CULTURA
Raízes Italianas no Brasil: A Jornada da Imigração e Seu Legado Cultural
A imigração italiana para o Brasil é uma das mais significativas e influentes na formação da identidade cultural e social do país. Esse fluxo migratório teve início em grande escala no final do século XIX e continuou até meados do século XX, moldando a paisagem social e econômica de diversas regiões do Brasil, especialmente no Sudeste e Sul.
Antecedentes e Motivações
No final do século XIX, a Itália recém-unificada enfrentava sérias dificuldades econômicas, políticas e sociais. A pobreza era generalizada, principalmente nas regiões sul e central do país, onde predominavam as atividades agrícolas. A escassez de terras cultiváveis, o alto desemprego, a superpopulação e a falta de perspectivas levaram muitas famílias italianas a buscar uma vida melhor no exterior.
Ao mesmo tempo, o Brasil estava em um processo de transição após a abolição da escravidão em 1888. O país precisava urgentemente de mão de obra para substituir o trabalho escravo nas fazendas de café, que estavam em expansão, especialmente no estado de São Paulo. O governo brasileiro, portanto, viu na imigração europeia uma solução para suprir essa necessidade.
Chegada dos Imigrantes
Os primeiros italianos chegaram ao Brasil em números significativos por volta de 1870, mas a imigração em massa começou por volta de 1880, alcançando seu auge entre 1887 e 1902. Durante esse período, estima-se que cerca de 1,5 milhão de italianos desembarcaram em portos brasileiros. A maioria desses imigrantes era composta por camponeses pobres, que vieram em busca de melhores condições de vida e oportunidades econômicas.
Os imigrantes italianos eram frequentemente recrutados por agentes do governo brasileiro ou por empresas de imigração que ofereciam passagens subsidiadas e promessas de trabalho nas plantações de café. Embora muitos tenham sido atraídos pela promessa de salários justos e boas condições de trabalho, a realidade era muitas vezes diferente. Muitos imigrantes enfrentaram condições de trabalho duras, com jornadas exaustivas e salários baixos, além de dificuldades de adaptação e barreiras linguísticas.
Contribuições e Adaptação
Apesar das dificuldades iniciais, os italianos se estabeleceram de forma duradoura e contribuíram significativamente para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Nas fazendas de café, eles ajudaram a impulsionar a produção e o crescimento econômico do país. Com o tempo, muitos imigrantes deixaram o trabalho agrícola e migraram para as cidades, onde se dedicaram a atividades comerciais e industriais.
A imigração italiana teve um impacto marcante na formação de cidades como São Paulo e Campinas, que se tornaram centros industriais e comerciais prósperos. Os imigrantes trouxeram consigo suas tradições, costumes, música, culinária e valores familiares, que enriqueceram a cultura brasileira. Hoje, pratos como pizza, massas e polenta, além de festas e celebrações de origem italiana, são parte integrante do patrimônio cultural do país.
Comunidades e Herança Cultural
Os italianos formaram comunidades coesas em diversas regiões do Brasil, particularmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo. Nessas áreas, fundaram bairros, igrejas e sociedades recreativas que mantinham vivas as tradições de suas regiões de origem.
O Sul do Brasil, em particular, recebeu um grande número de imigrantes italianos que se estabeleceram em colônias rurais. Nessas colônias, a herança cultural se manifestava na arquitetura das casas, no cultivo de videiras e na produção de vinho, atividades que se tornaram marcas registradas da imigração italiana na região.
Legado
O legado da imigração italiana no Brasil é vasto e profundo. Atualmente, milhões de brasileiros têm ascendência italiana, e essa herança é celebrada em festivais, na gastronomia, e em práticas culturais que persistem até hoje. O Dia da Imigração Italiana, comemorado em 21 de fevereiro, é uma homenagem ao início dessa grande migração e ao impacto positivo que os italianos tiveram na construção do Brasil moderno.
A imigração italiana não só contribuiu para o crescimento econômico do Brasil, mas também para a diversidade e a riqueza cultural do país, deixando uma marca indelével em sua história e identidade.
Entre o Ensaio e a Vida: A Reflexão Crítica de Brecht sobre o Teatro e a Realidade
Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão, explorou profundamente a ideia de “viver a vida duas vezes” através de seu conceito de distanciamento (ou “efeito de alienação”, Verfremdungseffekt). Esse conceito está relacionado à ideia de que, ao assistir uma peça ou refletir sobre uma situação, uma pessoa deve ser capaz de “viver” aquela experiência não apenas de forma emocional, mas também com uma distância crítica, como se estivesse observando de fora.
Para Brecht, “viver a vida duas vezes” significava vivê-la uma vez no momento presente e uma segunda vez ao analisá-la de forma crítica e consciente. Em vez de ser levado apenas pelas emoções, ele acreditava que o espectador deveria ser incentivado a refletir sobre o que vê, questionando normas sociais, políticas e culturais. Essa perspectiva não é só uma maneira de observar, mas de entender profundamente as estruturas sociais que influenciam a vida cotidiana, com o objetivo de promover mudanças.
Esse conceito teve um impacto significativo no teatro e na literatura, influenciando a ideia de que a arte não deve apenas entreter, mas também transformar, educar e capacitar os indivíduos a reinterpretarem suas próprias vidas e o mundo ao redor. Em resumo, “viver a vida duas vezes” para Brecht envolve uma prática de autoconsciência e análise crítica, onde as experiências são revisitadas para além da primeira vivência, ganhando profundidade e abrindo caminho para a transformação pessoal e social.
Na visão de Bertolt Brecht, a distinção entre ensaiar e viver de verdade é central para compreender seu pensamento sobre o teatro e, mais amplamente, sobre a vida. Brecht via o teatro como um ensaio da vida, um espaço onde os atores e o público podem experimentar diferentes situações e refletir sobre as escolhas e os acontecimentos de maneira segura, distanciada e crítica. Esse “ensaio” permite que tanto atores quanto espectadores vivam uma situação sem suas consequências reais, explorando comportamentos e desenlaces de modo a aprender com eles.
Essa ideia de “ensaio” conecta-se com o efeito de distanciamento de Brecht, onde o objetivo é que o público observe o que está acontecendo no palco de forma analítica, como se estivesse estudando as ações e decisões, em vez de se perder apenas nas emoções. A prática do teatro, então, torna-se um laboratório onde se “ensaia” a vida, questionando normas e estruturas sociais, expondo contradições e abrindo novas possibilidades.
Por outro lado, “viver de verdade” seria estar imerso na própria realidade cotidiana, onde as escolhas têm consequências reais e onde as oportunidades de reflexão crítica podem ser menos evidentes. Brecht via essa experiência da “verdade” como potencialmente limitada pela falta de distanciamento – quando estamos envolvidos em nossas rotinas, é mais difícil perceber as estruturas que nos influenciam, os condicionamentos e as opções de mudança.
Portanto, Brecht propõe que o teatro (o ensaio) pode nos preparar para a vida de verdade, permitindo que, ao sair do teatro e voltar ao mundo, tenhamos uma nova compreensão das nossas escolhas e de como podemos agir. Assim, o teatro oferece uma “segunda chance” de viver, onde o espectador e o ator podem aprender a questionar o que está dado e, potencialmente, transformar a realidade na vida de verdade.
Fonte Portal Membro Blog Paulo Gala
Dia da Consciência Negra: qual a importância de celebrar a data?
Bianca Mingote
Em 2024, o povo brasileiro tem mais um feriado no mês de novembro. Isso porque este ano será a primeira vez, após a sanção da lei n° 14.759/23, que o dia 20 de novembro figura como feriado nacional. A data faz alusão à morte de Zumbi dos Palmares, um dos grandes nomes da história do país, cuja trajetória foi marcada por ter sido um dos líderes do Quilombo dos Palmares – considerado o maior quilombo que já existiu no Brasil.
Em 2024, o povo brasileiro tem mais um feriado no mês de novembro. Isso porque este ano será a primeira vez, após a sanção da lei n°14.759/23, que o dia 20 de novembro figura como feriado nacional.
A data faz alusão à morte de Zumbi dos Palmares, um dos grandes nomes da história do país, cuja trajetória foi marcada por ter sido um dos líderes do Quilombo dos Palmares – considerado o maior quilombo que já existiu no Brasil.
Por que homenagear Zumbi dos Palmares?
Zumbi dos Palmares representa a resistência do povo negro brasileiro à escravidão no país. Ele foi assassinado em 20 de novembro de 1695 e era reconhecido como símbolo da luta pela liberdade e busca da dignidade para o povo negro escravizado.
O Quilombo dos Palmares, onde passou a morar ao longo de sua vida, é considerado por estudiosos como o maior Quilombo da América Latina, com cerca de 20 mil habitantes – todos em busca de refúgio frente à escravidão.
Qual a importância de celebrar a data?
O Dia da Consciência Negra celebra a luta e resistência dos afro-descendentes no Brasil. Com a data, é possível promover reflexões sobre igualdade racial e valorização da cultura afro-brasileira.
A data também reforça o combate ao racismo no Brasil, como afirmou o autor do texto que originou a lei, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP). “Para reforçar em todo o país a luta contra o racismo e a necessidade de reflexão sobre a memória e resistência do povo preto”, disse o senador.
Inclusive, a relatora do projeto na Câmara dos Deputados que deu origem à lei, Reginete Bispo (PT-RS), destacou no relatório que a criação do feriado seria um avanço e que, ainda, “o estabelecimento desta data como feriado nacional é de grande relevância para que essa parcela da sociedade, que representa mais da metade de nossa população, receba mais um aceno público e oficial de sua importância para o Brasil”, afirmou a parlamentar.
Desde quando o dia 20 de novembro é feriado nacional?
Cinema: A tristeza na surdina
Morte e superação nas telas, sem clichês. Até que a música pare aborda o drama de um casal de idosos após a perda do filho. Com a luz outonal da serra gaúcha, equilibra os dilemas espirituais e o contexto sócio-político de fake news, corrupção e uso oportunista da religião
Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS
Estão em cartaz nos cinemas dois filmes que, cada um à sua maneira, tratam do luto depois de uma perda dolorosa: o brasileiro Até que a música pare, de Cristiane Oliveira, e o francês Inverno em Paris, de Christophe Honoré. É preciso dizer desde logo que não se trata de obras depressivas, mas sim, com perdão do clichê, “de superação”.
Cotejar os dois, sem que isso implique hierarquia ou juízo de valor, pode ser instrutivo, pois são duas estratégias narrativas contrastantes, cada uma adequada à especificidade do seu objeto.
No caso brasileiro, um casal de idosos – a dona de casa Chiara (Cibele Tedesco) e o comerciante Alfredo (Hugo Lorensatti) – tenta lidar com a perda de um filho, Marco (Edu Seggabi), que era professor de filosofia e, ao que parece, não se entendia muito bem com o pai conservador.
No filme francês, é um garoto de 17 anos, Lucas (Paul Kircher), que busca aos trancos e barrancos se aprumar depois da morte repentina do pai (Christophe Honoré), com o qual mantinha um relacionamento marcado por reticências e não-ditos.
Curiosamente, as duas mortes em questão foram causadas por acidentes automobilísticos. Mas vamos aos filmes.
Até que a música pare
Ambientado numa região da serra gaúcha em que descendentes de imigrantes falam o talian, dialeto oriundo do norte da Itália, Até que a música pare é um filme feito em grande parte de silêncio e contemplação. Enquadramentos precisos e delicados, diálogos eivados de subentendidos, uma luz outonal que banha suavemente as cores em tom pastel (em especial o marrom da terra e da madeira, o verde das videiras, o azul claro de objetos domésticos) – tudo isso compõe uma atmosfera de melancolia, tristeza em surdina, busca de aceitação.
Nesse contexto, em que testemunhamos a relação de afeto áspero entre o casal de protagonistas, um dos subtemas mais importantes é o da religião. Numa região fortemente marcada pelo catolicismo, em que capelinhas de beira de estrada configuram quase uma via-crúcis, e um altarzinho de Nossa Senhora é transportado de casa em casa, um jovem italiano (Nicolas Vaporidis), noivo de uma moça local, vem trazer a dúvida, sob a forma de uma concepção budista do mundo.
Na cabeça e no coração de Chiara se debatem esses dois modos de consolação: a crença cristã na vida eterna no paraíso e a ideia de transmigração da alma (ou da consciência) a outras formas de vida, numa sucessão de existências marcada pelo karma.
Não é o caso aqui de detalhar o percurso (de resto silencioso) desse dilema da protagonista, mas de destacar o modo sutil como o filme equilibra o drama interior dos personagens e a notação da cultura viva da região (a lavoura, o vinho, o dialeto, a bocha, a escopa), sem descuidar de referências ao contexto sócio-político: a corrupção de cada dia, o uso da religião para fins políticos, as fake news, a apologia das armas, etc.
Uma pequena obra-prima, em suma, que se escora numa atuação sóbria e comovente de Cibele Tedesco, em sua estreia no cinema aos 64 anos.
Inverno em Paris
Em contraste com a progressão cronológica e o ritmo compassado de Até que a música pare, o filme de Christophe Honoré espelha em sua própria forma a turbulência de uma alma adolescente atormentada. A par das angústias “naturais” diante das pulsões e transformações internas que não consegue compreender direito, Lucas tem que se confrontar com o vazio trazido pela morte do pai – e com tudo o que restou de não-resolvido entre eles.
Daí provém a heterogeneidade da forma narrativa de Inverno em Paris: a descontinuidade cronológica, com os tempos se sobrepondo sem aviso prévio, as mudanças de tom e de gênero, o recurso frequente a uma instável câmera na mão, o discurso ocasional de personagens diretamente para a câmera.
No centro do tormento de Lucas está a ideia de que o pai nunca aceitou muito bem sua homossexualidade, embora não tenha jamais tocado no assunto. Entre o afeto incondicional da mãe (Juliette Binoche, excelente como sempre) e a lembrança excruciante do pai, entre a proteção da casa de província e a liberdade vertiginosa de Paris, o rapaz balança, cai, levanta, se aproxima do abismo.
Para um coração adolescente a vida está sempre perto do limite. É desse tumulto que o filme de Christophe Honoré busca dar conta, quase sempre com êxito. E a atuação do jovem Paul Kircher é não menos que fabulosa.
Fonte Portal Membro Outras Palavras
Cultura Viva que transborda na América Latina
O programa brasileiro atravessou fronteiras e inspirou a busca de autonomia de vilas, aldeias e favelas do continente. Seu criador relata como foi possível, a partir do poder comunitário, estimular protagonismos e uma “diplomacia cultural” autônoma entre os países
Célio Turino em entrevista a Deborah Rebello Lima e Luiz Augusto F. Rodrigues
Célio Turino é graduado e Mestre em História pela Unicamp, Pós-Graduado em Administração Cultural pela PUCSP e doutor em Humanidades pelo programa Diversitas, da USP. Autor de diversos livros, publicados no Brasil e no exterior, nos idiomas espanhol, inglês e italiano. Esteve como secretário de Cultura e Turismo na cidade de Campinas (1990/92); diretor de Promoções Esportivas, Lazer e Recreação na cidade de São Paulo (2001/04); secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10). No MinC, foi responsável pela formulação e implantação do Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Como apontado em seu currículo Lattes: “É escritor e, desde 2011, viaja pelos rincões do mundo, sobretudo aldeias, vilas e favelas na América Latina, escutando histórias e escrevendo sobre elas”.
Célio Turino já nos concedeu entrevista em diferentes momentos e sobre diversos temas. Para a edição de um dossiê privilegiamos o transbordamento de fronteiras do Cultura Viva.
Esta entrevista com Célio Turino (E) concedida aos pesquisadores Deborah Rebello Lima, da UFPR, (P1) e Luiz Augusto F. Rodrigues, da UFF, (P2), foi realizada de modo online em 23 de abril de 2024.
P2 – Você considera que há mudanças profundas nos conceitos de Cultura Viva no Brasil e na América Latina?
E – Entendo que sim, principalmente no encontro entre os conceitos de cultura viva e bem viver, mas é algo que mantém o fio, uma coerência com o marco de construção conceitual filosófica da cultura viva desde 2004. Cultura Viva é um conceito biológico, orgânico, e trabalha o sentido de cultura a partir da ideia da biopotência, a potência da vida; é a biopotência que vai conseguir enfrentar a necropolítica e o biopoder. Biopoder e a necropolítica se entrelaçam, hoje isso está muito claro, inclusive em alguns países que estão sendo utilizados como experimento para a necropolítica, como El Salvador, que eu conheço bem e fui inclusive entrevistado pelo atual presidente Nayib Bukele, quando ele ainda era jovem comunicador tuiteiro; ele era da FMLN inclusive2. E no Equador, conheci também o filho de milionário que tentou assumir a presidência do país algumas vezes, que é o Noboa3, igualmente jovem, na faixa dos 30 para 40 anos, fala espanhol com sotaque gringo, porque foi criado em Miami. Hoje esses dois países, El Salvador e Equador são os dois grandes laboratórios da necropolítica na América Latina. O que conseguirá enfrentar a biopolítica e a necropolítica, no meu entendimento, cujos elementos já estavam expressos na formulação do CV, é a biopotência. O conceito da biopotência, da potência da vida, se desenvolve e se pratica pela cultura viva. Desde 2004 eu já percebia que o Cultura Viva iria definir um marco, que depois se expande. Entendo, inclusive, que aquela conceituação mais clássica do Canclini – ele coloca dos cinco modelos de expansão da cultura pela América Latina, que é o modelo biológico-telúrico, que pega o cosmoambiente latino-americano; a expansão pelas relações de Estado, muito a partir das independências no século XIX; a expansão cultural mercantil; a militar, e que teve presença grande nesses modelos dos governos militares do anos 1960, 70, a partir do golpe militar no Brasil e vai construindo um modelo de expansão da cultura em perspectiva autoritária; e o quinto, que ele classifica como progressista, no sentido do histórico-popular. São esses cinco modelos. A Cultura Viva acrescenta (e até conversei com Canclini quando ele esteve no ano passado, aqui em São Paulo) um sexto modelo, que é o modelo comunitário, realizando a integração latino-americana por um outro prisma. Ela difere do histórico popular porque ela não é partidarizada, tendo uma dimensão mais comunitária, apesar do sentido ideológico (amplo) enquanto cultura política e tomada de posição descolonizadora. A diferença com o modelo histórico-popular é que ela emerge de baixo pra cima. Então, acredito que essa é a grande expressão da convergência e salto provocado pelo transbordamento da cultura viva do Brasil para os demais países da América Latina.
Recentemente, nesta semana da entrevista com vocês, realizamos um evento continental em Solidariedade aos Pontos de Cultura na Argentina, por conta dos retrocessos sob o governo de Milei. Eu sugeri o evento, e foi feito assim, em cinco dias de chamada, reunindo gente de quase todos os países do continente. Só não conseguimos ter pronunciamento de Cuba, porque Cuba não acessa o streamyard, que foi a ferramenta que utilizamos. Não teve Cuba e Venezuela, e o Chile deu problema na hora da conexão pela internet. O restante, todos os demais países da América Latina, estavam presentes. Como você consegue criar um evento de solidariedade continental em tão pouco tempo e que vai do sul ao norte do continente? Exatamente porque tem essa liga desse modelo comunitário de baixo pra cima. E que é uma expressão da biopotência. Entendo que essa é a grande contribuição da cultura viva enquanto filosofia, enquanto conceito, e prática, do que as formas de gestão, repasse de recursos, ou planificação governamental.
P2 – Seguindo um pouco essa ideia dos conceitos estruturantes do programa, da política, e as pautas da diversidade, do reconhecimento, da participação? Como você avalia?
E – Então… eu estou aqui pensando para medir pouco as palavras. Mas, enfim, vamos direto. O Cultura Viva praticado no Brasil entre 2004/10 chegou a ser o maior programa de identidade e diversidade cultural do mundo; e de tudo o que eu buscar estudar, observar, eu não vi nada semelhante, nada na dimensão do que nós fizemos no Brasil. Quando depois é expandido pela América Latina, ainda mais. É uma política de diversidade, que tem na diversidade complementar a sua força. É diferente das políticas de diversidade atualmente apresentadas, por favor, coloquem entre aspas, a chamada “cultura woke”4 , entre aspas também, o “identitarismo”. Eu não gosto de usar esses termos porque ao tentarem afirmar as identidades como ideologia, também criam ideologia. Eu não vejo dessa forma. Mas, por outro lado, o que tem prevalecido sob a capa de políticas de diversidade, é uma cultura da hiper-fragmentação, que se constrói a partir da diferença, do que separa. Esse é o mote, buscar e exacerbar as diferenças e a partir dos recortes de diferença hiper-fragmentar a diversidade. A cultura viva é o oposto disso. Ela trabalha a diversidade estimulando os processos de encontro. Então ela… e na América Latina, a gente conseguiu apresentar e praticar dessa forma. Tem grupos de música erudita se comunicando com o ancestral, comunitário, popular, uma busca pela raiz ancestral, um ancestral histórico, que vai reconstruindo ligações, encontros. Por exemplo, no Chile, buscando costurar com a tradição do pensamento e prática de Emilio Recabarren, que foi o fundador do Partido Comunista Chileno na década de 1910/20 e que percorria todo o norte do Chile e depois também o Sul, com os camponeses e mineiros estruturando centros culturais comunitários. A luta social no Chile, a partir do século XX, veio toda a partir de ações de identidade e diversidade cultural. Veja, a experiência com os centros culturais de Recabarren não é ideológica no sentido estritamente partidário, vai além disso. Se pegar ali na história, é Emilio Recabarren e a esposa dele, Teresa Flores, que era uma feminista, tecendo uma cultura emancipatória a partir das raízes do povo. É uma identidade que se faz no processo de diversidade, que é totalmente oposto ao que se vê hoje. Assim, acredito que… – inclusive na hora que as pessoas perceberem o caminho da diversidade como força para encontrar um denominador comum, que está no encontro, não na fragmentação. Quando isso acontecer a biopotência vai se realizar com mais força e aí a gente vai conseguir fazer frente a esse ambiente de total domínio sobre as possibilidades da humanidade, de depressão da potência, coisificando a vida ao extremo. É nessa dimensão que eu vejo diversidade.
No Brasil foi assim também. Por exemplo, lá em São Lourenço do Sul, no Rio Grande do Sul. É uma cidade pequena. A princípio caberia um só ponto de cultura. A cidade fica às margens da Lagoa dos Patos, tem uma grande colônia de pomeranos – e pomeranos são os eslavos germanizados, ainda falam pomerano, assim como em Pomerode em Santa Catarina e no Espírito Santo. A cidade também tem uma comunidade quilombola. Ambos não conversavam, pomeranos se consideravam de uma cultura superior, germanófila. A princípio, pelo tamanho da cidade, caberia apenas um Ponto de Cultura, mas como ter só um? Decidimos pelos dois. Então, eu não poderia trabalhar, não seria legítimo trabalhar a diversidade só com o Ponto de Cultura. Ou pomerano ou quilombola. A princípio a solução seria escolher os quilombolas, que foram os mais excluídos e deslegitimados ao longo da história. Então, para criar um equilíbrio, teria que só fortalecer o quilombola. Mas aí não estaríamos trabalhando diversidade. Por outro lado, se trabalhasse um Ponto de Cultura só com os pomeranos também não. Até porque se diria “ah, mas eles têm uma tradição musical germanófila, grande”. O fato é que eles expressam uma tradição da imigração, de grupos culturais e tudo mais e é uma raiz legítima do povo brasileiro, assim como as demais. Mas também não seria diversidade. Era necessário ter os dois. Quando a optamos pelos dois, em pouco tempo o que foi possível construir por lá? Um coral afro-pomerano. Não incentivado pelo governo, mas sabendo que isso possibilitaria a promoção do encontro. Quando surge o coral afro-pomerano, eles se descobrem de uma outra forma e aí a diversidade se realiza em toda sua potência, porque sintetiza uma outra coisa. Eles se descobrem, inclusive, no caso dos pomeranos, como descendentes de escravizados – pomeranos são eslavos germanizados, e eslavo é a matriz etimológica para escravo. Essas populações germanizadas, nunca foram plenamente tratadas enquanto germânicas, eram usadas como infantaria, inclusive na Segunda Guerra, e para morrer mesmo, como bucha de canhão sob o racismo da ideologia nazista, e mesmo antes. Então, apesar de estarem ali dentro daquela ideologia alemã (atualmente há poucos pomeranos na Alemanha, inclusive o idioma pomerano é mais falado aqui no Brasil do que na Alemanha) com pensamento conservador-idealizado, eles tinham essa falsa consciência de se sentirem na identidade com o germânico. No encontro com os quilombolas e pela aceleração de processo de diversidade promovida pela Cultura Viva, eles se descobrem muito mais próximos com os quilombolas. Não sei como está hoje. Creio que com todos os desmontes que o Ministério da Cultura promoveu ao longo dos últimos 15 anos, talvez, não sei se tenha prosperado, mas foi uma experiência que sintetiza muito esse sentido de diversidade como estimuladora do encontro, contida no conceito, na ideia de ponto de cultura.
P1 – Vou pegar uma carona nesse debate, Célio, um pouco para a gente problematizar exatamente isso. Acho que você discorreu bastante bem das especificidades do debate de diversidade que a PNCV, que a Cultura Viva estava circunscrita lá no começo dos anos 2000, etc. Que hoje a gente está caminhando para outros acionamentos, em alguma medida, até o questionamento do conceito de diversidade em si. Tudo isso virou uma marca dessa Conferência que acabou de acontecer. Essa ênfase na negação, digamos assim, do termo da diversidade. Por outro lado, a gente pode, em alguma medida, fazer um paralelo que a expansão do conceito é também fruto desse exercício de alteridade, tanto do movimento do cultura viva comunitária, dos agentes da sociedade civil, quanto até dos movimentos do próprio Iber, digamos assim, dos Estados fazendo essa movimentação de diplomacia cultural etc. Como é que você enxerga isso assim, esse pano de fundo que vai trazer consequências para o próprio futuro do debate sobre o que é, o que dá conta desse guarda chuva amplo da cultura viva?
E – A expansão da Cultura Viva se deu por uma ação comunitária a partir de indivíduos e coletivos comunitários. E daí ela chegou nos governos (é por isso que ela… conversando rápido com Canclini, ele concordou que caberia, sim, ter esse sexto modelo da expansão comunitária). Ela não se deu por um arranjo entre Estados primeiro, ou da academia, ou redes “de cima”, ela germinou do comunitário e chegou nos Estados. Mais explicitamente quando na expansão pela América Latina. O exemplo da Argentina, que foi o primeiro país a abraçar formalmente a Cultura Viva. Eu já tinha saído do Ministério, era ainda em 2010. Eu fui para lá a convite de grupos comunitários, houve uma marcha na Praça de Mayo, umas 500 pessoas até a Casa Rosada, com os movimentos comunitários pela Cultura Viva, junto com eles eu realizei várias reuniões com deputados e senadores da Argentina. Foi assim que se construiu o processo, também com a Secretaria de Cultura, que é o equivalente ao Ministério, sempre acompanhado dessas lideranças locais. Quero citar porque são para mim muito relevantes. Eduardo Balan, Inês Sanguinetti, Emília de la Iglesia, Silvia Bove, enfim. No início os dois primeiros, que tiveram um papel muito determinante. Foram a Inês, que era uma bailarina, de elite da sociedade argentina, e o Balan, um militante comunitário de esquerda peronista da grande Buenos Aires. Por aí a gente foi. Ao fazer esse movimento, essas pessoas foram ganhando legitimidade no seu país. Depois foi assinado o primeiro convênio de acordo entre Estados, por proposta da Secretaria da Presidência da Cultura da Argentina, com o Ministério da Cultura [do Brasil], isso foi em 2011, ele foi assinado em julho de 2011. Percebam, foi uma construção de baixo para cima.
No mesmo ano, em agosto, foi aprovada a primeira Lei da Cultura Viva, antes do Brasil, que foi em Medellín. Também estive lá, foi a partir da iniciativa dos movimentos comunitários. Fui para encontro com prefeito, secretários, palestra na Câmara dos Vereadores, intelectuais e coletivos culturais… Depois foi em Lima, em 2012, foi uma vereadora de lá, a Lula Martinez que tomou a dianteira, ela veio a São Paulo para conversar comigo – também por estímulo do pessoal de movimentos comunitários de lá – nos encontramos e ela levou de volta uma proposta de lei, a Lei Cultura Viva em Lima. E daí depois começou a pipocar em um monte de lugares pela América Latina. Bem antes da lei brasileira, que é de 2014.
Mesmo o movimento IberCultura Viva, ele foi resultado desse processo “de baixo para cima”. Esse já foi um pouco mais construído, mas tem o componente de “abaixo”. Em 2009 nós organizamos em São Paulo, aí eu como secretário da Cidadania Cultural, o segundo Congresso Ibero-americano da Cultura. O primeiro foi no México e estive lá para propor que o segundo congresso fosse no Brasil. No México apresentei a proposta de forma mais organizada para os presentes, coletivos, intelectuais e gestores, e governos, a ideia da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura – são congressos da SEGIB – Secretaria dos Estados Gerais Ibero-americanos. O tema escolhido para o congresso em São Paulo foi Cultura e Transformação Social. Fizemos um catálogo bem bacana, em português e espanhol. Desse processo iniciado em 2009 resultou a criação do IberCultura Viva no Congresso da SEGIB (Ibercultura) de 2013, em São José, na Costa Rica. A proposta foi do Manuel Beregond, que era ministro da cultura da Costa Rica e músico, ele que propôs dar o nome de IberCultura Viva. Inicialmente, o único voto contrário a esse nome, por incrível que pareça, foi do Brasil, mas aí ficou meio constrangedor e houve outros ministros falando que eles estavam dando esse nome em homenagem à experiência brasileira, e assim se definiu o nome IberCultura Viva para o programa – eu acompanhei de fora porque não estava em governo, mas conversando com ministros de vários países. Para chegar nesse momento, em paralelo ao Congresso da SEGIB, realizamos outro encontro em San José, com mais de 500 pessoas de toda América Latina, de Pontos de Cultura que já começavam a pipocar pelo continente, ao final perto de 1.000 pessoas, porque vieram muitos de coletivos da Costa Rica. Assim, nós fizemos a mobilização, com um grande cortejo pelas ruas de San José e o ministro Manuel com o seu acordeón, foi um momento bonito. Naquele estágio, em 2013, eu já tinha percorrido toda a América Latina e todos esses lugares. Já tinha estado com o ministro da Cultura na Costa Rica, criando relações próximas, de respeito e amizade, de movimentos comunitários e ministros de Estado e intelectuais e políticos. Também no México, El Salvador, Colômbia…
A Colômbia sempre foi um pouco particular, pelas condições do país, a Cultura Viva é muito abraçada por lá, mas não pelo governo central, que, até o governo de Petro, eram de direita. Foi muito particular, trilhamos pelas cidades, Bogotá, em Cali, Medellín. As prefeituras são muito fortes, inclusive no governo do Gustavo Petro, quando ele introduziu o programa Cultura Viva na Prefeitura de Bogotá, onde ele foi prefeito. Era pelas prefeituras, não pelo governo central. Quando chegou no congresso da SEGIB na Costa Rica, estava um processo já construído. Notem que sempre foi uma construção comunitária, em todos os lugares, com agentes locais.
Dou exemplo: na Bolívia. Eu fui na Bolívia, a primeira vez em 2012, perdi a conta de quantas vezes estive lá. Fui a convite do Ivan Nogales, uma pessoa muito importante para a cultura viva, querido amigo. Ele que organizou o primeiro Congresso Latino-americano da Cultura Viva em La Paz com 1.300 pessoas, de 17 países. Fiquei hospedado na casa dele, que é também um centro cultural maravilhoso em El Alto, são cinco andares, que tem espaço de teatro, um monte de coisas, todo construído com sucata e materiais de demolição…. Ivan é um criador, era, porque já faleceu. E mais, era assim, um agente comunitário de teatro muito bom, talentoso, pensador, agitador, escritor, tudo. Mas que não era considerado no país, ao menos pelos agentes de Estado. Quando eu vou para lá, já havia passado dois anos da minha saída do governo, mesmo assim eu fui tratado como um “pop rock”, a embaixada brasileira deixou um diplomata para me acompanhar, fiz um tour pela Bolívia, de três semanas, fui nas principais cidades, pueblos, com voo da vice-presidência, foi a vice-presidência, que assumiu a minha viagem, também editaram meu livro na Bolívia, com capa bem bonita, e ofereci ao Ivan para escrever o prefácio. Quando acabou tudo isso, o Ivan Nogales era um líder comunitário reconhecido e respeitado pelas autoridades públicas do país, pelo pessoal dos governos. Ele já sai como uma liderança, como um porta-voz, a ponto de ter a capacidade de, no ano seguinte, organizar o Congresso Latino-americano, lá na Bolívia, com poucos recursos. Quando eu digo que organizamos um congresso latino-americano com 1.300 pessoas de 17 países, com orçamento total de US$ 35 mil (afora o deslocamento das pessoas), poucos acreditam, mas foi isso mesmo, eu próprio tive que completar US$ 2.000 do bolso. E a coisa foi feita, maravilhosa. Foi assim em todos os lugares (em El Salvador com orçamento maior, US$ 100 mil, do governo de lá). Foi desse jeito que virou. Percebam, não dá para dizer que a expansão do Cultura Viva foi uma ação de governos, houve proximidade, apoios, mas sobretudo, é resultado da potência da articulação comunitária e popular dos Pontos de Cultura. Veio dos comunitários exclusivamente? Também não diria, foi uma pressão, em alguns lugares com mais um pouco de pressão. Na Guatemala, nós fizemos uma comparsa (passeata festiva) com 1.000 pessoas na Cidade da Guatemala, em 2011. Uma coisa linda, do comunitário, de um jeito que ia estabelecendo processos de diálogo e os governos centrais ou regionais e municipais, os parlamentos, variando um pouco, foram encampando até virar um programa intergovernamental, que é esse da Secretaria Geral dos Estados Ibero-americanos.
P1 – Nos permita também fazer uma provocação, assim… em alguma medida eu entendo quando você está ponderando essa dimensão do de baixo pra cima, do agendamento comunitário etc. Mas em alguma medida, isso apaga, entre muitas aspas, a sua dimensão no processo. Porque nesse percurso a gente pode dizer talvez, fazendo uma analogia, que você fez um esforço, quase de diplomacia cultural. Ainda que você não tivesse mais no Estado brasileiro, você representava o Estado brasileiro. Você era a personificação da principal política, de que os grupos comunitários estavam ali na pressão para os seus governos executarem ações da mesma direção etc. Então, de alguma forma tem essa pressão de baixo pra cima, mas que talvez ela não alcançaria esse lugar se você não tivesse nesse fator diplomático, digamos assim, fazendo uma espécie de mediação de processo. Negociando uma espécie de um agendamento político e ir fazendo uma forma de representação. O que você acha?
E – Você tem razão. É que, pela minha personalidade, meu jeito de ser, fico meio assim, me desprendendo de muita coisa. Mas você tem razão. Eu diria, se você me permite, foi o mesmo que talvez eu tenha levado discursivamente no Brasil, mesmo dos Pontos de Cultura daqui, levando-os a acreditarem que foi totalmente “de baixo para cima” (às vezes eu reflito sobre isso)… eu falava tanto que: “o Ponto de Cultura já existia, ele só foi potencializado. Esse movimento foi de baixo pra cima”. Eu acreditei tanto nisso, que talvez eu tenha criado um certo mito, um mito de que tudo foi de baixo para cima. Mas não foi, não dá para dizer que foi espontâneo. O Estado teve um papel e eu tive um papel. Mas eu tenho dificuldade em me colocar dessa forma, é da minha personalidade meio autista. Quem me conhece sabe que que sou muito tímido, tenho hiperfoco e não consigo “jogar conversa fora”, não consigo ficar nas rodas, menos ainda nas de poder, não gosto desse tipo de conversa, há assuntos que não me despertam interesse e nutro um quase desprezo por eles, detesto patota, grupos de interesse, solenidades de poder, prefiro ficar à parte, só observando. Isso tem vantagens, mas também me traz muitos problemas. De fato, se não tivesse havido o Célio Turino, conceituado Cultura Viva e Ponto de Cultura, suas ações… Houve, e há, muita leitura, teoria, conceitos profundos, conexões filosóficas e muito trabalho para chegar à Cultura Viva. Houve muito planejamento e execução (e escrevi tudo em duas noites, em um quarto de hotel em Brasília, antes mesmo de minha nomeação sair no diário oficial). Foram condições determinadas, ali no Ministério da Cultura, naquela composição específica, com Gilberto Gil ministro e Juca Ferreira tendo me selecionado para trabalhar como secretário e dando o apoio inicial, sem essas condições o Cultura Viva e os Pontos de Cultura não teriam acontecido. As ações culturais nas comunidades já aconteciam, só que não eram vistas por aqueles no poder, esse foi um dos méritos do Cultura Viva, mas não só.
Na verdade, Ponto de Cultura é uma qualidade diferente da ação cultural-comunitária dispersa, ele é resultado da potencialização daquilo que as comunidades fazem, mas que ganha outro patamar quando se transforma em Ponto de Cultura e se articula em rede, ele passa a ser uma outra coisa e isso só foi possível pelo conceito, pela filosofia, e isso teve que ser formulado e executado, e não foi pelo movimento em si. Sabe aquele verso do Gil? “O povo sabe o que quer / mas também quer o que não sabe”. Ponto de Cultura é isso. Na América Latina, eu concordo, houve uma demanda originária mais “de baixo para cima”, mas no Brasil foi preciso surgir primeiro a proposta que veio de mim e encampada pelo Estado, para depois as comunidades quererem e assumirem. Desculpem a sinceridade e ao mesmo tempo, obrigado pela oportunidade em poder dizê-lo pela primeira vez. Na América Latina também seria isso. Mas eu já estava mais experiente, então eu fiz de forma deliberada sim, a fortalecer essas lideranças comunitárias, como no exemplo do Ivan, que é uma grande liderança, excepcional, tenho muito carinho por ele e da mesma forma que ele prefaciou a edição boliviana de um livro meu eu fiz o prefácio de um livro dele, Descolonização do Corpo, tanto na edição original como na brasileira. Estabelecemos uma relação de irmandade de almas, fomos na trilha de Che Guevara e tal, muitas histórias que contarei um dia. Sabe que discutimos sobre isso, inclusive, também sobre o significado simbólico da Cultura Viva, nossa intenção era, depois de cobrir toda a América Latina, chegar com um congresso da Cultura Viva nos Estados Unidos. Quem sabe… Trocamos muitas ideias sobre esse simbolismo. Nós não fomos atoa na trilha do Che Guevara. Dissemos: “Vamos fazer um movimento revolucionário de uma guerrilha, de uma outra forma”. E fizemos isso, pela forma cultura, mas sem perder o sentido de radicalidade.
Em cada lugar que eu ia, busquei fortalecer e identificar esses pontos de potência entre os pontos, aquelas pessoas que tinham realmente algo muito, muito especial para oferecer, e fortalecê-las, dar destaque. No México fiz isso, em El Salvador, o Júlio Monje e a mulher dele, Irma ex-guerrilheira, no meu livro, Por todos os caminhos – Pontos de Cultura na América Latina, editado pelo SESC, a história dela dá um filme, eu vou contando a história dessas pessoas, e articulando com a história dos países e dos movimentos comunitários de cultura..
Em cada lugar… Na Guatemala, um pessoal, um casal que tocou a caixa lúdica, a Caja Lúdica, eles nem da Guatemala são, são originários da Colômbia e foram viver lá, agora voltaram às montanhas da Colômbia para o merecido descanso. Conto a história deles, primeiro foram para a Nicarágua, se desencantaram, e assim chegaram na Guatemala. E foram, chegaram, fizeram… Valorizo essas histórias de forma deliberada, porque eu entendo que aqui tem uma combinação entre o filosófico, conceitual, que é muito de vanguarda que se apresenta no Cultura Viva e o do “sentir pensar”, que é o da sensação, da emoção. Sem pessoas como essas a cultura viva não existe, “pessoas extraordinárias”, como no livro de Hobsbawm. Eu procurei praticar isso.
Passado o tempo as pessoas imaginam quealguém “foi lá, levou a ideia da Cultura Viva, foi no congresso acadêmico, uma reunião governamental. Aí foi jantar com as autoridades e nisso a Cultura Viva surgiu”, pelo convencimento da cúpula. Não foi assim. Eu ia nos lugares das autoridades e nas favelas, nas aldeias (é onde mais gosto de ir, ver e ouvir). Sabe o que é subir morro em Cusco? Cusco está a 3.600 metros. Eu subi morro porque soube que havia um grupo de jovens que praticava capoeira, de jovens indígenas quéchua e aymará. Essa era a expressão cultural que eles adotaram: capoeira, que aprenderam de alguém que passou por lá. Aí eu fui lá conhecer, escrever sobre eles, conversar sobre eles, entender. Para mim, que tenho bronquite, não é fácil. Fui a San Antonio de los Cobres, 4.000 metros de altitude, na La Puna, Argentina. Uma coisa difícil em lugar desolado. Era a cidade com maior índice de suicídio de jovens na Argentina em relação à população. Eles se atiravam de uma ponte, a ponte das nuvens. Então eu fui lá, uma agente argentina que foi conosco desmaiou. Por que? Pela altitude. E fui, mesmo com asma. E fotografamos, conversamos e vi filme junto com os jovens, trocamos e-mail; até poucos anos atrás trocava correspondência com as meninas e conversava… Isso foi criando uma rede de afeto muito profunda. Isso deu liga. Digo que desconheço outra política pública que tenha se consolidado assim. E as pessoas vem, se juntam e se reúnem e fazem. Então, quem quiser entender a razão do transbordamento da filosofia e conceitos da Cultura Viva por outros países tem que compreender esse processo, até na Indonésia eu levei as ideias da Cultura Viva e que agora estão lá, assim como na Europa.
P1 – Você falou um pouco desse movimento internacional, e que você se preocupou muito nesse olhar para as lideranças e esse trabalho que é quase antropológico etc., que guarda muita semelhança com o que você fez quando era gestor, fazia a mesma coisa. Você ia no Ponto pra conhecer, etc. O que você acha que tem/teve de diferente em relação ao contexto brasileiro? Foi o fator governamental? Foi a perda de espaço na agenda? O que você acha que é diferente?
E – No Brasil foi meio natural, não foi muito pensado, pelo meu jeito de ser; na América Latina, foi pensado, eu fiz sabendo o que estava fazendo. Eu chegava no lugar já querendo identificar onde que eu ia jogar luz ali, emprestar assim, digamos, o meu prestígio. Dois anos atrás, fui no Chile, aí a Irina, esposa do Boric, pede um jantar comigo, emocionada, leu tudo que eu escrevi. Ela é antropóloga, a primeira dama do país. A partir desses encontros eu me preocupo em repassar, digamos assim, o meu prestígio, para agentes locais. Em alguns lugares, diminui um pouquinho, mas em outros continua tendo de uma forma bem grande. No Brasil, eu não estando envolvido há 15 anos, vou nos lugares que me chamam e os que mais me alegram são os mais periféricos e esquecidos. No fundo isso faz parte do conceito e da filosofia, a prática desse sentirpensaragir. Ao menos é algo que me fez bem.
P2 – Há também aqueles que acham que o Cultura Viva foi o estopim da participação, tanto nacionalmente, quanto na própria base comunitária, ou seja, os próprios territórios mais do que qualquer processo de conferências, qualquer outra coisa que tenha sido o Cultura Viva, meio que Na Trilha de Macunaíma, meio que o construtor de uma identidade participativa. Eu acho que vai um pouco nessa perspectiva. Então eu queria ver se você também acha. E, sendo assim, o que a gente pode esperar desse movimento participativo enquanto resistência aos processos de desmonte ou de retrocesso, como com Milei na Argentina, quanto na própria paralisação que teve no Brasil. Pelo menos até o final do governo Bolsonaro. Se há outros movimentos na América Latina também de desmanche? Como é que você vê isso e até que ponto esse estopim é ou não é suficiente, uma coisa mais demorada, para fazer frente a esses desmanches todos, se é que você reconhece o Cultura Viva como esse estopim da participação efetivamente?
E – Eu reconheço, e acho bom você relembrar o Na Trilha de Macunaíma, que é o meu mestrado e o meu livro que foi lançado quando eu estava no Ministério, inclusive eu não trabalhei muito a divulgação dele. Eu terminei o livro em 31 de dezembro de 2003, eu entrei na Secretaria do Ministério da cultura em 31 de maio de 2004. Estava tudo muito fresco. Eu me identifiquei muito com Mário de Andrade. Mentalmente converso com ele até hoje, e o sigo, imagino as soluções que ele encontraria se em minha posição. Quando criamos o estúdio multimídia, foram três inspirações, três fatores, dois foram inspirações muito explícitas de minha parte, no primeiro vídeo que gravei dando depoimento sobre a Cultura Viva, que está no Youtube, eu digo. Teve a missão Folclórica de Mário de Andrade, que era um olhar de fora e Mário, como diretor de cultura em SP, financiou para fazer o registro da cultura popular. Agora, com a tecnologia, eu teria condição de realizar a mesma missão folclórica Mário de Andrade pelo olhar de dentro, pelos Pontos. Outra inspiração foi o Sérgio Buarque de Holanda, por quem eu tenho uma profunda admiração… desde os 11 anos de idade, tive a felicidade de ter por livro didático um livro escrito por ele, imagine, em escola pública, desde então li tudo. Sérgio Buarque falava que a grande frustração dele foi não conseguir escrever uma história do Brasil de baixo para cima – é uma entrevista dele. Então, eu fiquei com isso na cabeça, quando eu uso o subtítulo do livro Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima foi lembrando disso, como uma homenagem. E o estúdio multimídia faz isso. A outra influência foi do pessoal da cultura digital, o Cláudio Prado. Foi mais ou menos isso. Por isso é explícito estar “na trilha de Macunaíma”. Às vezes eu até respondo: quer entender como é que cheguei na ideia do Ponto de Cultura? Leia esse livro que eu escrevi, que é o Na Trilha de Macunaíma. Você vai ver que ali estão as pistas para isso.
Voltando ao que a Deborah disse. Enquanto no Brasil foi um processo realizado de forma construtivista, fenomenológica, na América Latina foi mais planejado. Eu sabia bem onde queria chegar. Nas mais de 50 viagens que eu fiz, muito profundas, indo para muitos lugares – era muita coisa – eu sabia exatamente o que eu queria de mim. Era o que eu tinha que entregar para as pessoas, mesmo que as pessoas que estavam me recebendo não compreendessem bem isso. Foi assim. E tinham ainda outros diálogos, isso permitiu a criação de uma rede de intelectuais orgânicos pela América Latina.
P2 – Eu quero retomar uma coisa. Pensa comigo. Quanto a questão da participação e do Cultura Viva como sendo a potência de um devir, não plenamente realizado nesse sentido. Só que uma participação, uma participação não realizada efetivamente, ela não passa pela formalidade de conferências, de conselhos, uma participação que nasce e se fortalece meio que na linha do Sérgio Buarque de Holanda, ali como um “semeador” num mundo cada vez mais “ladrilhador”, cada vez mais cartesiano. Essa possibilidade, a semente. Eu não sei se foi essa figura que você trouxe do Raízes do Brasil de Sérgio Buarque, mas eu gosto muito dessa tensão que ele faz entre o ladrilhador e semeador.
E – É, não está explícito. Mas eu acho que você tem razão. Eu acho que está muito impregnado.
P2 – E na perspectiva, ser o semeador de protagonismos, de autonomias, de uma dimensão político, público-político dos direitos sociais cada vez menos exercidos na sua possibilidade, em sua plenitude, então eu vejo um pouco a Cultura Viva como sendo um pouco a potência de intervir nessa perspectiva.
E – Concordo com você e agradeço até por colocar. Interessante, inclusive, que o Sérgio Buarque de Holanda, hoje, é meio jogado assim, para um índex, mesmo acadêmico. Eu vejo que ele tinha e tem uma contribuição extraordinária, insights muito preciosos para o Brasil. Depois de sua pergunta vou começar a assumir mais essa influência do pensamento Sérgio Buarque na construção de Cultura Viva. Sempre deixei muito explícito o Mário de Andrade até pela minha identificação com ele. Mas do Sérgio eu não falei tanto, e eu gosto demais do Visão do Paraíso. Vocês pegaram bem, e é verdade, isso da semente e do semeador, está sempre presente nos meus pensamentos, inclusive no título de minha tese é Viagem à Semente. Agora estou terminando outro livro, um livrinho, curtinho, o título será Sementeira. Então tem, vem mesmo do Sérgio Buarque.
P2 – Vou seguir aqui mais um pouco e voltar no IberCultura Viva um pouquinho e ver uma coisa no movimento que surge a partir do Brasil. Protagonismo importante. Como é que você vê na sequência desses dez anos do Iber, se o Brasil tem conseguido protagonizar uma liderança ou não nesse processo?
E – O reconhecimento externo ao Brasil é muito grande, quanto à efetividade e formulação. Note que é um paradoxo, porque na medida que o Cultura Viva expandia pelo mundo ele era desmontado no Brasil, e isso a partir de 2011… aquele curso da CLACSO, que teve já várias turmas de pós em cultura de base comunitária, não passou tanto pelo Brasil. Foi em 2012, na Rio+20, que conversando com Ivan Nogales quando ele chegou com a Caravana da Cultura Viva, que saiu de Copacabana, no Lago Titicaca, foi até Copacabana na Rio+20, no Rio. Eles vieram em um caminhãozinho desses bem antigos e também um microônibus, desses modelos de ônibus escolar norteamericano, vieram umas 20 pessoas de diversos países. Tramamos quando da minha primeira ida à Bolívia. Eu que organizei as paradas e foram recebidos nos Pontos, não tinham dinheiro para pagar nem a gasolina do trecho seguinte. Era uma parada que bancava a seguinte. Funcionou tudo tão bem que deu tudo certo e aí, na hora de voltar, fizemos uma plenária com pontos de cultura na Rio+20 e lançamos a proposta de um congresso latino-americano da Cultura Viva. Inicialmente pensou-se no Brasil, mas eu não fui a favor. Sugeri: “Vamos ao coração da América do Sul, Bolívia, que sempre fica à parte”. Aí, na Bolívia, em 2013, propuseram: “Ah, vamos fazer no Brasil. O Brasil tem mais recurso”. E aí o pessoal de El Salvador pediu e falou: “nós sempre ficamos fora dos circuitos”, e eu os apoiei. Como eu falava, era meio tranquilo, não é impositivo, mas o pessoal concordava, assim na hora. Então o segundo congresso foi em El Salvador e o congresso seguinte foi em Quito, alguns disseram “Ah, não vamos fazer em Quito, não há muitos Pontos por lá, estão começando agora”; mas saiu muito bem. Então… Com isso o Brasil perdeu esse protagonismo, apesar de partirem daqui as grandes referências.
P2 – Sobre a escritura do seu livro Por todos os caminhos: Pontos de Cultura da América Latina, de 2020. Você foi escrevendo a partir das suas viagens, você fez isso em memória posterior? Conta pra gente um pouquinho.
E – Foi posterior. Esse foi a pedido do Papa. Eu assinei um convênio com o Vaticano, via o programa Scholas Occurrentes, assinei como pessoa física e o Papa abençou o convênio. Foi assim. Me comprometi a escrever um livro mostrando as histórias na América Latina. Nas diversas vezes que eu estive com o Papa Francisco, eu falava das histórias, eu entreguei a versão argentina do Punto de Cultura – cultura viva em movimiento, eu ia contando as histórias das comunidades na América Latina, aquelas que eu estava visitando, aí ele: “por que você não faz um sobre a América Latina?” Por que o Papa se interessou pelo Ponto de Cultura? Porque tem uma proximidade muito grande com um conceito desenvolvido por ele: a “cultura do encontro” um conceito que é dele, do Jorge Bergoglio. No livro Por todos os caminhos eu conto a história do desenvolvimento do conceito da cultura do encontro, pelo então Bispo e depois Arcebispo, Bergoglio. Então foi isso que fez com que ele se interessasse, gostasse, enfim. Assessores dele procuraram quem havia conceituado os Pontos de Cultura e me convidaram para dar uma palestra no Vaticano, foi assim, aí ele me estimulou a escrever o livro. Numa das vezes que eu fui lá, eu assinei o convênio de que ia fazer o livro, com esse reconhecimento, consegui apoio de captação de recursos junto ao Instituto Olga Kos e eles conseguiram o financiamento pela Lei Rouanet com o Bradesco. Vira e mexe tem alguém que escreve para mim que foi numa agência do Bradesco e viu o livrão lá. É um livro bonito, e, formato de livro de arte, saiu com 3.000 exemplares, em quatro idiomas. Ele foi lançado em Castel Gandolfo que não fica em Roma, mas é território do Vaticano, como Palácio de Verão dos Papas, lá onde passou aquele filme dos papas. Francisco transformou o castelo em um lugar de encontros. Ele cedeu o espaço para eu lançar o livro lá. Foi em 2018. Foi muito bom porque a Silvana, que é minha companheira, organizou as viagens para nova escuta, em 11 países: todos os lugares que eu retrato no livro, quase todos eu já conhecia, já tinha mais ou menos a ideia da história e alguns foram de descoberta.
Mas algumas foram descobertas nas viagens, como na Guatemala, que para mim foi um choque, era do Obama, foi o governo dele que (note, não foi no governo Trump) fez da Guatemala um país para expulsar imigrantes de toda América Central, deixando-os reclusos em Centros do Imigrante, eufemismo para prisões. Eles são capturados nos EUA e mandados pra Guatemala, que recebe um dinheiro para isso. Ali tinha um ponto de cultura, que conheci na viagem, o Frida Kahlo – era com um casal de artistas plásticos. Eu escrevi uma passagem bonita sobre eles. Eles fazem o trabalho numa casa de migrantes exclusiva para crianças que eram presas lá nos Estados Unidos, separadas dos pais e expulsas do país. E aí eu conto a história de três crianças. Três irmãs foram presas no Texas, porque elas estavam fazendo travessuras na rua. Os pais não estavam presentes e como não eram documentados, e com origem em El Salvador, por isso não conseguiram resgatá-las. Daí o governo norteamericano as deportou para ficarem numa prisão que é chamada Casa do Migrante, em um país estranho. Sem parentes, sem ninguém. O único momento de humanidade que elas tinham era o trabalho do ponto de cultura que ia lá. Um dia decidiram pintar nuvens, mas não conseguiam ver o céu para pintar, as grades não permitiam. Então, enfim… Essa foi uma história que eu descobri lá na viagem, mas o grosso foi organizado previamente, já sabia onde eu queria ir e tal. Ao todo foram 11 países, creio que em permanência, uns 60 dias, viajando por meses, mas eu ia e voltava. O livro foi feito assim. Diferente do Ponto de Cultura, que eu escrevi de memória, e a quente, no meio das viagens que eu fazia, entremeando com capítulos conceituais, que também há nesse, quando aperfeiçoo e aprofundo conceitos. Era assim, eu ia para Araçuaí e no aeroporto e avião abria o laptop e escrevia, me inspirei na música Notícia do Brasil, do Fernando Brant e Milton Nascimento, e dialoguei com ela. Outras vezes eu fui escrevendo de memória em hotéis.
Esse não, eu fiz planejado. Ele tem até outro nome. O livro que eu lancei em Castelgandolfo e no Memorial da América Latina em SP, tem o título Cultura a unir os povos, que em nova edição virou Por todos os caminhos, pelo SESC. É que eu não queria confundir com a edição de arte, né. Então ficou um livro bem bonito e eu fui com a Silvana e o Mário, que é meu irmão, ele é fotógrafo, grande fotógrafo… Foi muito boa essa viagem, essas viagens…. Ele ia fotografando e fazendo os registros; nesse livro, tem mais fotos, são muitas, fotos grandes, bonitas e muita gente, eu queria mostrar os rostos… Um pouco dessa coisa de ir consolidando as lideranças. Foi assim. Esse livro serviu também para isso, tem as fotos das pessoas. Eu conto a história da pessoa que eu queria destacar, porque são histórias importantes, mas que sempre ficam esquecidas pelas “grandes” narrativas.
P1 – Quando você estava na gestão, foram feitas muitas publicações sobre a Cultura Viva. Você tinha muito esse diálogo com os pesquisadores, você chegou a fazer um conselho consultivo etc. De encontro lá de Pirenópolis e tal. Você tem esse acervo de tudo que você, que foi publicado na época, que pelo menos você era gestor?
E – O que foi publicado? Sim, as atas não. O material bruto não, mas o que saiu em catálogo eu tenho, mas deve estar no Ministério também guardado, tem não?
P1 – Não tem; isso que é assustador, não tem.
E – Isso tudo estava lá, montei até um museu da Cultura Viva. Museu mesmo, convidei o Benê Fonteles para a montagem. Na sede da Secretaria tinha um espaço que era o Museu de todo o acervo que eu recebia, presentes, prestações de contas, fotos…
[Célio mostra algumas das publicações que tem em casa] Esse aqui, esses foram os volumes que saíram da revista Raiz. Ela era feita com recursos da Secretaria e verba do PNUD. A exposição do Emanoel Araújo… eu chamei Emanoel Araújo para ser curador de uma exposição no Museu AfroBrasil. Fizemos boas viagens. Fomos juntos, a gente ia ali pelo Cariri… vejam que bonito catálogo, esse outro é do Bené Fonteles: Não é erudito nem popular? Outra exposição, feita na Teia de Brasília, no Museu da República. Procurava isso porque eu… sempre houve essa preocupação com a estética. Fiquei muito preocupado no começo, de o programa ficar muito nessa ideia de que ele era um programa social de cultura para a periferia, que as crianças faziam, falando aqui com ironia, “um batuquezinho e tal” e o povo de fora falando: “ai, que lindo, pelo menos não está na droga, tirou a criança da droga”. Esse tipo de discurso eu abomino. Então sempre teve essa preocupação estética. E de reflexão houve muita troca com artistas e intelectuais, inclusive de fora do país. Contratei o Jorge Mauttner e o Nelson Jacobina para percorrerem diversos Pontos de Cultura pelo Brasil. Paul Heritage, que é da Universidade de Londres e viveu no Brasil, ele até lançou um livro meu na Inglaterra. Tinha o casal, Maria Benitez e o Bernd Fisher, do Instituto Vygotsky, ele alemão, ela era argentina. Sempre houve essa preocupação. A gente criou um conselho internacional na Teia de Fortaleza, pessoal convidado, vinha, enfim, essa foi uma preocupação exatamente porque eu não via o programa como uma política pública, só como uma política pública, de governo ou mesmo de Estado. Queria aprofundar no sentido do conceito e filosofia, enfim, e nos encontros que têm por aí a fora, eu também sigo tendo contato com muita gente. Povo de universidade…
P1 – Nesse processo de transbordamento de fronteira, ao que você atribui um peso maior a esse movimento dos pontos de cultura no exterior? Esse interesse acadêmico pelo tema, pela política? Os eventos como o Fórum Social Mundial, por exemplo, que teve uma ocupação dos Pontos de Cultura muito forte nos fóruns e o debate sobre a política, enfim, a que que você atribui esse movimento?
E – Acho que foi o entrelaçamento no Fórum Social em Belém, em 2009, se tiver que pegar o marco da expansão para fora, o momento seria aquele. E o encontro, o Congresso da SEGIB de Cultura Latino-Americana em 2009 em SP. Esses dois, e tem o terceiro marco, que foi a montagem do Quixote. O Quixote, para mim, foi um laboratório, assim, muito diferente. Na preparação para o Congresso do IberCultura, em 2009, eu recebi uma proposta do Pombas Urbanas, querendo uma montagem continental do Quixote, em que cada país viria com um Quixote e um Sancho Pança, ao menos, e cada país apresentaria uma cena. Esse espetáculo foi feito para duas apresentações, apenas. Foi no Sesc Pompéia, custou caro e me criticaram muito por estar bancando o financiamento disso, fiz em parceria com o Sesc. Nós trouxemos 100 pessoas de grupos de teatro em comunidade da América Latina toda, acho que foram 13 países, eles ficaram 15 dias no Ponto de Cultura Pombas Urbanas, na Cidade Tiradentes, preparando – o diretor cubano, o dramaturgo colombiano – e montamos o espetáculo. Eu diria que a expansão do Cultura Viva, não é que saiu daí só, mas aí deu a liga, porque eram todos esses de grande referência, o Caixa Lúdica lá da Guatemala, TNT de El Salvador, o Nossa Gente de Medellín. Todo esse povo passou lá… Aí é que deu a amarração comunitária, foi na montagem do Quixote.
P1 – Então você fez um movimento. Dá para dizer que a gente tem um movimento comunitário e que tem um movimento governamental e um movimento externo…
E – E intelectual e acadêmico. Teve isso e fizemos o seminário Pirenópolis, bem diferente na metodologia. Na minha tese de doutorado eu usei muito desses anais, tinha gente que eu nem lembrava ou conhecia direito, um antropólogo italiano que fez uma percepção muito boa. Eu transcrevi parte dela na minha tese. Eu não o conhecia, ele veio convidado pelo Máximo Canivate, que já morreu, inclusive. Ele morava aqui no Brasil. Entenda que nunca fomos rígidos e burocráticos, se a ideia era boa e viável, acolhíamos; que mal há em incluir mais gente? Ele convidou esse antropólogo que estava no Brasil por outros estudos e ele foi. Foi bom porque como antropólogo ele faz uma análise do que estava vendo, não estava contaminado com nada, nem conhecia o programa. Como um bom antropólogo ele analisou o encontro. Então, tinha essa coisa né? Ah, com o George Yúdice também. Tem muita gente aí que fomos criando uma teia com o respaldo acadêmico, digamos, a busca pelo respaldo acadêmico, pelo comunitário, pelo governamental, pelo artístico e sensível, pelas amizades.
Tentei dar um passo para o o respaldo econômico alternativo, assegurando autonomia financeira para os Pontos, via a Economia Viva. Inclusive fiz uma negociação com o Pão de Açúcar [supermercado] para ter a gôndola do Cultura Viva. Eles estavam com um projeto que era uma gôndola de projetos artesanais. Assim, eu propus uma gôndola para vender produtos dos Pontos. E também com a Infraero, queria fazer um quiosque do Cultura Viva nos aeroportos. Mas isso não vingou. Não consegui. Se tivesse conseguido eu teria dado o salto na autonomia financeira para os Pontos de Cultura, para além dos recursos governamentais. Pena. Autonomia financeira é necessária, agora, com a ideia com o Instituto Latinoamericano, a proposta do Instituto é que ele tenha um streaming Cultura Viva com assinantes, que ele tenha uma agência de notícias e streaming para lançamento de música. Enfim… E mais umas coisinhas aí, que vamos tentar criar para assegurar autonomia. Isso eu fui vendo pela situação agora da Argentina, para sair, porque todos tem uma sazonalidade. Mesmo na Colômbia, que já foi muito bom o financiamento, hoje não está tendo. Em Medellín, faz quatro anos que a prefeitura não banca os pontos de cultura de lá. Tem que ter uma alternativa própria.
P2 – Queria até te perguntar se o marco inicial da internacionalização do Cultura Viva tinha sido 2008 no México, quando o programa é apresentado no Congresso Ibero-americano ou antes. Você pegou como referência 2009 em diante. Você acha que esse congresso foi só uma apresentação do programa, não teve uma repercussão muito grande?
E – Não, teve, tanto que eu fui com o objetivo de propor que o Brasil sediasse o Congresso em função do Cultura Viva e foi aprovado assim. Tinha um problema que na verdade eu percebi lá, como eixo do Congresso eu propus: “autonomia e protagonismo sociocultural”. Ocorre que o pessoal do governo da Espanha e outros têm um entendimento diferente de autonomia. As autonomias regionais, ali dos povos da Catalunha, da Andaluzia, Galicia. Daí tiramos a palavra autonomia e ficou “cultura e transformação social”. É. Além de 2009, teve esse marco de 2008, no México. Ele foi um bom reconhecimento. Outro marco que teve também, não é marco em evento, mas o espalhamento do conceito do programa, foi o catálogo do Cultura Viva, que no início eu distribuía em word, impresso em sulfite. Esse caderno que lança o Cultura Viva, conceitos, termos, planejamento. Tem todos os conceitos iniciais, é aquele que eu escrevi, um pouquinho antes de assumir a secretaria. Tudo: gestão compartilhada, os conceitos empoderamento, protagonismo, autonomia. Estado Ampliado. Zona de Desenvolvimento Proximal do Vygotsky. Tudo. Nós editamos em português, inglês e francês, eu tenho uns poucos exemplares em casa, deve ter na secretaria, os primeiros Pontos recebiam o caderno junto com o convênio assinado, não sei se todos leram, mas que foi, foi. Em 2005 houve o Ano do Brasil na França, aí nós levamos lá, lembro de uma professora da Paris X-Nanterre, Idelete, também a Candace Slater, de Berkley, nos EUA, que ajudaram muito nas reflexões. Sempre houve a preocupação de não só de expandir o programa, mas de expandir o conceito, a ideia.
P1 – Eu queria pegar um gancho, um pouco para a gente tentar amarrar esse ciclo desse transbordamento de fronteira que é um pouco nosso objetivo do papo de hoje. Pensando nesse movimento que você fez, você foi então para uma outra corrente. Você foi para o movimento internacional. Assim, como é que é a sua avaliação hoje em relação a essa apropriação e ressignificação do conceito na América Latina? Pensando nessa ascensão conservadora, nessa outra percepção do conceito de diversidade que, como a gente começou lá no início do nosso papo, tem uma outra chave de acionamento bem distinta do começo dos anos 2000. Enfim, como é que você vê até a continuidade desse conceito pra fora?
E – O mundo está numa encruzilhada. Se não assumirmos de novo uma perspectiva revolucionária, a gente vai entrar no processo de colapso de civilização muito grande. Essa dimensão política que nunca foi escondida no Cultura Viva, agora penso que deveria estar ainda mais explicitada, mais radicalizada (de ir à raiz dos problemas), inclusive de buscar uma unidade estética e de movimento, não uma uniformização, mas um movimento explicitamente revolucionário, na ética, estética, economia, educação, engajamento. Isso que vai gerar encantamento. Penso assim. Porém, ainda está tudo muito fragmentado. Precisamos criar uma estética de superação desse mundo horrível, desse ambiente de enfrentamento e colapso, ao menos que conseguisse conversar do México até a Patagônia. Quiçá do mundo. Nessa mesma linha estética, artística, poética e política. Por isso que também começo a explicitar mais o conceito de biopotência… O biopoder é aquela disciplinarização dos corpos, a estruturação do Estado, dominando, não é? Ele está resultando na necropolítica e a alternativa a isso é a potência da vida. Eu penso que os Pontos de Cultura ou os movimentos que se chamarem da forma que quiserem, deveriam assumir isso com mais força. Do contrário vão sucumbir. O pessoal ainda fica muito numa relação de dependência, não me refiro aos recursos que devem ser transferidos do Estado e que são muito necessários, mas à relação de subordinação.
Hoje em dia meu pensamento radicalizou. Assumo isso. Vai na fusão de Cultura Viva com Bem Viver, daí com o zapatismo e as autonomias, as experiências no Curdistão, com movimentos feministas revolucionários, federalismo comunitário. Não que prescinda do Estado, ao contrário, mas tem que ser um Estado de Novo Tipo, e para já! Tudo isso tem uma lógica, tem uma estética, tem uma conversa. Na minha cabeça, eu penso assim…
Fonte Portal Membro Outros Olhares
Revolução chinesa, 75 anos
Roteiro para compreender um processo inovador e complexo. A reforma agrária radical. Os ziguezagues dos anos 1960 e 70. A abertura de Deng, com modernização e desigualdade. Os desafios atuais e a decisão de não recuar diante dos EUA
Por Tings Chak e Vijay Prajad | Tradução: Antonio Martins, depois de Hugo Albuquerque
Em 1º de outubro de 1949, o líder comunista Mao Zedong (1893-1976) anunciou a criação da República Popular da China. Trezentas mil pessoas se reuniram na Praça da Paz Celestial para saudar novo governo e, também a nova liderança. Depois de fazer o anúncio inicial, Mao hasteou a nova bandeira chinesa. Em seguida, o comandante militar Zhu De passou em revista as tropas do Exército de Libertação Popular. Celebrações semelhantes foram realizadas em outras partes da China.
A fundação da República Popular da China encerrou o Século de Humilhação, iniciado com a primeira Guerra Anglo-Ópio de 1839, incluindo a longa Segunda Guerra Mundial – que começou com a invasão japonesa da Manchúria em 1931. Dez dias antes, na primeira sessão plenária da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, Mao disse: “Estamos todos convencidos de que nosso trabalho entrará para a história da humanidade, demonstrando que o povo chinês, que perfaz um quarto da humanidade, agora se levantou”. As palavras povo e república, no nome do novo país, não estavam ali à toa.
Falar em república significava concluir a Revolução de 1911 que encerrou a dinastia Qing (1644-1911) e inaugurou uma forma de soberania pós-monárquica. O republicanismo chinês formou-se a partir das visões reformistas de pessoas tão diversas quanto Kang Youwei (1858-1927) e Liang Qichao (1873-1929) – que apoiaram uma monarquia constitucional – e foram colocadas em prática por Sun Yat-Sen (1866-1925). Ele não era apenas contra monarquias, mas, o mais importante, era contra a miserável herança cultural dos séculos e pela unidade do povo chinês em um território extenso.
Já o elemento do povo tem uma rica história no pensamento chinês e na teoria marxista, significando que o Estado deve operar em nome de uma gama de classes que formam a maior parte da sociedade – camponeses, trabalhadores, os intelectuais e a pequena burguesia –, as quatro estrelas na nova bandeira da China, com a quinta e maior estrela representando o Partido Comunista.
A República Popular foi entendida desde o início como um instrumento para a transformação da sociedade chinesa e não o ápice de uma transformação anterior. Não era um Estado socialista, mas uma república popular, que se esforçaria para construir o socialismo.
Desde o início, foi entendido pela liderança do Partido Comunista que a Revolução Chinesa não se encerrava em 1949, mas era um processo iniciado muito antes, pelo menos desde a formação da República Soviética Chinesa, em Ruijin, no Sul da China, ainda em 1931 até chegar a base revolucionária de Yan’an, no Noroeste, em 1936.
Os três movimentos de massas
Dois dos principais movimentos de massas que se aprofundaram logo após 1949 foram a vitória final sobre as forças do Kuomintang, no Sudoeste e Sul da China, o estabelecimento de aliados no mundo – particularmente a União Soviética, com o Tratado Sino-Soviético de fevereiro de 1950 – e, também contra a invasão norte-americana à península coreana, em junho de 1950.
A formação da República Popular da China ocorreu em um momento em que ela ainda não havia estabelecido a unidade do território, nem encontrado os meios para se defender contra a agressão imperialista. Esses dois movimentos de massa – a derrota das forças de direita no contiente e a construção defensiva contra a agressão imperialista – forçaram a China a adiar brevemente o terceiro movimento de massas, que no entanto foi o mais duradouro: o plano de Reforma Agrária.
As decisões do inverno de 1950, no entanto, iniciaram um processo de reforma agrária nas zonas recém-libertadas, as quais foram substancialmente concluídas na primavera de 1953. O primeiro princípio geral da Lei da Reforma Agrária observava:
Fica abolido o sistema de propriedade, baseado na exploração feudal, por parte da classe latifundiária, sendo substituída pelo sistema de propriedade dos camponeses, a fim de libertar as forças produtivas das regiões rurais e desenvolver a produção agrícola, visando a abrir o caminho para a industrialização da Nova China.
Esse era o objetivo. O processo era para que o Estado encorajasse o poder político de base, treinado e liderado pelo Partido Comunista, para conduzir à Reforma Agrária de forma guiada, planejada e ordenada. O Partido não daria terras aos camponeses, mas garantiria que eles pudessem construir estruturas, regionais e locais, para redistribuir os recursos em suas áreas.
O confisco forçado não era o centro, mas sim a educação política nas áreas rurais para transformar as relações agrárias da opressão feudal em uma base mais justa. Em 1956, 90% dos camponeses do país tinham terras para cultivar, 100 milhões de camponeses estavam organizados em cooperativas agrícolas e o setor camponês privado foi abolido.
A Reforma Agrária teve vários resultados positivos: significou que os sem terra e os trabalhadores rurais passaram a ter a posse da terra e, também, os recursos que lhes permitiam viver com dignidade; significou que a população rural, possuindo seu quinhão de terra, desenvolvesse por tabela o interesse em melhorá-la, o que aumentou a produtividade; significou que a antiga cultura de liderança dos senhores de terra, dentro da velha ordem de relações patriarcais fossem eliminadas, junto com seus resultados miseráveis. Esses desdobramentos positivos melhoraram as condições de vida e trabalho da maioria do povo chinês, construindo quase de imediato um sentimento de lealdade à Revolução Chinesa.
Superando as amarras do passado
Em 1949, a taxa oficial de alfabetização na China era de 20%, embora tudo indique que fosse um número altamente inflado. Era simplesmente uma medida das condições miseráveis de vida para a massa da população chinesa. Outra eram a mortalidade infantil em impressionantes 250 por 1.000 nascidos vivos. A expectativa média de vida não ultrapassava 35 anos.
Durante o longo Século de Humilhação sob as potências imperialistas, o Produto Interno Bruto (PIB) da China caiu de cerca de um terço da economia mundial, no início do século XIX, para apenas 5% em 1949. Naquela época, em termos de PIB per capita, a China era a décima primeira nação mais pobre do mundo, à frente apenas de oito países africanos e dois asiáticos.
A imensa turbulência no interior da China a partir do século XIX – refletida nas guerras contra os britânicos e nas revoltas camponesas, como as rebeliões de Taiping (1850-1864), Nian (1851-1868), Du Wenxiu (1856-1872) e Dungan (1862-1877) – e a espoliação, por uma pequena classe de proprietários feudais, levaram os camponeses e os trabalhadores a um cenário na qual a conciliação era impossível.
Camponeses e trabalhadores lutaram porque tinham que lutar, mas foram capazes de prevalecer em razão do contexto da guerra contra os japoneses – e das brilhantes escolhas estratégicas feitas pelos comunistas, durante e após o ápice da Longa Marcha.
Superar os grilhões do passado não era uma opção fácil. A China, simplesmente, não tinha recursos para redistribuir riqueza imediatamente, por meio da criação de uma infraestrutura educacional e de saúde adequada. Durante o processo de Reforma Agrária, a China desenvolveu o Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957), sob a liderança de Zhou Enlai (1898-1976) e Chen Yun (1905-1995). O plano foi elaborado ao longo de dois anos e enfatizou quatro pontos teóricos:
1. Construir uma inédita base industrial para satisfazer as necessidades do povo chinês, tanto nas cidades quanto nas áreas rurais. De todo o capital comprometido para a construção, 58,2% foi para a construção dessa capacidade industrial.
2. Erguer uma nova China baseada na realidade e não em expectativas utópicas. Isso implicou que os preciosos recursos mobilizados por Pequim precisavam ser utilizados criteriosamente – e que a China precisava treinar um enorme exército de burocratas para gerir a expansão do Estado e, assim, utilizar o poder dele para ajudar na democratização da economia.
3. Usar todos os meios que os chineses pudessem reunir, mas sem muita dependência de ajuda externa, embora a União Soviética forncesse assistência nos primeiros anos, sobretudo para a industrialização chinesa. Durante o período do Primeiro Plano, a União Soviética enviou três mil especialistas técnicos para a China, e acolheu 12 mil estudantes chineses que foram estudar disciplinas técnicas. Os empréstimos estrangeiros para o desenvolvimento representaram apenas 2,7% da receita financeira total do Estado chinês no Primeiro Plano.
4. Lidar corretamente com o equilíbrio entre a acumulação de capital, em um país pobre, e as necessidades de consumo da população. O Plano articulou, de forma cuidadosa, a mediação entre os interesses imediatos do povo com seus interesses de longo prazo. Colocar muitos recursos na construção de capital fixo poderia diminuir o entusiasmo pelo socialismo; e esgotar os recursos na resolução de problemas imediatos só adiaria os problemas para mais tarde.
A sofisticação teórica do Primeiro Plano permitiu alguns avanços importantes, mas eles não foram suficientes para as necessidades sociais que se insinuavam. Enquanto os fatores objetivos de melhoria das condições materiais de vida avançaram progressivamente, os principais problemas sociais tiveram que ser confrontados por técnicas mais subjetivas. O Partido Comunista organizou campanhas de massa para combater o analfabetismo (1950-1956), incluindo aulas nos campos para o campesinato.
Pegas no turbilhão da década de 1940, muitas áreas rurais da China desenvolveram uma tradição de ajuda mútua que se tornou o Sistema Médico Cooperativo Rural na China Vermelha. Com essa forma de seguro médico, a China começou a distribuir seus recursos para construir a saúde pública, auxiliada pelos soviéticos, incluindo a construção de hospitais gerais nas províncias rurais e policlínicas nas aldeias. Tanto a alfabetização quanto a saúde melhoraram dramaticamente por causa dos quadros altamente motivados da China, que levaram sua experiência de sacrifício e estratégia de guerra para a área social.
Porém, uma das desvantagens da necessidade de confiar no subjetivismo para construir o socialismo é que essa estrutura tende ao exagero e ao erro, como no apelo à Revolução Cultural (1966-1976). Mas mesmo aqui, o registro não é totalmente negativo. Durante esse período, a China formalizou o programa dos Médicos de Pés Descalços [Chìjiǎo Yīshēng], que permitiu que as faculdades de medicina fornecessem treinamento básico para médicos irem atender as pessoas em áreas rurais e, assim, permitiu que o campesinato tivesse acesso a cuidados médicos primários onde isso não existia.
Esse tipo de subjetivismo era necessário para lutar contra as tentações da corrupção e a deterioração da disciplina de quadros, que se tornaram ambos problemas sérios na China; foram formulados por meio da campanha de 1951 contra os “três males” no setor estatal – corrupção, desperdício e burocracia – e da luta de 1952 contra os “cinco males” no setor privado – suborno, evasão fiscal, roubo de propriedade estatal, fraude em contratos governamentais e roubo de informações econômicas.
No período de 29 anos pré-Reforma (1949-1978), a expectativa de vida da China aumentou em 32 anos. Em outras palavras, para cada ano após a Revolução, mais de um ano foi adicionado à vida de um chinês médio. Em 1949, a população do país era 80% analfabeta, o que em menos de três décadas foi reduzido para 16,4% nas áreas urbanas e 34,7% nas áreas rurais; a matrícula de crianças em idade escolar aumentou de 20% para 90%; e o número de hospitais triplicou.
De 1952 a 1977, a taxa média anual de crescimento da produção industrial foi de 11,3%. Em termos de capacidade produtiva e desenvolvimento tecnológico, a China passou de não ser capaz de fabricar um carro em 1949 para lançar seu primeiro satélite no espaço sideral em 1970. O satélite Dongfanghong – que significa “O Oriente é Vermelho” – tocou a canção revolucionária homônima em loop, enquanto estava em órbita por vinte e oito dias.
Os ganhos industriais, econômicos e sociais na transição para o socialismo sob Mao formaram as bases do período pós-1978.
Quebrando as correntes da dependência
Em 1954, Mao discursou na Terceira Sessão Conselho Central do Governo Popular e levantou uma questão que estava na mente de muitos delegados:
Nosso objetivo geral é lutar para construir um grande país socialista. Nosso país é grande, tem 600 milhões de pessoas. Quanto tempo levará para realizar a industrialização socialista, a transformação socialista e a mecanização da agricultura e, assim, fazer da China um grande país socialista? Não estabeleceremos um prazo rígido agora. Provavelmente levará um período de três planos quinquenais, ou quinze anos, para estabelecer essas bases. A China se tornará um grande país? Não necessariamente. Acho que para construirmos um grande país socialista, cerca de cinquenta anos, ou dez planos quinquenais, provavelmente serão suficientes. Até lá, a China estará em boa forma e bem diferente do que é agora. O que podemos fazer no momento? Podemos fazer mesas e cadeiras, xícaras e bules, podemos cultivar grãos e transformá-los em farinha – também podemos fazer papel. Mas não podemos montar um único automóvel, avião, tanque ou trator. Então, não devemos nos gabar e ser arrogantes. Claro, não quero dizer que poderemos nos tornar arrogantes quando produzimos nosso primeiro carro, mais arrogantes quando fizemos dez carros e ainda mais arrogantes quando fizemos mais e mais carros. Isso não vai dar certo. Mesmo depois de 50 anos, quando nosso país estiver em boa forma, devemos permanecer tão modestos quanto somos agora. Se até lá nos tornarmos presunçosos e menosprezarmos os outros, será ruim. Não devemos ser presunçosos nem mesmo daqui a cem anos. Nunca devemos ser arrogantes.
Três pontos importantes vêm deste discurso. Primeiro, que levará tempo para construir o socialismo, já que a revolução em um país pobre como a China requer que o Estado, o partido e o povo construam a base material para o socialismo: primeiro, a paciência é um valor central do marxismo de libertação nacional. Segundo, que a China precisava de ciência, tecnologia e capacidade industrial para quebrar as correntes da dependência e, assim, produzir bens modernos de alto valor.
Para fazer isso, a China teve que confiar na importação de ciência e tecnologia e treinar seu próprio pessoal científico e tecnológico. Terceiro, a humildade é um valor tão central quanto a paciência, pois a China não está buscando avançar para o nacionalismo chauvinista, mas para os propósitos do socialismo internacional.
A tentativa de romper com o problema crônico da dependência foi tentada – e, substancialmente, falhou – durante o Grande Salto Adiante (1958-1962) e a Revolução Cultural (1966-1976). Muitas lições foram aprendidas então, e durante o período de dois anos após a morte de Mao (1976-1978).
Em maio de 1976, Hu Fuming (1935-2023), um membro do Partido Comunista e professor na Universidade de Nanquim, publicou um artigo com um título interessante: A prática é o único critério para a verdade [Shíjiàn shì jiǎnyàn zhēnlǐ de wéiyī biāozhǔn]. A posição filosófica de Hu Fuming, que era atraente para muitas pessoas no Partido Comunista, foi adotada por Deng Xiaoping (1904-1997) em seu discurso de 1978 para a Terceira Sessão Plenária do XI Comitê Central do PC, intitulado, Emancipar a mente, buscar a verdade dos fatos e se unir — como um só – ao olhar para o futuro [Jiěfàng sīxiǎng, shíshìqiúshì, tuánjié yīzhì xiàng qián kàn].
O que parecia pragmatismo era, na verdade, uma adesão ao materialismo, definindo o curso do socialismo chinês nos trilhos da realidade em vez de tentar apressar as coisas por meio de um excesso de subjetivismo. A era da Reforma, que começou em 1978, foi construída sobre essa base filosófica.
Em janeiro de 1963, Zhou Enlai havia estabelecido um programa para a China focar nas Quatro Modernizações, a saber, modernizar a agricultura, a indústria, a defesa, bem como a ciência e a tecnologia. Em seu discurso de 1978, Deng retornou a essas Quatro Modernizações e disse que elas não poderiam ocorrer “se o pensamento ossificado não fosse eliminado”.
No ano seguinte, Deng disse que a China deve se esforçar para se tornar uma “sociedade moderadamente próspera” [Xiǎokāng Shèhuì], o que só poderia ocorrer com o avanço da base industrial. Ao focar na abertura e na política da China para atrair a indústria tecnologicamente avançada para o país, uma avaliação desigual surgiu da era da Reforma que começou em 1978.
O país nunca seria capaz de enfrentar o desafio das Quatro Modernizações e avançar para o socialismo se ignorasse os problemas criados pelo lugar dependente da China na ordem neocolonial do mundo, bem como a podridão que frequentemente se instala quando o poder se torna um fim em si mesmo.
O capital estrangeiro privado veio primeiro da diáspora chinesa, depois dos capitalistas do Leste da Ásia – com o Japão na liderança – e, finalmente, do capital ocidental. Esse investimento entrou na China para aproveitar a força de trabalho altamente educada e saudável, e teve que transferir ciência e tecnologia como um pré-requisito, o que formou uma base para o crescimento do próprio setor de ciência e tecnologia da China.
A China impôs restrições significativas ao capital, como as de que ele tinha que atender às necessidades produtivas dos planos chineses, transferir tecnologia e não poderia repatriar os lucros na quantidade que desejasse. A dependência foi quebrada por essa insistência, construída sobre a base das primeiras décadas da Revolução Chinesa.
Foi uma consequência da longa trajetória da Revolução Chinesa, qu alcançou altas taxas de crescimento econômico – de quase 10% ano a ano – no período iniciado em 1978, sendo capaz de abolir a pobreza absoluta e que ampliou substancialmente o consumo doméstico e total – incluindo educação – ao longo das quatro últimas décadas.
Vários aspectos, no entanto, foram negligenciados nesse processo. Dois merecem destaque: (i) a produtividade agrícola foi aumentada por meio de um sistema de responsabilidade familiar – que enfraqueceu as fazendas coletivas na sua busca de uma maior socialização do trabalho e uma forma mais elevada de coletividade; (ii) o papel do Partido Comunista tinha que ser fortalecido na China em uma sociedade com uma educação política de maior qualidade e disciplina para os quadros. Em 1980, Deng fez um discurso em que destacou as principais práticas ilícitas: burocratização, superconcentração de poder, comportamento patriarcal e quadros dirigentes desfrutando de mandato vitalício e privilégios de todos os tipos.
A cadeia de dependência foi enfraquecida, portanto, mas não quebrada, uma vez que o período de Reforma tenha trazido seus próprios problemas – como aumento da desigualdade e enfraquecimento do tecido social.
Os Ziguezagues da Revolução
Em 2012, 34 anos após o início do período de abertura, o líder do Partido, Hu Jintao, nascido em 1942, disse ao XVIII Congresso do Partidoque a corrupção havia se tornado uma questão-chave. “Se não conseguirmos lidar bem com essa questão”, ele alertou, “isso pode ser fatal para o partido e até mesmo causar seu colapso e a queda do Estado”. Naquele Congresso, Hu foi sucedido por Xi Jinping, nascido em 1953, cuja primeira iniciativa foi abordar essa questão e reviver a cultura socialista na China.
Em seu discurso inaugural como chefe do Partido, Xi se comprometeu a “atacar tigres e moscas ao mesmo tempo”, referindo-se à corrupção que havia se espalhado dos altos escalões até o nível de base. O Partido Comunista lançou as medidas de “oito pontos” para seus membros, para limitar práticas como reuniões inconsequentes e recepções extravagantes, e defendeu diligência e economia.
Em um ano, 25% das reuniões oficiais foram canceladas, 160 mil “funcionários fantasmas” foram removidos da folha de pagamento do governo e 2.580 projetos de construção oficiais desnecessários foram interrompidos. Até maio de 2021, um total de mais de 4 milhões de quadros e funcionários foram investigados, com 3,7 milhões deles tendo sido punidos pela Comissão Central de Inspeção Disciplinar. Pelo menos 43 membros do Comitê Central e seis membros do Politburo foram punidos por corrupção, incluindo ex-ministros, governadores provinciais e presidentes dos maiores bancos estatais.
Os comentários de Hu e as ações de Xi refletiram preocupações de que, durante o período de alto crescimento após 1978, os membros do Partido Comunista distanciaram-se cada vez mais do povo. Durante os primeiros meses de sua presidência, Xi lançou uma “campanha da linha de massas” para aproximar o partido das bases.
Como parte da campanha de Alívio da Pobreza Direcionada, lançada em 2014, três milhões de quadros do Partido foram enviados para viver e trabalhar em 128 mil aldeias. Em 2020, apesar da pandemia de Covid-19, a China erradicou com sucesso a pobreza extrema, contribuindo para 76% da redução global da pobreza no mundo, nas últimas quatro décadas.
O XIX Congresso Nacional do Partido Comunista, em 2017, marcou uma mudança na principal contradição enfrentada pela sociedade chinesa, do desenvolvimento rápido das forças produtivas para o enfrentamento do desequilíbrio e do desenvolvimento inadequado. Em outras palavras, o período de reforma e abertura foi visto como uma pré-condição para a construção de uma sociedade socialista moderna, mas seu trabalho ainda está incompleto.
Além da autocorreção do Partido Comunista, as palavras e ações fortes de Xi contra “moscas e tigres” corruptos contribuíram para a confiança do povo chinês no governo. De acordo com um estudo de 2020 da Universidade de Harvard, o índice de aprovação do governo central é de 93,1%, e ainda maior nas regiões mais subdesenvolvidas do interior. Esse aumento da confiança nas áreas rurais resulta do aumento dos serviços sociais, da confiança nas autoridades locais e da campanha contra a pobreza.
Em 2016, refletindo sobre a continuação da dependência chinesa, Xi disse que a “dependência da tecnologia crucial é o nosso maior problema oculto. A forte dependência da tecnologia crucial importada é como construir nossa casa em cima da casa de outra pessoa”. A guerra comercial dos Estados Unidos contra a China, que começou em 2018, ocorreu após o colapso, em países como China, Índia e Brasil da confiança na capacidade dos Estados Unidos de serem o “comprador de última instância”. Isse se deu após a Grande Recessão, iniciada em 2007.
Esses fenômenos – a falta de confiança e a guerra comercial – colocaram a China em um caminho que divergiu do Ocidente, construindo a Iniciativa Cinturão e Rota, também conhecida como Nova Rota da Seda (2013) e, em seguida, desenvolvendo Novas Forças Produtivas de Qualidade (2023).
O primeiro conceito mostra o interesse da China em construir novos mercados longe dos Estados Unidos e da Europa, mas também usando esse processo para auxiliar nos avanços do desenvolvimento em países do Sul Global. O segundo conceito, central para o Pensamento de Xi Jinping, é sobre mover a China para “liderar o desenvolvimento de indústrias emergentes estratégicas e indústrias futuras”, como Xi disse em setembro de 2023.
A guerra comercial dos Estados Unidos pressionou a ciência chinesa a avançar em novas áreas, como inteligência artificial, biomedicina, nanotecnologia e fabricação de chips de computador. Dois sinais dos rápidos avanços são: a economia digital da China em 2022 foi responsável por 41,5% de seu PIB, enquanto sua taxa de penetração de 5G foi maior que 50% em 2023.
Embora o crescimento dessas indústrias estratégicas tenha sido fundamental para o desenvolvimento da China, o governo tomou medidas decisivas nos últimos anos para restringir a “expansão desordenada do capital”, visando especificamente o monopólio das Big Tech e outros setores privados, bem como a especulação imobiliária. Ao mesmo tempo, houve uma ênfase maior no combate às três montanhas enfrentadas pelo povo chinês, que são os altos custos de educação, moradia e saúde.
A Revolução Chinesa continua em processo. Ela está inacabada porque a história prossegue e há muitos problemas a serem resolvidos, incluindo o caráter do relacionamento da China com o resto do Sul Global, enquanto busca uma nova arquitetura de desenvolvimento após o fracasso completo da abordagem de “austeridade” e dívida do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
O fato de a China ter conseguido abolir a pobreza absoluta e construir, ao mesmo tempo, tecnologia avançada indica que o equilíbrio entre investimento e consumo foi bem administrado. A estabilidade e a força do país permitiram que ele agora entre na esfera mundial e ofereça liderança para resolver problemas aparentemente intratáveis, como entre o Irã e a Arábia Saudita ou os diversos grupos que luta pela independência da Palestina.
Este é um bom momento, depois destes 75 anos, para voltar e estudar o discurso de Mao de 1954, onde ele destacou a necessidade da China desenvolver ciência e tecnologia de forma independente, paciente e humilde. Em 2021, com a erradicação da pobreza extrema e no centésimo aniversário da fundação do Partido, a China conseguiu atingir seu “Primeiro Objetivo do Centenário” de construir “uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”. Em outras palavras, atingir Xiaokang para um país de 1,4 bilhão de pessoas. Agora, está em um caminho desconhecido para atingir seu Segundo Objetivo do Centenário de construir “um país socialista moderno que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso” até 1949, no centenário da fundação da República Popular da China. Essas são características importantes de qualquer processo de desenvolvimento, mas especialmente um enraizado na tradição socialista.
Fonte Portal Membro Outros Olhares
A grande família descreve a típica classe média decadente brasileira
A série “A Grande Família” é uma das produções mais emblemáticas da televisão brasileira, exibida entre 2001 e 2014, e retrata de forma humorística, mas também crítica, a classe média decadente brasileira. Cada personagem representa um arquétipo que reflete os dilemas, frustrações e esperanças dessa camada social em transformação, abordando questões como o endividamento, a falta de ascensão social e o conflito de gerações.
- Lineu Silva (Marco Nanini) – O patriarca conservador e responsável, Lineu é o típico chefe de família da classe média que valoriza o trabalho duro e a honestidade. Como funcionário público, ele simboliza a estabilidade financeira modesta, mas estagnada. Lineu representa a geração que cresceu acreditando no “sonho de classe média”, mas se depara com uma realidade em que o esforço não é mais suficiente para garantir mobilidade social ou segurança econômica. Sua rigidez e moral conservadora muitas vezes entram em conflito com as mudanças sociais e o comportamento mais liberal de sua família.
Nenê Silva (Marieta Severo) – A matriarca, Nenê, é a dona de casa dedicada que mantém a família unida. Ela representa muitas mulheres da classe média brasileira que, apesar de não terem uma carreira formal, desempenham um papel fundamental na economia doméstica e nas relações familiares. Sua frustração com a rotina doméstica e o desejo de ser valorizada além do papel de “esposa e mãe” mostram o peso emocional e psicológico que muitas mulheres carregam em famílias tradicionais. Ao longo da série, ela busca constantemente por uma identidade própria, refletindo o dilema de muitas mulheres dessa geração.
Tuco Silva (Lúcio Mauro Filho) – O filho mais velho e eterno “vagabundo”, Tuco representa o jovem adulto da classe média que não consegue ou não tem interesse em seguir a trajetória tradicional de trabalho e estudo esperada por seus pais. Vivendo uma vida despreocupada, sem ambições claras, ele personifica o medo da “geração perdida”, aquela que não consegue alcançar o sucesso profissional ou a estabilidade financeira, mas também não compartilha dos valores conservadores dos pais. Sua relação com o emprego é transitória, e ele encarna a figura do “filho que nunca sai de casa”, algo comum na classe média brasileira.
Bebel Silva (Guta Stresser) – A filha sonhadora, Bebel busca ascensão social e uma vida melhor, mas sem os recursos ou habilidades necessários para alcançar isso. Sua tentativa constante de manter uma aparência de status e classe, mesmo sem a base financeira para sustentá-la, reflete o desejo da classe média de manter as aparências em uma sociedade consumista. Seu casamento com Agostinho a coloca em uma situação ainda mais vulnerável, pois ela é constantemente frustrada pelas limitações de sua realidade econômica.
Agostinho Carrara (Pedro Cardoso) – O genro oportunista, Agostinho é o típico personagem que tenta “dar um jeitinho” em tudo, buscando sempre atalhos para conseguir dinheiro, mesmo que isso signifique envolver-se em atividades questionáveis. Ele é um taxista que vive endividado e representa a malandragem da classe média, que tenta sobreviver em um sistema que parece estar contra ela. Apesar de suas falcatruas, Agostinho é carismático e muitas vezes apresenta uma crítica sutil ao “jeitinho brasileiro”, a forma pela qual muitos tentam se adequar à realidade econômica difícil. Ele encarna o brasileiro que luta para manter sua dignidade e posição, mesmo que seja por meios não convencionais.
Floriano “Flora” Silva (Vinícius Moreno) – O neto, Floriano, mais conhecido como Florianinho, representa a nova geração da família, que cresce em um ambiente de conflitos entre os valores tradicionais dos avós e a modernidade representada pelos pais. Embora seja uma criança, Floriano simboliza a esperança de renovação e transformação em um contexto familiar que está preso em dilemas da classe média.
Mendonça (Tonico Pereira) – O chefe de Lineu, Mendonça é o superior de Lineu no serviço público, que representa uma figura de poder corruptível. Sempre tentando influenciar Lineu para agir de maneira menos ética, Mendonça é o exemplo de como as instituições públicas podem ser corroídas por figuras que buscam vantagens pessoais. Sua postura relaxada e descompromissada reflete o lado mais cínico da burocracia brasileira.
Análise Geral
“A Grande Família” retrata com humor e sensibilidade as tensões vividas pela classe média brasileira, especialmente em um período de mudanças econômicas e sociais. O modelo tradicional de estabilidade financeira e ascensão social, que foi o sonho de muitas gerações, começa a ruir à medida que a economia se torna mais volátil e as oportunidades diminuem. A série destaca temas como o endividamento, o consumismo, a falta de perspectiva para os jovens e o conflito entre os valores conservadores da geração mais velha e a liberdade buscada pelos mais novos.
Os personagens refletem as diferentes facetas da classe média: o patriarca que busca ordem e controle, a mãe que tenta conciliar tradição e modernidade, os filhos que vivem entre o conformismo e a rebeldia, e o genro que sobrevive à base de improviso e “jeitinho”. Com isso, “A Grande Família” oferece uma crítica leve, porém profunda, sobre as frustrações e contradições da classe média decadente no Brasil, que luta para manter suas conquistas em um cenário de incertezas e transformações econômicas.
Fonte Portal Membro Blog Paulo Gala
Comentários
Postar um comentário