COMPORTAMENTO

 


Juventude, precariedade e realismo capitalista

Há algo perverso nessa realidade baseada em sofrimento psicológico e hedonia depressiva. Primeiro fator a levar em conta sobre essa perversão: como a culpa é individualizada em cada jovem que sofre com a precariedade do sistema

Por Álvaro Soler Martínez e Jose Manuel Bobadilla, com tradução na Revista Opera

Você chega em casa do trabalho às oito horas da noite. Tem que pôr roupa para lavar, fazer o jantar, arrumar a casa e tomar um banho. Você fica com vontade de assistir a um filme e praticar algum esporte, mas assim que o pijama toca sua pele, o cansaço já se apoderou de você. É perfeitamente normal: você ficou doze horas fora de casa e já estamos no meio da semana. Você sai para a varanda (se é que tem uma varanda) para tomar um pouco de ar fresco; as luzes da cidade o lembram de que o asfalto que pisamos todos os dias respira e está vivo. Os carros do Uber sobem e descem a rua e, no horizonte da avenida, como se fosse um pôr do sol eterno, você percebe que essa inquietação, esse cansaço que entorpece sua cabeça, está com você há anos e só aumentou, especialmente depois que seu senhorio aumentou o aluguel três meses atrás.

Há um especial no jornal sobre saúde mental. Todas as premissas são baseadas em análises individuais, biológicas ou paliativas. É aí que você percebe o quanto eles se concentram em toda essa parafernália: hábitos saudáveis, mentalidade positiva, falta de resiliência, geração de cristal, trabalhar a inteligência emocional, cultivo de um caráter estoico e assim por diante. Tudo o que sai da boca dos apresentadores é focado na superficialidade, na cessação da dor imediata, ignorando uma dimensão crucial: a política.


Será que o ocaso temporário que você sentiu quando a noite mergulhou na cidade foi real? Será que a sensação de que não havia alternativa a não ser suportar a exaustão psicológica até não aguentar mais é verdadeira? O crítico cultural Mark Fisher tinha palavras para essa angústia coletiva, que se tornou cada vez mais premente à medida que o capitalismo tardio esgota-se nas fases de violência e precariedade, com seu crescente autoritarismo em relação ao proletariado que, nele, trabalha escravizado. A hedonia depressiva é um estado psicológico e social característico das gerações mais jovens no capitalismo atual. Afetadas por um contexto capitalista tão negativo, severo e generalizado, as pessoas sentem esse impulso em direção à busca constante e superficial do prazer, mas esse prazer não produz satisfação ou alívio genuíno, o que as leva a um ciclo de dependência, vazio e depressão.

Consequentemente, as respostas que encontramos para esse ciclo de hedonia depressiva são a defesa das ideias de (auto)responsabilidade e (auto)ajuda individual, que estão levando a geração Z e a geração millennial à impossibilidade de encontrar uma saída coletiva para a situação psicossocial descrita por Mark Fisher.

Transtornos mentais ou desespero geracional?

Analisando essa realidade psicossocial com base em dados: na Espanha, aproximadamente 18% dos jovens entre 16 e 35 anos sofrem de transtornos de ansiedade e 12% apresentam sintomas de depressão. Esses dados são provenientes de estudos compilados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e do relatório 2023 do Ministério da Saúde, que refletem o impacto crescente dos transtornos mentais na população jovem.

Há algo de perverso acontecendo nes realidade baseada no sofrimento psicológico. O primeiro fator a ser levado em conta sobre essa perversão é como a culpa é individualizada em cada jovem que sofre com a precariedade do sistema capitalista. Em outras palavras, não apenas as condições estruturais que geram esse problema são ignoradas, mas as vítimas também são culpadas por elas.

O segundo fator é a lucratividade que o próprio sistema capitalista extrai dessa situação. Não é de surpreender que haja uma proliferação de discursos motivacionais, coaching, febre de criptomoedas ou a onda de discursos, especialmente de masculinidade, que apelam para uma lógica econômica fria, em que o darwinismo social, a competição e o sucesso econômico individual são apresentados como uma lei natural e inalterável. Desde discursos sobre finanças, condicionamento físico, experiências de vida, atenção plena ou relacionamentos interpessoais, todos são atravessados pelo terceiro e mais importante fator que canaliza nosso desconforto psicológico: o realismo capitalista.

Esse conceito revela como o capitalismo se tornou tão hegemônico que aparece como a própria natureza das coisas, e não como uma ideologia. O realismo capitalista, como uma particularidade sócio-histórica, aponta para uma característica do capitalismo atual que o diferencia de seus estágios anteriores: hegemonia total não apenas no nível militar ou da política estatal, mas também em níveis ideológicos.

Hoje, o realismo capitalista é tão forte que internalizamos sua ideologia a tal ponto que pensamos e sentimos que ele co-natural ao desenvolvimento humano. Nessa pequena varanda onde se busca uma saída, trava-se a luta política mais importante de nossa geração, uma luta que começa quando uma voz dentro de nós nos assaltam lutando contra a impotência reflexiva: você já se perguntou por que temos essas ideias tão internalizadas? Por que elas nos constituem de tal forma que parece quase impossível pensar que a vida possa transcorrer de outra maneira?


Essas perguntas que ecoam em sua cabeça não são novas, mas tentar respondê-las constitui um questionamento radical de nossa antropologia humana, porque, ao contrário do resto dos animais, como comentam os antropólogos e linguistas, temos que dotar a realidade de significado.

Ou seja, somos seres com uma estrutura de desejo. Podemos entender a realidade e nos relacionar com o ambiente material de uma forma antropológica que nos diferencia dos outros animais. Não temos um vínculo tão imediato e geneticamente programado como o restante dos animais, que se relacionam com o ambiente e suas necessidades de forma inata ou com pouca variação entre grupos e épocas. Em nossa espécie, temos a necessidade de significar a realidade, o ambiente, e, portanto, de moldá-lo cognitivamente. Isso acontece por meio da linguagem e da fala, o que permite uma relação mais complexa e mutável com os objetos e o ambiente. Portanto, nossas necessidades não são inatas nem limitadas (ou certamente não tão limitadas), mas mutáveis, mediadas pela comunicação e pelos infinitos significados que podemos desenvolver em relação ao ambiente.

A origem ideológica do individualismo

A explicação acima é fundamental para entender o realismo capitalista e seus efeitos, bem como sua definição. Pois essa mediação por meio da fala, da linguagem e das estruturas cognitivas é totalmente permeada pelo capital. Sempre foi assim no capitalismo, mas seu efeito hoje é de uma hegemonia ensurdecedora. Mas qual é a origem antropológica e epistemológica do realismo capitalista? Como a ideologia liberal e neoliberal construiu sua própria narrativa?

Para responder a essa pergunta, os liberais e neoliberais recorrem aos teóricos liberais John Locke e Adam Smith para construir sua ideia de vida. Como Johan Norberg argumenta em seu The Capitalist Manifesto: Why the Global Free Market Will Save the World (2024):

“No entanto, John Locke, o pai do liberalismo clássico, escreveu em 1689 que Deus assegurou que ‘não é bom que o homem esteja só’, e continuou explicando por que o indivíduo não pode ser imaginado sem a família e suas outras comunidades. Adam Smith, o padrasto do liberalismo econômico, declarou em 1759 que a natureza ‘formou o homem para a sociedade’, e explicou detalhadamente como nosso comportamento e nossa moralidade surgiram de nossas interações sociais, como resultado de nossa empatia, em um período em que seus oponentes conservadores simplesmente presumiam que haviam sido dadas por Deus” (Norberg, 2024; 260).

Analisando atentamente essa citação, vemos que suas teses se baseiam no teísmo e no ateísmo simultaneamente. Eles afirmam que Deus, que eles consideram um ser existente, não quer que o homem fique sozinho e, ao mesmo tempo, falam sobre o fato da natureza ter formado o homem para a sociedade. Embora esses princípios antropocêntricos pareçam contraditórios, todos eles apontam para a mesma ideia: a vida começa no indivíduo independente, o que lhes permitiu construir ideologicamente a doutrina do individualismo.

Uma vez socialmente construída a doutrina do individualismo, eles foram forçados a relacioná-la a outros indivíduos e coletivos. Novamente, eles recorrem a Deus e à natureza: por um lado, é Deus que não quer que o indivíduo independente fique sozinho, por isso não podemos imaginá-lo sem a família e outras comunidades. Por outro lado, a partir do discurso naturalista, eles entenderam que são as interações sociais entre indivíduos independentes, baseadas na empatia, que moldam nossa moralidade. Disso deriva a segunda doutrina: a liberdade individual, pois os indivíduos independentes são livres para se relacionar com outros indivíduos independentes.

Aqui é necessária uma análise mais profunda para ver as armadilhas ideológicas do liberalismo. Se partirmos da doutrina do individualismo e da liberdade individual, teríamos de imaginar um mundo composto apenas de indivíduos independentes que, por empatia, decidiram se unir em sociedade. Pensar dessa forma é o mesmo que imaginar que um dia, por mágica, milhões de australopitecos apareceram na Terra e que cada um deles decidiu livremente viver em sociedade.

Como animais humanos, não podemos nos entender sem a simbiose gregária. Desde nossas origens, somos gregários, precisamos uns dos outros, não por empatia, mas por pura sobrevivência animal. É aqui, nessa sobrevivência e na necessidade de dar sentido à realidade, que construímos o significado de nossas interações sociais, não fora da sociedade; mas dentro da espécie animal que somos. Entretanto, o liberalismo nos convenceu do contrário. Isso nos leva a outra mentira do liberalismo, como diz Johan Norberg:

“É surpreendente a frequência com que uma rápida leitura errônea dos liberais clássicos é suficiente para desmantelar a conexão entre o liberalismo e a ganância ou a solidão. Como se a resistência a relacionamentos forçados fosse baseada em uma resistência a relacionamentos” (Norberg, 2024; 259-260).

Para os liberais, tudo o que implica no coletivo está associado a relações forçadas e, portanto, à perda da liberdade individual e ao fracasso de sua doutrina. É lógico que eles pensem dessa forma. Não lemos mal seus clássicos, mas sim mergulhamos nas consequências antropológicas que suas correntes de pensamento produzem.

O que eles não entendem é que sua maneira de construir relações ou interações sociais também é forçada. Suas teses, que são uma forma de organização coletiva humana, forçam o grupo a viver da (auto)responsabilidade individual e da (auto)ajuda individual. Essa é uma imposição ideológica baseada em suas doutrinas liberais, que está levando a um falso senso de liberdade individual. Falar sobre socialismo ou valores coletivos, de acordo com políticos como Milei ou Isabel Ayuso, é falar sobre o “câncer da humanidade” ou de que a vida está dividida entre “comunismo e liberdade”.

Aqui se desmonta outra falsa ideia, refutada por teóricos anarquistas como Malatesta (1853-1932), que afirmava que no coletivo há também a prevalência do indivíduo. Para esse pensador italiano, somos individualistas no sentido de que cada sujeito tem a liberdade de se desenvolver em todos os seus aspectos sociais como quiser, mas essa liberdade só lhe é concedida por viver em um coletivo. Sem o grupo, essa ideia de liberdade não poderia ter se desenvolvido. É o coletivo que possibilita a liberdade individual, e não o contrário. O liberalismo nos forçou a esquecer essa característica própria do animal que somos.

Mas o capitalismo, em sua ânsia de devorar todas as alternativas com suas novas narrativas, recorre à psicologia moderna para nos vender a ideia de que a cooperação é a solução para os problemas que o próprio capitalismo causou. Como diz a neoliberal de Harvard, Rebecca Henderson, em seu Reinventing Capitalism in a World in Conflict (2021):

“De fato, a psicologia moderna sugere que somos tão naturalmente orientados para o grupo quanto egoístas, que os seres humanos evoluíram em grupos (…)” (Henderson, 2021; 57).

O capitalismo é capaz de lutar contra sua própria tese e depois nos convencer de que a ciência reafirma o que as vozes críticas ao capitalismo vêm dizendo desde as origens do livre mercado, da propriedade privada e da naturalização da competitividade: que somente o coletivo salvará o mundo.

Redefinindo o possível a partir de nosso mal-estar de classe

Tudo isso nos leva de volta àquela varanda de onde, todas as noites, os millennials e a geração Z olham para fora exaustos. Exaustos do trabalho, da má educação de nossos chefes, da jornada de trabalho dupla, do tempo perdido no transporte público, de dividir um apartamento, de não ter nossos próprios espaços, de manter laços frágeis… Reconhecemos que esse cansaço não é apenas físico, mas existencial. Não é apenas nosso, mas coletivo. É o peso do realismo capitalista, que nos fez acreditar que não há alternativa para a classe trabalhadora. Mas a verdade é que, como seres com uma estrutura desejante e uma capacidade infinita de significar e transformar a realidade, estamos longe de sermos prisioneiros desse sistema. Se nossas necessidades são moldadas pela linguagem e pela interação social, então nosso destino também o é. E é no reconhecimento de nossa interdependência, de nossa capacidade de redefinir o que é possível, que reside a chave para romper com a hegemonia ensurdecedora do capitalismo e sua naturalização enganosa.

O realismo capitalista se torna intransponível justamente quando conceitos como competição e luta pela sobrevivência se naturalizam, como se fossem parte inevitável e essencial da condição humana. Desse ponto de vista, desgastados pelo ritmo frenético e pelas condições precárias de nossas vidas, é fácil sucumbir à ideia de que não há saída. No entanto, é nesse momento de reflexão coletiva que devemos nos perguntar se essas crenças são realmente inerentes à nossa natureza ou se, pelo contrário, foram impostas por um sistema que busca se perpetuar, bloqueando qualquer possibilidade de alternativa.

Fonte Portal Membro Outras Palavras


O coach neofascista e sua traumaturgia

Ele teve origem na ruína do mundo do trabalho, das profissões e suas éticas. Cumpre o serviço da exploração dos dispensáveis e a venda do amor sacrificial pelo mercado. Ele tem seu próprio partido e sua indústria cultural de propaganda para quem deseja sê-lo

Por Tales Ab’Sáber, em A Terra é Redonda

O coach é a representação limite da financeirização do capital — a sua máxima abstração e pureza, dominando a produção e a guerra global — no âmbito da cultura. Psicólogo definido pelo incremento da produtividade de seu cliente, o coach teve origem na ruína do mundo do trabalho, das profissões e de suas éticas, no mundo da fragmentação e monadizacão do destino do trabalhador, vendedor de qualquer coisa que ninguém quer comprar.

Ele é o próprio sintoma encarnado da vida das classes médias sob o risco de não serem produtivas, por fim dispensáveis, pela presença da política permanente do desemprego. Neste mundo, o coach cumpre o serviço de exploração da insegurança universal. Ele medeia a violência normal na vida das empresas, promove falsa autoajuda como verdade humana, a única ajuda disponível, para pacificar um sujeito sem valor algum, cultural ou de troca, na cultura de sua máxima exploração, física e psíquica.


Como um dia me disse o CEO de uma gigantesca agência de publicidade, máquina que trabalhava no fundo da própria política do país: “na empresa você pode facilmente ganhar 100 mil por mês, não é difícil… basta você me produzir 300 mil por mês.” Este é o mundo dos valoresdo coach, é nele e por ele, sustentado em indivíduos, que o coach trabalha.

Mundo da pressão total da abstração do dinheiro, sem nenhum caráter ou valor para fora do retorno ao mercado, da tempestade tautológica do sistema da mercadoria se auto-referenciando, para justificar o terrorismo de sua própria vida social. Realidade dura dos vencedores, no limite da maior derrota, onde o coach pontifica.

Ele é um psicólogo clínico degradado na ideia fixa da autoajuda banal, pastor profano do elogio do trabalho e do dinheiro quando eles se tornaram impossíveis, psicanalista que negou o inconsciente e a transferência a favor do apego sugestivo ao próprio eu, confundindo subjetividade com produção de valor e sujeito com submissão ao racket psíquico pessoal.

O coach é o pastor cujo único deus é o sucesso abstrato na cultura dada, o psicólogo empresarial de Recursos Humanos pago particularmente para se suportar o risco da vida do trabalho, de quem ainda quer estar por cima, o psicanalista que vende a própria imagem, e a própria tabuada de razões ideológicas, radicalmente comprometidas com a reprodução da ordem que põe tudo em risco.

Não há dialética nem negatividade na existência do coach e sua “teoria” — instrumentalização do pior do elemento subjetivo presente em uma psicanálise. Há apenas aceitação, celebração tácita, adaptação como estratégia de vida, sob o cálculo e o projeto do truque, do golpe ou do balanço malando em meio ao dinheiro, para garantir a sobrevivência nele. Sobrevivência de vida que parte e se resolve no espetáculo, traduzida diretamente em fetichismo da mercadoria, consumo conspícuo.

Vendendo degradação de qualquer metafísica, desde que adaptada a tudo o que existe, o coach é o apoio limite do homem comum, quando ele não vai ao culto coach de uma igreja evangélica…, o amuleto transferencial mundano do filisteu cultural, normal, que, dispensável em todos os níveis da vida que não tenham a ver com mais valor, necessita de alguém que junte os seus pedaços, o pastor profano. Explodido pela própria sociedade esquizofrênica, que não pode negar, pensar em contradição, o cliente do coach o deseja como a liga de seu retorno ao próprio mundo impossível.

O duplo do coach, coach sem nenhum vínculo com o trabalho, é o promoter da vida permanente no gozo generalizado das imagens em fluxo, mas de kicks e de baques, de excitação vazia, o influencer da internet: o vendedor estridente, vulgar no último, de tudo e qualquer coisa que exista, ou seja, que excite alguém. O propagandista, da propaganda que se voltou sobre si mesma. A cultura do coach é a dasobrevivência para a sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida; a cultura do influencer é a daafirmação imanente da sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida.


O coachlíder fascista é o que une o seu estatuto de pastor profano com a malandragem feliz de vampirizar qualquer fetichismo, de qualquer produto, fofoca ou crime nas redes, a arte do influencer. Realiza meta-morfose de si mesmo, virando em exemplo degradado, autocelebrado em fusão com a propaganda de tudo, a ser seguido por massas. O coach líder fascista é o líder político das micro-celebridades, auto geradas aos milhares nas redes. Quanto mais ele aparece, mais poderoso ele é, porque neste mundo basta aparecer para ser poderoso.

Vendedor do sonho de si mesmo, o produto do coach fascista, novo líder no limite da degradação política total — da manutenção do capitalismo de fronteira final, de extermínio de ambiente e natureza, porque os humanos já eram faz tempo… — é a venda da própria imagem, a figura de um rico grotesco brilhando, um sádico do gozo da vida má, deliberadamente estúpido, como modelo para a vida geral degradada. O coach político de internet, influencer e mercadoria a um tempo, vende o vento da sua pura excitação, como todo influencer.

Porém, sua excitação é o puro ar de si mesmo, a constelação ideológica positiva de amor sacrificial pelo mercado, ele próprio como o seu produto. De fato, pessoas compram de Pablo Marçal apenas cursos, golpes farsescos, exatamente para serem como Pablo Marçal; e Olavo de Carvalho sabia bem ser um coach fascista. Como no jogo, como dizia Marx, a ideologia vazia e o personalismo de espetáculo fazem o produto-ele-mesmo do coach funcionar diretamente como D-D’ — dinheiro imagem que faz mais dinheiro… — sem nenhuma mercadoria no meio. O coach funcionando como líder fascista é pura identificação, função de espelho do rosto da mercadoria, formula cultural do capital financeiro.

Antes de entrar na disputa política como alternativa verdadeira, pelo sucesso degradante e pela arrogância de vencedor em mundo de derrotas totais, o coach amealhou milhões de miseráveis do destino e da cultura, da vida e da história, em suas redes sociais na internet, de fato suas redes pessoais. Milhões de compradores do ar do coach, tentando reproduzir o seu brilho e sua riqueza mágica configuram de fato a sua indústria cultural particular.

De fato, milhões de demenciados de mercado, aos quais o novo malandro industrial, que aposentou a navalha, opera por desejo como entretenimento, como fantasia de ganho pela submissão ao seu desejo. Pagando pelo ar do coach, os milhões de idiotas do mundo como ele é confirmam pela raiz o seu poder: fundamentalmente o desejam.

A política do desejo, das coisas, do dinheiro circulante, e de seu show, se confirma absolutamente no desejo do coach. Ele tem seu próprio partido político, sua indústria cultural de propaganda fascista, sua rede de milhões de seguidores o desejando, e desejando ser o coach — que não é nada se não isso mesmo. Tais militantes e ativistas pagam milhões pela indústria cultural da personalidade, para que o coach apareça para eles como milionário, pelo desejo radical que isto exista.

Porque o mundo é isso, produção de riqueza sobre a produção de massas de excluídos, que pagam pelo acesso, quando não exterminados. Dono de um partido de massas da venda de si mesmo como a política do real, das coisas da vida social arruinada, o coach político de massas é a condensação da coisa cultural do neofascismo, esta nova ordem de razões políticas que intriga a tantos.

O coach é o vendedor na rede de uma pirâmide de si mesmo, em que ele é a imagem, o modelo e a mentira de que sua riqueza ridícula estará acessível a todos. Basta todos reconhecerem isso, e seu golpe neoliberal total, de sua excitação vazia de palhaço pop grotesco, chegará ao poder, o seu verdadeiro lugar, como Javier Milei na Argentina e Pablo Marçal tentando o golpe em São Paulo.

Basta ser como o coach, diz o coach, e para isto é preciso que a massa se cale e o assista, e ele enuncie sozinho sua violência antipolítica como política. É preciso ser como ele, por isso é ele quem fala. Por um naco imaginário da riqueza, e para pertencer ao código do dinheiro, palhaços de um circo pegando fogo tendem a entregar tudo ao coach. Como já entregaram quando compravam seus cursos, que não são nada. Por não ter nada a oferecer no âmbito da história, o coach só pode causar, chamar a atenção para si mesmo como um palhaço da indústria cultural que tem nas mãos, que de fato é.

Mentir a mentira que excita, ousadia tática e sádica, que convoca a atenção exatamente porque todos sabem que é mentira. Sua mentira política é apenas uma aposta, em um jogo vazio de verdade, pleno de poder que gera poder. Sua performance, da qual depende, é sua traumaturgia.

Com este choque vazio, se convoca a massa, submetida ao desejo do coach mercadoria. Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach.

Tales Ab´Sáber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra). [https://amzn.to/4ay2e2g]

Fonte Portal Membro Outras Palavras

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