa protocolização da vida escolar. É a atrofia do “radar sensível” que pode permitir que professores, docentes ou qualquer membro da comunidade escolar absorver o que acontece com os seus próprios sentidos, inventar e criar respostas únicas com a sua própria imaginação, no diálogo e na conversa com os outros. O arquivo de protocolos substitui a memória sensível, encarnada no corpo, das histórias de um lugar. Esse radar é a capacidade de sentir o que está acontecendo mesmo que não haja informação codificada que nos permita deduzir que é isso ou aquilo. Uma pessoa que sofre de desejos suicidas sempre expressa ou verbaliza explicitamente sua intenção? Pode não estar claro nem para ele, mas alguém próximo pode sentir que algo está acontecendo e precisa de atenção. O radar sensível é essa escuta do corpo capaz de captar (e interpretar) o que não está explícito, o que não está codificado, o que passa despercebido. No final das contas, estamos falando de Eros, de um Eros escolar. Existe escola sem amor? Existe algum tipo de transmissão e aprendizagem minimamente relevante que não envolva a ativação do desejo? Platão formulou isso muito claramente há dois mil e quinhentos anos: o que um professor ensina antes de tudo não é conhecimento, mas amor pelo objeto do conhecimento. E isso acontece por causa da qualidade da presença do professor. O que hoje chamamos de “déficit de atenção” é um déficit de desejo e tem a ver com a escola, não com um mau funcionamento na cabeça das crianças. Mas este Eros escolar não se limita à sala de aula. Não está relacionado apenas a questões estritas de aprendizagem, mas também a vínculos, cuidados e apoio. É uma forma de ouvir, de estar disponível para os outros, de estar presente sem sobrecarregar outras presenças, de reconhecer os outros e fazê-los sentir que são importantes. Na sala de aula, mas também nas tutorias, nos corredores, no portão da escola. Eros como receptividade: sensibilidade, capacidade de ouvir e acolher. O maior risco dessa tecnificação geral é suplantar – algo impossível, no limite – esse radar sensível, esse Eros escolar. Quando ele é atrofiado, nada é mais assustador do que a incerteza e as contingências. Não sabemos mais escutar o que não está classificado a priori. Não se sabe mais como agir sem um manual de instruções em mãos. Não se sabe mais como pensar e agir com os outros. Mas a vida escolar é, acima de tudo, feita de contingências. Quem vive lá todos os dias e se mantém desperto sabe bem disso. Formas e formatosTudo isso significa que não devemos planejar nada, que o saber do passado não tem serventia, que trata-se de sempre improvisar? Acredito que não, que essa é uma daqueles alternativas-armadilhas que nos são apresentadas o tempo todo. Os humanos não têm instintos absolutamente confiáveis e garantidos, mas temos a capacidade de nos dar formas. Formas para a vida e para a vida em comum. Formas que são feitas e desfeitas o tempo todo. Formas capazes de “dar passagem” ao que pede passagem. Deveríamos pensar mais em termos de formas, de criação de formas, do que de instituições, de modelos ou ideais de instituições. Podemos então distinguir entre formas e formatos. O protocolo é um formato, prêt à porter, pronto para ser executado. Um programa, um script, um automatismo. Ele é baixado e aplicado, sem mais reflexão, sem mais questionamentos, sem mais reconfiguração. A forma é plástica, reformável, transformável, deformável. A singularidade se encaixa nisso. A humanidade sempre soube inventar formas (rituais, cerimônias, dispositivos) onde a diferença não se opõe à repetição, onde o mesmo é sempre novo. O protocolo é uma forma congelada, parada, morta. Tornou-se muito rígido. Registra o passado e o projeta no futuro, mas apenas como um passado ampliado. Como se o cálculo do que foi pudesse servir para prever tudo o que será. Como se a vida não fosse movimento, diferença, novidade. A forma, porém, contém sedimentos e latências do passado, mas sempre aberta ao futuro, ao que está por vir. É preciso atualizá-lo sempre, na descontinuidade, no salto, na ruptura e na perda. A instabilidade é o problema do formato. Isso busca neutralizar qualquer perturbação para restaurar a ordem, voltar ao normal e retomar o controle. O inesperado é tomado como inimigo. Por sua vez, a forma não aspira à estabilidade, não teme a instabilidade, pelo contrário, a disrupção permite que ela se recrie. O que “não funciona” na escola não é o que precisa ser “corrigido” e “endireitado”, mas sim o sintoma que poderia ser interrogado em profundidade para transformá-lo. Diante da ideia de que tudo tem solução e sempre há um jeito de alcançá-la, a forma é uma tentativa, um ensaio, uma maneira de continuar com o problema. Há coisas na vida que não têm solução e só podemos andar em círculos. O amor, por exemplo, não tem fórmula ou formato e só podemos inventar uma e outra vez formas precárias de amor. O impossível não é algo que devemos desistir, mas algo que nos desafia a inventar respostas repetidas vezes, sempre provisórias e revisáveis. Recuperando a presençaA protocolização da vida escolar é apenas uma expressão particular da protocolização geral da vida. Em todo lugar vemos a mesma fetichização do protocolo, do procedimento garantido que irá “resolver” todos os problemas para nós, poupando-nos o trabalho de ouvir, pensar e inventar todas as vezes. Um behaviorismo generalizado: se você fizer x, então você obterá y. Protocolos contra a violência de todos os tipos, para a gestão de desastres, se quisermos ter sucesso na vida. Mesmo em espaços radicais, como os centros sociais, o fetiche do protocolo substitui hoje o esforço de pensamento e invenção em torno dos mil problemas que viver juntos acarreta. A cultura tecnológica que prevalece em todos os lugares opera de acordo com o seguinte princípio: tudo deve funcionar, todos os comportamentos podem (e devem) ser reduzidos a funções simples, os defeitos são ruídos a serem eliminados. É a ideia de um mundo completamente transparente, sem mistérios, governável, redutível a dados e previsível, onde toda perturbação deve ser neutralizada, corrigida, resolvida. O próprio Trump venceu a eleição prometendo seguir o protocolo perfeito: “I’ll fix it” tem sido seu slogan de campanha. O protocolo é o amor por linha reta, mas o humano é justamente aquilo que sempre se distorce. O fracasso de todas as lógicas que pretendem ser absolutas e definitivas. A eficácia dos protocolos é a eficácia das coisas, mas nós não somos coisas, objetos de cálculo, mas um labirinto sem mapa. Uma bagunça, uma confusão, um emaranhado. Planejo x e sai y. Eu digo A e você entende B. Em vez de aspirar ao controle total, através do conhecimento que domina ou força, poderíamos aspirar ao saber-fazer com esse desvio, essa torção que somos. Recuperar a presença e a atenção. Estar atento, estar presente, não significa estar fixo ou concentrado em algo, mas sim estar aberto e disponível ao ambiente, ao encontro, ao acontecimento. Pegar leve com a produtividade, evitar a burocracia, desacelerar o tempo, para que possamos cuidar do que é comum. Mitigar o pânico da incerteza, nos reunir e conversar, falar e pensar sobre o que (nos) acontece, sobre o que é cada vez mais diferente. Sobre o que não sabemos e o que nos desafia. A pergunta “o que está acontecendo?” interrompe os automatismos. Sem essa interrupção, sem essa disponibilidade, sem tecer cumplicidades, só a protocolização da existência pode triunfar. Delegação em vez de atenção, obediência em vez de desejo, resposta imediata em vez de processo, ausência em vez de presença. Um mundo completamente desabitado e automatizado. Nossa ausência de tudo o que nos requer é a pior das catástrofes, aquela que prepara todas as outras. * Este texto é baseado em muitas conversas, dentro e fora do ambiente escolar: com Lucía Curras, Juan Carlos Hervás, Cristina Gutiérrez Andérez, Javier Macias, Silvia Duschatzky, o cartel Love&Hate (Mercedes de Francisco, Estela Canuto, Mila Ruiz, Cinthia Gaona ) ou a oficina “Eros e Thanatos na Escola” organizada pelo Museu Reina Sofía. | A A |
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